quarta-feira, novembro 28, 2007

Somos responsáveis pelas nossas acções?

Gerard Dubois, Zero, 2003, França


Algumas pessoas pensam que a responsabilidade pelas nossas acções requer que elas sejam determinadas, em vez de requerer que não o sejam. O que se afirma é que para que uma acção seja algo que tenhas feito tem de ser produzida por certo tipo de causas em ti. Por exemplo quando escolheste o bolo de chocolate, isso foi algo que fizeste e não algo que se limitou a acontecer, porque preferiste comer um bolo de chocolate a comer um pêssego (...)No caso de outras acções, a explicação psicológica será mais complexa, mas haverá sempre uma - caso contrário, a acção não seria tua. Esta explicação parece querer dizer que aquilo que fizeste estava, afinal, determinado à partida. Se não estivesse determinado por nada, seria apenas um acontecimento por explicar, algo que teria acontecido a partir do nada, em vez de algo que tivesses feito..

De acordo com esta posição, a determinação causal, por si só, não ameaça a liberdade -só um certo tipo de causa o faz. Se pegasses no bolo porque alguém te obrigou, então a escolha não teria sido livre. Mas a acção livre não requer de modo algum que não aja uma causa determinante, quer antes dizer que a causa tem de ser de um certo tipo psicológico que nos é familiar.

Para mim não posso aceitar esta solução. Se pensasse que tudo o que faço é determinado pelas circunstâncias em que me encontro e pelas minhas condições psicológicas, sentir-me-ia encurralado. E se pensasse o mesmo de todas as outras pessoas, pensaria que elas eram marionetas. Não faria sentido considerá-las responsáveis pelas suas acções, tal como não considero um cão, um gato ou mesmo um elevador.

Por outro lado, não tenho a certeza se compreendo como é que a responsabilidade pelas nossas escolhas faz sentido se elas não são determinadas. Não é claro o que quer dizer que eu determino a escolha se nada em mim a determina. Portanto, talvez o sentimento de que podias ter escolhido um pêssego, em vez de uma fatia de bolo, seja uma ilusão filosófica, que não podia ser correcta fosse qual fosse o caso.

Thomas Nagel, Que quer dizer tudo isto? (Lisboa, Gradiva, 1995).

terça-feira, novembro 27, 2007

A convicção da liberdade

Luis Rocha, S. Tomé

Se alguém tentar expressar em palavras a diferença entre a experiência de percecionar e a experiência de agir é que, na perceção, se tem esta sensação: "Isto está a acontecer-me", e, na ação, a sensação é a seguinte: "Faço isto acontecer". Mas a sensação de que "Faço isto acontecer" traz consigo a sensação de que "poderia fazer alguma coisa mais". Eis a fonte da inabalável convicção da nossa vontade livre. Saliento que estou a discutir a acção humana normal. Se alguém está a braços com uma grande paixão, ou se encontra numa cólera imensa, por exemplo, perde esse sentido da liberdade e pode mesmo surpreender-se ao descobrir o que está a fazer.

Desde que atentemos nesta característica da experiência do agir, muitos dos fenómenos intrigantes que mencionei se explicam. Por que é que, por exemplo, o homem no caso da sugestão pós-hipnótica não está a agir livremente no sentido em que nós somos livres, mesmo que ele possa pensar que está a agir livremente? A razão é que, num sentido importante, ele não sabe o que está a fazer. A sua efectiva intenção na acção é completamente inconsciente. As opções que ele vê disponíveis para si são irrelevantes para a motivação efectiva da sua acção. Note-se também que os exemplos compatibilistas do comportamento "forçado" implicam ainda, em muitos casos a experiência da liberdade. Se alguém me diz para fazer algo apontando-me uma arma, mesmo em tal caso eu tenho uma experiência que tem o sentido dos cursos alternativos nela incrustados. Assim, a experiência da liberdade é uma parte essencial da experiência do agir.

