sexta-feira, março 23, 2007

O outro - mediador

Jean Paul Sartre, 1905-1980, França
“ Acabo de fazer um gesto desastrado ou ordinário: (…) Apercebo-me de súbito, de toda a baixeza do meu gesto e tenho vergonha. Claro que a minha vergonha não é reflexiva, pois a presença de outrem à minha consciência, nem que seja à maneira de um catalisador, é incompatível com a atitude reflexiva: no campo da minha reflexão não posso nunca encontrar senão a minha própria consciência. Ora, o outro é o mediador indispensável entre mim e eu próprio: tenho vergonha de mim tal como apareço ao outro. E, pela própria aparição do outro, tenho a possibilidade de fazer um juízo sobre mim como sobre um objecto, pois é como objecto que apareço ao outro. (…) A vergonha é por natureza reconhecimento. Reconheço que sou como o outro me vê.”

Jean Paul Sartre, O ser e o nada

quarta-feira, março 21, 2007

Ódios de estimação - Nietzsche

Que se me perdoe a descoberta de que, até agora, toda a filosofia da moral foi enfadonha e fez parte dos soporíferos - e que, a meu ver, a virtude só foi prejudicada pelo fastio dos seus apologistas:(...)



Nenhum destes pesados animais de rebanho de consciência inquieta (e que se propõem defender a causa do egoísmo como causa do bem-estar geral) quer saber ou farejar que o bem-estar geral não é um ideal, um alvo, um conceito definível, mas sim e apenas um vomitório – que o que é justo para um, é muito capaz de não poder ser justo para o outro, que a exigência de uma moral para todos é o prejuízo precisamente dos homens superiores, enfim, que há uma ordem hierárquica entre os homens e, por conseguinte, também entre as morais.
É um tipo de homem modesto e integralmente medíocre, o destes ingleses utilitários, e, como já disse: conquanto sejam enfadonhos, pode muito bem ter-se em conta a sua utilidade. Devia-se mesmo encorajá-los: como se tentou, em parte nos versos seguintes:
Salve, bravos carroceiros,
Sempre “quanto mais melhor”,
Cada vez mais entorpecidos de cabeça e de joelhos,
Sem entusiasmo, sem graça,
Irremediavelmente medíocres,
Sans génie et sans esprit!

Nietzsche,Humano demasiado humano

A moral de Stuart-Mill

A Leiteira, Johannes Vermeer, 1632-1675, Delft, Holanda.

Quem supõe que ...o ser superior, em qualquer coisa como circunstâncias iguais, não é mais feliz que o inferior -confunde as duas ideias muito diferentes de felicidade e contentamento. É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite são baixas tem maior probabilidade de tê-las inteiramente satisfeitas, e que um ser altamente dotado sentirá sempre que qualquer felicidade que pode esperar, tal como o mundo é constituído, é imperfeita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo forem suportáveis, e elas não o farão invejar o ser que na verdade não tem consciência das imperfeições, mas só porque não sente de maneira nenhuma o bem que essas imperfeições qualificam. É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito. E se o idiota ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados.

Stuart-Mill, O Utilitarismo

domingo, março 18, 2007

Da vida feliz

“ “ Dizemos que o prazer é o começo e o fim da vida feliz. Sabemos que ele é o bem primeiro e conforme à nossa natureza e é dele que derivamos toda a escolha e toda a rejeição. (…) Há casos em que excluímos muitos prazeres se daí resultar para nós aborrecimento, julgamos muitas dores preferíveis aos prazeres quando dos sofrimentos que suportamos resulta para nós um prazer mais elevado.
Assim, todo o prazer é, em si mesmo, um bem, mas nem todo o prazer deve ser procurado; do mesmo modo, toda a dor é um mal, mas nem toda a dor deve ser evitada.
Deste modo, para decidir, convém analisar atentamente o que é útil e o que é prejudicial, porque usamos, às vezes, o bem como se fosse um mal e o mal como se fosse um bem.”