Isto explica também, creio eu, porque é que não podemos abandonar a nossa convicção de liberdade. Achamos fácil abandonar a convicção de que a Terra é plana logo que compreendemos a prova para a teoria heliocêntrica do sistema solar. Mas não podemos de modo semelhante abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Efectivamente não podemos agir de outra maneira senão com base na suposição da liberdade.

John Searle, Mente, Cérebro e Ciência (Lisboa, Ed.70, 1984).

quinta-feira, novembro 22, 2007

Três perspectivas sobre a Filosofia.

Cindy Sherman, 1978

Acabei de descrever um "menu" de cinco problemas filosóficos centrais: Deus, o conhecimento, a mente, a liberdade e a Ética. O que faz de todos eles problemas filosóficos?Em vez de dar exemplos, podemos dizer algo de mais geral e completo acerca do que distingue a Filosofia de outras áreas de investigação? Vou apresentar três teorias acerca do que é característico de pelo menos alguns problemas filosóficos.
Muitos dos problemas que acabei de descrever, envolvem questões fundamentais de justificação. Há muitas coisas nas quais acreditamos sem hesitação ou reflexão. Estas crenças que são como que uma segunda natureza, chamam-se por vezes "senso-comum". O senso-comum diz que os sentidos (visão, audição, tacto, paladar, olfacto) nos dão conhecimento do mundo em que habitamos. O senso-comum também diz que as pessoas agem frequentemente com base no "seu livre-arbítrio". O senso-comum sustenta ainda que algumas acções são correctas e outras não. A Filosofia examina os pressupostos fundamentais que temos acerca de nós mesmos e do mundo em que habitamos e procura determinar se esses pressupostos são racionalmente defensáveis.
Outra característica de muitas questões filosóficas é que elas são muito gerais. Relativamente ao problema do conhecimento não estamos a perguntar se os seres humanos sabem quão velha é a crosta terrestre ou porque sobe a inflação. Estas questões acerca do conhecimento são específicas da geologia e da economia. Em vez disso, o filósofo quer saber se os seres humanos sabem alguma coisa.
(...)
A terceira perspectiva acerca do que é a filosofia sustenta que esta é um esforço de clarificação de conceitos. Considere-se questões filosóficas características como as seguintes: O que é o conhecimento? O que é a liberdade? O que é a justiça? Cada um desses conceitos aplica-se a certas coisas mas não a outras. O que têm em comum as coisas subsumidas pelo conceito e em que medida se distinguem das que estão dele excluídas?

Elliott Sober, Core questions in philosophy. A text with readings (New York, 1991). Tradução de Carlos Marques.


quarta-feira, novembro 21, 2007

Liberdade e humanidade.


Rosângela Rennó, Cicatriz

Descobrimo-nos, pois, num mundo carregado de exigências, no seio de projectos em curso de realização: escrevo, vou fumar, tenho encontro marcado esta noite com o Pedro, não posso esquecer-me de responder a Simão, não tenho o direito de esconder por mais tempo a verdade a Cláudio. Todas estas pequenas expectativas passivas do real, todos estes valores banais e quotidianos tiram o seu sentido, a bem dizer, de um primeiro projecto de mim mesmo que é como que a minha escolha de mim mesmo no mundo.

O homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto modo de ser (...) A responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das consequências da nossa liberdade. O que acontece comigo acontece por mim (...) Além disso, tudo aquilo que me acontece é meu; deve entender-se, por isso, em primeiro lugar, que estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um homem por causa de outros homens e por ele mesmo não pode ser senão humano. As mais atrozes situações de guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano; não há situação inumana (...) A situação é minha por ser a imagem da minha livre escolha de mim mesmo.

Jean Paul Sartre, O ser e o nada (Vozes, S. Paulo,s.d.).

sábado, novembro 17, 2007

Livre-arbítrio


Diane Arbus, Jovem com rolos


‘Livre arbítrio’ é o nome convencional de um tópico que é mais adequadamente discutido sem referência ao arbítrio (vontade). As suas questões centrais são ‘O que é agir (ou escolher) livremente?’, e ‘O que é ser responsável pelas nossas acções (ou escolhas)?’ Estas duas questões estão ligadas intimamente, pois a liberdade de acção é necessária, embora não suficiente, para a responsabilidade moral.

Os filósofos dão respostas muito diferentes a estas questões e, portanto, também a duas questões mais específicas acerca de nós: (1) Somos agentes livres? e (2) Podemos ser responsáveis por aquilo que fazemos? As respostas a (1) e (2) vão de ‘sim, sim’ a ‘não, não’ – passando por ‘sim, não’ e vários graus de ‘talvez’, ‘possivelmente’ e ‘num certo sentido’. (O quarto par das respostas directas, ‘não, sim’, é raro, mas parece ser aceite por alguns protestantes). Entre os que respondem ‘sim, sim’ são proeminentes os
compatibilistas, que sustentam que o livre arbítrio é compatível com o determinismo. Sucintamente, o determinismo é a teoria que diz que tudo o que ocorre é exigido pelo que já aconteceu anteriormente de um modo tal que nada pode acontecer de um modo diferente daquele que acontece. Segundo os compatibilistas, a liberdade é compatível com o determinismo, porque a liberdade é fundamentalmente apenas uma questão de não ser constrangido ou impedido em certos sentidos quando agimos ou escolhemos. Assim seres humanos adultos normais em circunstâncias normais são capazes de agir e escolher livremente. Ninguém lhes aponta uma arma à cabeça. Não estão drogados, agrilhoados ou sujeitos a compulsão psicológica. São, portanto, completamente livres para escolher e agir mesmo que toda a sua estrutura física e psicológica seja inteiramente determinada por coisas pelas quais não são de maneira nenhuma responsáveis – começando pela herança genética e pela educação inicial.

Os
incompatibilistas sustentam que a liberdade não é compatível com o determinismo. Salientam que se o determinismo é verdade, então cada uma das nossas acções foi determinada para acontecer tal como aconteceu antes de nós termos nascido. Sustentam que não podemos ser, neste caso, considerados verdadeiramente livres e, consequentemente, moralmente responsáveis pelas nossas acções. Pensam que o compatibilismo é um ‘miserável subterfúgio…, um insignificante malabarismo de palavras.’, como diz Kant na sua Crítica da Razão Prática (1788). O compatibilismo não consegue de modo nenhum satisfazer as nossas convicções espontâneas acerca da natureza da responsabilidade moral.

O argumento dos
incompatibilistas é um bom argumento. Os incompatibilistas podem ser dividos em dois grupos. Os libertários respondem ‘sim, sim’ às perguntas (1) e (2). Sustentam que somos de facto livres e agentes moralmente responsáveis e que, portanto, o determinismo tem de ser falso. A sua grande dificuldade é explicar de que vale afirmar que o determinismo é falso quando se trata de estabelecer o nosso livre agir e a nossa responsabilidade moral. Suponhamos que nem todo o acontecimento é determinado, e que alguns acontecimentos ocorrem aleatória ou fortuitamente. Como é que a nossa pretensão à responsabilidade moral pode ser reforçada pela suposição de que o que nós somos e o que são as nossas acções é da ordem do fortuito ou do aleatório?

O segundo grupo de
incompatibilistas é menos optimista. Responde ‘não, não’ às questões (1) e (2). Concorda com os libertários que a verdade do determinismo inviabiliza a genuína responsbilidade moral, mas argumentam que a falsidade do determinisno de nada adianta. Assim, concluem que não somos genuinamente agentes livres ou moralmente responsáveis seja o determinismo falso ou verdadeiro. Um dos seus argumentos pode ser sumariado da seguinte maneira: quando agimos, agimos como agimos devido ao que somos. Portanto, para sermos responsáveis moralmente pelas próprias acções teríamos de ser verdadeiramente responsáveis pelo que somos: teríamos de ser causa sui, ou causa de nós mesmos, pelo menos no que respeita a certos aspectos mentais cruciais. Mas nada pode ser causa sui – nada pode ser a nenhum respeito a última causa de si mesmo. Logo, nada pode ser na verdade moralmente responsável.