Epicuro, Carta a Meneceu

sábado, março 17, 2007

O Problema da Liberdade

Bento de Espinosa, 1632-1677, Holanda
Pelo meu lado, digo que esta coisa é livre, que existe e age pela necessidade da sua natureza e é constrangida e determinada por uma outra a existir e a agir segundo uma modalidade precisa e determinada. Deus, por exemplo, existe livremente porque existe apenas pela necessidade da sua natureza. Vedes então que não sintuo a liberdade num decreto livre mas numa necessidade livre.
Mas regressemos às coisas criadas que, todas elas, são determinadas a existir e a agir segundo uma forma precisa e determinada. Uma pedra recebe de uma causa exterior que a atira, uma certa quantidade de movimento...todo o objecto singular é necessariamente determinado por qualquer causa exterior a existir e a agir segundo uma lei precisa e determinada...
Concebei agora, se quiserdes, que a pedra, enquanto se move, sabe e pensa que faz todo o esforço possível para continuar a mover-se. Este perdura, certamente, porque não tem consciência senão do seu esforço...julgará ser livre...
Tal é a liberdade humana que todos os homens se envaidecem de ter e que consiste em os homens serem conscientes dos seus desejos e ignorantes da causas que os determinam. É assim que uma criança julga desejar livremente o leite...Um ébrio julga dizer por decisão o que seguidamente quererá calar."
Bento de Espinosa, Carta a G.H. Shuller

Melancolia Filosófica - David Hume

Fotografia de Manuela Afonso
Sinto-me assustado e confuso com esta situação desesperante em que me encontro na minha filosofia, e imagino-me a mim mesmo como um monstro estranho e grosseiro que, não sendo capaz de se misturar e se unir em sociedade, foi expulso do convívio humano, totalmente abandonado e deixado inconsolável. De bom grado misturar-me-ia à multidão em busca de protecção e cordialidade, mas sendo possuidor de tal deformidade, não posso ousar misturar-me. Convido a outros que se unam a mim com o objectivo de constituir uma sociedade à parte, mas ninguém me atende. Todos se opõem à distância e temem a tormenta que me golpeia de todos os lados. Expus-me à inimizade de todos os metafísicos, lógicos, matemáticos e mesmo teólogos; devo alegrar-me com os insultos que tenho de suportar? Declarei a minha desaprovação de seus sistemas; devo surpreender-me por eles expressarem seu ódio da minha pessoa? Quando contemplo todas as disputas, contradições, calúnia e difamação; quando dirijo a minha atenção para o meu interior, não encontro nada senão dúvida e ignorância. Todo o mundo me opõe e me contradiz; tal é a debilidade que experimento que todas as minhas opiniões se desfazem e caem por si mesmas quando não sustentadas pela aprovação dos outros. Cada passo que dou com vacilação e cada nova reflexão me faz temer um erro ou um absurdo no meu raciocínio. Ora, com que confiança posso aventurar-me a um empreendimento tão audaz quando, além das infinitas debilidades que me são peculiares, descubro tantas outras que são comuns à natureza humana? Posso estar seguro de que ao abandonar todas as opiniões estabelecidas chegarei à verdade? E por qual critério devo distingui-la se a fortuna guia por fim os meus passos? Após o mais preciso e exacto dos meus raciocínios, não posso dar uma razão porque devo eu assentir a ele e não experimento mais do que uma forte inclinação a considerar os objectos fortemente do ponto de vista a partir do qual se me apresentam.
(...)
David Hume, Treatise of Human Nature , Conclusão, do Livro I

Conhecer o que amamos

Foto de Manuela Afonso

“ Uma criança aprende uma lição de Geografia para ter uma boa nota, ou para obedecer a ordens recebidas, ou para dar prazer aos pais, ou porque sente poesia nos longínquos países e nos seus nomes. Se nenhum destes motivos existe, não aprende a lição. Se num determinado momento ignora qual é a capital do Brasil e, se no momento seguinte a aprende, tem mais um conhecimento. Mas não está mais próximo da realidade do que estava antes. A aquisição de um conhecimento pode, em alguns casos, aproximar da verdade, mas noutros não aproxima nada. Como discernir os casos?Se um homem surpreende a mulher que ele ama e em que depositou toda a confiança, em flagrante delito de infidelidade, entra em contacto brutal com a verdade. Se sabe que uma mulher que não conhece, da qual escuta pela primeira vez o nome, numa cidade de que nunca ouviu falar, enganou o seu marido, isso não modifica de forma nenhuma a sua relação com a verdade.Este exemplo fornece a chave. A aquisição de conhecimentos aproxima da verdade quando se trata daquilo que amamos, e em nenhum outro caso.”
Simone Weil, Enraízamento
Tradução Helena Serrão