Desenvolvido apropriadamente, este argumento contra a responsabilidade moral parece ser muito forte. Porém, em muitos seres humanos a experiência da escolha dá lugar a uma convicção de responsabilidade absoluta que não é abalada pela reflexão filosófica. Esta convicção é a mais profunda e inesgotável fonte do problema do livre arbítrio: aparecem continuamente poderosos argumentos que parecem mostrar que não podemos ser moralmente responsáveis naquele sentido fundamental que habitualmente adoptamos; mas contra estes persistem razões de ordem psicológica igualmente poderosas que nos fazem crer que em última análise somos moralmente responsáveis.


Edward Craig (ed.) The Shorter Routledge Encyclopedia of Philosophy (London and New York, 2005). Tradução de Carlos Marques.

O problema da identidade pessoal

Diane Arbus, Twins


Suponhamos que num julgamento por homicídio, você decide representar-se a si próprio. Afirma que não é o assassino; o assassino foi uma pessoa diferente de si. O juiz pede-lhe para apresentar evidência do que diz. Possui fotografias de um intruso de bigode? Não coincidem as suas impressões digitais com as que foram encontradas na arma do crime? É capaz de mostrar que o assassino era canhoto? Não, responde você. A sua defesa segue uma outra via. Eis os seus argumentos finais:

Concedo que o assassino é dextro, como eu; que as suas impressões digitais coincidem com as minhas e que, como eu, ele não usa barba. Nas fotografias registadas pela câmara de vigilância introduzidas pela defesa, o assassino tem exactamente a minha aparência. Não, não tenho nenhum irmão gémeo. De facto, admito que me lembro de ter cometido o crime! Mas o assassino não é a mesma pessoa que eu, visto que mudei. A banda rock preferida dessa pessoa eram os Led Zeppelin e eu actualmente prefiro Todd Rundgren. Essa pessoa tinha apêndice, mas eu não; foi-me retirado a semana passada. Essa pessoa tinha 25 anos, eu tenho 30. Não sou a mesma pessoa que esse assassino de há cinco anos. Portanto, o senhor não me pode punir, pois ninguém é culpado por um crime cometido por outra pessoa.

É óbvio que nenhum tribunal aceitaria esta argumentação. Mas o que há nela de errado? Quando alguém muda, física ou psicologicamente, não é verdade que ‘não é a mesma pessoa’?
Sim, mas a frase ‘a mesma pessoa’ é ambígua. Podemos falar de uma pessoa ser a mesma que outra em dois sentidos. Quando uma pessoa se converte a uma religião ou quando rapa o cabelo, ela é dissemelhante em relação ao que era anteriormente. Não permanece, digamos, qualitativamente a mesma pessoa. Portanto, num certo sentido ela não é ‘a mesma pessoa’. Porém, num outro sentido ela é a mesma pessoa: nenhuma outra pessoa tomou o seu lugar. Este segundo tipo de mesmidade chama-se mesmidade numérica, posto que é o género de mesmidade expressa pelo sinal de igualdade nas proposições matemáticas como ‘2+2=4’: as expressões ‘2+2’ e ‘4’ representam o mesmo número. Você é numericamente a mesma pessoa que era quando bebé, não obstante ser qualitativamente diferente. Os argumentos finais do julgamento confundem os dois tipos de mesmidade. Você mudou efectivamente desde que o crime foi cometido; qualitativamente não é o mesmo. Contudo, numericamente você e o assassino são a mesma pessoa; nenhuma outra pessoa assassinou a vítima. É verdade que ‘ninguém é culpado por um crime cometido por outra pessoa’. Mas ‘outra pessoa’ significa neste caso alguém numericamente distinto de si.

Earl Conee & Theodore Sider, Riddles of Existence. A Guided Tour of Metaphysics. Oxford & New York, 2005.
Tradução Carlos Marques.

terça-feira, novembro 13, 2007

Ao aprendiz de filósofo


Ora se o fundamental da Filosofia é, de facto, a crítica, e se a Filosofia deve ser estudada, não pelo mérito das respostas precisas sobre um certo número de questões primárias, mas pelo valor que em si mesma ela assume, para a cultura do espírito, a mera discussão de tais problemas, -segue-se que é ideia inteiramente absurda a de se dar a alguém uma iniciação filosófica pela pura transmissão das respostas precisas com que pretendeu resolver esses tais problemas um determinado autor ou uma certa escola. Deverá pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas a discussões ulteriores. (...) Repito: seja a Filosofia para o aprendiz de filósofo, não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma actividade de elucidação dos problemas. É esta actividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. (...) Pode ser muito útil para a vida prática o simples enunciado de uns tantos teoremas de matemática: porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.

Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito, de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro de nos mantermos aí eternamente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação, - conclua que ele próprio é que não percebe, e que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandroso,mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e que se lhe impõe portanto uma atenção maior...


António Sérgio, in Os problemas da Filosofia,de Bertrand Russell, Prefácio do tradutor, pag.9, 10,Arménio Amado Ed. Coimbra,1974


Vocabulário:


Dogmático/Dogmas: aceitar uma tese como verdadeira por causa de outra crença ou porque se confia na autoridade do autor.

cerrar: fechar.

propagandear: fazer acto de propaganda, publicidade.

teoremas: verdades demontráveis matematicamente.

enunciados: exposição de uma proposição a definir, de uma ideia.

escolho: obstáculo.

meandroso: que tem meandros, isto é, partes menos claras.

facetado: com muitas faces.

verrumante: que espicaça, que faz pensar.
Verrume=parafuso

quarta-feira, novembro 07, 2007

Aprender a pensar


O jovem que completou a sua instrução escolar habituou-se a aprender. Agora pensa que vai aprender filosofia. Mas isso é impossível, pois agora deve aprender a filosofar (...) Para que pudesse aprender filosofia teria de começar por já haver uma filosofia. Teria de ser possível apresentar um livro e dizer: "Veja-se, aqui há sabedoria, aqui há conhecimento em que podemos confiar. Se aprenderem a entendê-lo e a compreendê-lo, se fizerem dele as vossas fundações e se construírem com base nele, daqui para a frente, serão filósofos." Até me mostrarem tal livro de filosofia, um livro a que eu possa apelar, (...) permito-me fazer o seguinte comentário: estaríamos a trair a confiança que o público nos dispensa se, em vez de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado e em vez de os educar de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva própria mais amadurecida, se em vez disso os enganássemos com uma filosofia alegadamente já acabada e cogitada por outras pessoas em seu benefício. Tal pretensão criaria a ilusão de ciência. Essa ilusão só em certos lugares e entre certas pessoas é aceite como moeda legítima. Contudo, em todos os outros lugares, é rejeitada como moeda falsa. O método de instrução próprio da filosofia é zetético, como disseram alguns filósofos da antiguidade. Por outras palavras, o método da filosofia é o método da investigação. Só quando a razão já adquiriu mais prática, e apenas em algumas áreas, é que este método se torna (...) decisivo.

Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a nossa instrução não deve ser considerado o paradigma do juízo. Ao invés, deve ser encarado como uma ocasião para cada um de nós formar um juízo sobre ele, e até mesmo, contra ele. O que o aluno realmente procura é a proficiência no método de reflectir e fazer inferências por si. E só essa proficiência lhe pode ser útil. Quanto ao conhecimento positivo que ele talvez possa vir a adquirir ao mesmo tempo - isso terá de ser considerado uma consequência acidental. Para que a colheita de tal conhecimento seja abundante, basta que o aluno semeie em si as fecundas raízes deste método.