Kant:Sensibilidade e Entendimento

Immanuel Kant, 1724-1804, Alemanha
" O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos); pela primeira é-nos dado um objecto; pela segunda é pensado em relação com aquela representação (como simples determinação do espírito). Intuição e conceitos constituem, pois os elementos de todo o nossoconhecimento, de tal modo que nem conceitos sem intuição que de qualquer modo lhes corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar conhecimento.
Ambos estes elementos são puros ou empíricos. Empíricos, quando a sensação (que pressupõe a presença real do objecto) está neles contida; puros, quando nenhuma sensação se mistura à representação. A sensação pode chamar-se matéria do conhecimento sensível. Daí que a intuição pura contenha unicamente a forma sob a qual algo é intuído e o conceito puro somente a forma do pensamento de um objecto em geral.
Se chamamos sensibilidade à receptividade do nosso espírito em receber representações na medida em que de algum modo é afectado, o entendimento é, em contrapartida, a capacidade de produzir representações ou a espontaneidade do conhecimento."
Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Edição Fundação Calouste Gulbenkian,Lisboa 1985
Tradução de Manuela Pinto dos Santos
Vocabulário:
Sensibilidade:Faculdade que permite receber as representações.(vago...)
Entendimento:Faculdade de coordenar as sensações com base em categorias, de julgar e raciocinar.
Puro:Puras são as representações nas quais nada se encontra que pertença à experiência sensível. Por exemplo, poderia o excelentíssimo Sr Kant dignar-se a dar-nos um exemplo??As intuições puras do espaço e do tempo, os conceitos puros ou categorias do entendimento como Causa/efeito, Quantidade etc.
Empírico: Resultante da experiência.
Representação: Síntese do sujeito e do objecto numa consciência.

O Poder do Discurso

Michel Foucault, 1926 -1984, França
O desejo diz: " Não quereria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não quereria estar a contas com ele no que há de cortante e decisivo; quereria que à minha volta fosse tudo transparente e calmo, profundo, indefinidamente aberto, em que os outros respondessem à minha espera, e as verdades nascessem uma a uma; não teria senão de me deixar conduzir nele e por ele, como um destroço feliz."
A instituição responde:" Não tens de temer começar; nós estamos todos aí para te mostrar que o discurso está na ordem das leis; (...) e se lhe acontecer ter algum poder é de nós, e somente de nós que o recebe."
(...)Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada seleccionada, organizada e redistribuída por um certo número de processos que têm por fim conjurar-lhe os poderes e os perigos, dominar-lhe o acontecer aleatório, evitar-lhe a pesada, a temível materialidade.
Numa sociedade como a nossa conhecem-se os processos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar, é o interdito. Sabe-se que não há o direito de tudo dizer, que não se pode falar de tudo em quaisquer circunstâncias, que qulquer pessoa não pode falar seja do que for."

Michel Foucault, A ordem do Discurso

Lógica: Retórica e Falácias

FALÁCIAS DE RELEVÂNCIA
( Quando as razões são logicamente irrelevantes embora possam psicologicamente ser relevantes)
Argumentum ad baculum (apelo à força) quando ameaça o ouvinte.
Argumentum ad misericordiam (apelo à misericórdia) quando se procura comover o ouvinte.
Argumentum ad populun (apelo ao povo) quando se apela ao que a maioria das pessoas faz, ao “espírito das massas”.
Argumentum ad hominem (argumento contra a pessoa) quando para destruir o argumento de alguém tenta-se destruir a pessoa.
FALÁCIAS DAS PREMISSAS INSUFICIENTES:
(Quando a indução é fraca e as premissas embora relevantes não são suficientes para justificar a conclusão)
Argumentum ad verecundiam (apelo ao uma autoridade não qualificada). Quando para se justificar algo se recorre a uma autoridade que não é digna de confiança ou que não é uma autoridade no assunto.
Argumentum ad ignorantiam (apelo à ignorância). Quando as premissas de um argumento estabelecem que nada se sabe acerca de um assunto e se procura concluir a partir dessas premissas algo acerca do assunto.
Exemplos:Os fantasmas existem! Já provaste que não existem?
Como os cientistas não podem provar que se vai dar uma guerra global, ela provavelmente não ocorrerá.
Fred disse que era mais esperto do que Jill, mas não o provou. Portanto, isso deve ser falso..
Generalização apressada . Quando se extrai uma conclusão de uma amostra atípica e não significativa.
Exemplos: Fred, o australiano, roubou a minha carteira. Portanto, os Australianos são ladrões. (Claro que não devemos julgar os Australianos na base de um exemplo).
Perguntei a seis dos meus amigos o que eles pensavam das novas restrições ao consumo e eles concordaram em que se trata de uma boa ideia. Portanto as novas restrições são populares.
Falsa Causa. Quando a ligação entre premissas e conclusão depende de uma causa não existente.Os argumentos causais são os argumentos onde se conclui que uma coisa ou acontecimento causa outra. São muito comuns mas, como a relação entre causa e efeito é complexa, é fácil cometer erros. Em regra, diz-se que C é a causa do efeito E se e só se:Geralmente, quando C ocorre, também E ocorre.
Exemplo de uma Falsa Causa: Ganho sempre ao poker quando levo uma camisa preta. Amanhã, se levar a camisa preta também ganharei.
Também a podemos designar como falácia: post hoc ergo propter hoc , o nome em latim significa: "depois disso, logo, por causa disso". Um autor comete a falácia quando pressupõe que, por uma coisa se seguir a outra, então aquela teve de ser causada por esta.
Mais Exemplos:A imigração do Alentejo para Lisboa aumentou mal a prosperidade aumentou. Portanto, o incremento da imigração foi causado pelo incremento da properidade.
Tomei o EZ-Mata-Gripe e dois dias depois a minha constipação desapareceu...Prova: Mostre que a correlação é coincidência, mostrando: 1) que o "efeito" teria ocorrido mesmo sem a alegada causa ocorrer, ou que 2) o efeito teve uma causa diferente da que foi indicada.
Reacção em cadeia. Quando as premissas apresentam uma reacção em cadeia com uma probabilidade mínima de acontecer.
Exemplos: Se aprovamos leis contra as armas automáticas, não demorará muito até aprovarmos leis contra todas as armas, e então começaremos a restringir todos os nossos direitos. Acabaremos por viver num estado totalitário. Portanto não devemos banir as armas automáticas.
Nunca deves jogar. Uma vez que comeces a jogar verás que é difícil deixar o jogo. Em breve estarás a deixar todo o teu dinheiro no jogo e, inclusivamente, pode acontecer que te vires para o crime para suportar as tuas despesas e pagar as dívidas.
Se eu abrir uma excepção para ti, terei de abrir excepções para todos.
FALÁCIAS DE PRESSUPOSIÇÃO
Petitio principii (Petição de princípio). Quando o que devia ser aprovado pelo argumento é já suposto pelas premissas.
Exemplos:Dado que não estou a mentir, segue-se que estou a dizer a verdade.
Sabemos que Deus existe, porque a Bíblia o diz. E o que a Bíblia diz deve ser verdadeiro, dado que foi escrita por Deus e Deus não mente. (Neste caso teríamos de concordar primeiro que Deus existe para aceitarmos que ele escreveu a Bíblia.)
FALÁCIAS DE AMBIGUIDADE
( Quando se tira partido da ambiguidade de sentido de certas expressões para promover determinada conclusão)
Equívoco. Quando a conclusão de um argumento depende de uma ou mais palavras serem usadas com dois sentidos diferentes.
Anfibologia. Quando o duplo sentido é de uma frase.
FALÁCIAS POR ANALOGIA GRAMATICAL
(Quando as premissas têm uma forma gramatical semelhante às premissas de um argumento válido e daí se extrair uma conclusão)
Composição. Quando o predicado é transportado das partes para o todo.
Exemplo:Um exército de homens fortes é um exército forte.
Divisão. Quando o predicado é erradamente transportado do todo para as partes.
Exemplo:Um exército forte é um exército onde todos os homens são fortes.

Adaptado das classificações em Stephen Downes (in Crítica na Rede) e Enciclopédia de Termos lógico Filosóficos (Gradiva, Lisboa 2001).

sexta-feira, março 16, 2007

Em defesa da Filosofia



Foto de Salsolakali


No Expresso deste sábado, dia 13 de Janeiro, António Guerreiro vem a público defender a Filosofia. Considerando que hoje nada mais é que um "ornamento cultural" porque "fala um idioma que não triunfou" , entrou em desencantamento juntamente com as outras ciências humanas e, mesmo assim ,resiste, a Filosofia parece ser a mal amada do actual sistema de ensino.
Foto de M. Afonso
Razões para a sua obscuridade? "não fornece uma formação específica, não é susceptível de se adaptar aos fins da tecnologia, não forma o aluno para nada. Em suma: é um luxo... " O autor bate o pé. Exalta os ânimos. En garde! Filósofos! O momento é de luta. E é. De luta.
Parafraseando Susan Sontag no seu livro " Contra a Interpretação" quando diz: " Desde agora, e enquanto existir a consciência humana , estamos devotados à tarefa de defender a Arte" ; nós dizemos: " Desde agora, e enquanto existir a consciência humana, estamos devotados à tarefa de defender a Filosofia."

posted by feras
Saturday, December 16, 2006