Imannuel Kant, Anúncio do programa do Semestre de Inverno de 1765-1766, tradução Desidério Murcho, pags.306, 307

Vocabulário:
zetético: método de investigação ; arte de procurar
Proficiência: elevada competência, mestria

terça-feira, novembro 06, 2007

A Filosofia e a análise racional das nossas crenças.

Rembrandt, A lição de anatomia do Dr Nicolas Tulp, 1632, Haia

“ O que significa especificamente, dizer que a filosofia faz a 'crítica das nossas crenças'? Para começar admitamos que a maior parte das nossas crenças sobre questões vitais como a religião e a moralidade são manifestamente acríticas. Faz uma pausa para avaliar as tuas crenças sobre estas questões, perguntando-te por que razão vieste a ter as crenças que tens. Na maior parte dos casos, podemos afirmar com segurança, irás descobrir que 'não vieste a ter' tais crenças como resultado de uma reflexão prolongada e séria sobre elas. Pelo contrário, aceitaste-as com base em alguma autoridade, isto é, um indivíduo qualquer, ou instituição, que te transmitiu essas crenças.A autoridade pode ser os teus pais, professores, Igreja ou amigos. Muitas das nossas crenças são impostas pelo que chamamos vagamente 'sociedade' ou 'opinião pública'. Estas autoridades, regra geral, não te impõem as suas convicções. Ao invés, absorveste essas crenças a aprtir do 'clima de opinião' no qual te desenvolveste. Assim, a maior a maior parte das tuas crenças sobre questões como a existência de Deus ou sobre se por vezes é correcto mentir são artigos intelectuais em 'segunda mão'.

Mas isto não significa, claro, que essas crenças sejam necessariamente falsas ou que não sejam sólidas. Podem perfeitamente ser sólidas. Os artigos em 'segunda mão' por vezes são muito bons. O que está em causa, contudo, é isto: uma crença não é verdadeira simplesmente porque uma autoridade qualquer diz que o é. Supõe que, perante uma certa crença, eu te perguntava: 'como sabes que isso é verdade?' Certamente que não seria satisfatório responder 'Porque os meus pais (professores, amigos) me disseram'. Isto, em si, não garante a verdade da crença, porque tais autoridades se enganaram muitas vezes. Verificou-se que muitas das crenças sobre medicina dos nossos antepassados, que eles transmitiram às gerações posteriores, eram falsas. (...)

E aqui que entra a actividade crítica da Filosofia.
A filosofia recusa-se a aceitar qualquer crença que as provas experimentais e o raciocínio não mostrem que é verdadeira. Uma crença que não possa ser estabelecida por este meio não é digna da nossa fidelidade intelectual e é habitualmente um guia incerto da acção. A Filosofia dedica-se, portanto, ao exame minucioso das crenças que aceitámos acriticamente de várias autoridades. Temos de nos libertar dos preconceitos e emoções que muitas vezes obscurecem as nossas crenças. A Filosofia não permitirá que crença alguma passe a inspecção só porque tem sido venerada pela tradição ou porque as pessoas acham que é emocionalmente compensador aceitar essa crença. A filosofia não aceitará uma crença só porque se pensa que é ‘simples senso-comum’ ou porque foi proclamada por homens sábios. A filosofia tenta nada tomar como garantido e nada aceitar por fé. Dedica-se à investigação persistente e de espírito aberto, para descobrir se as nossas crenças são justificadas, e até que ponto o são. Deste modo, a filosofia impede de nos afundarmos na complacência mental e no dogmatismo em que todos os seres humanos têm tendência para cair.”

Jerome Stolnitz, Estética e Filosofia da Crítica de Arte, 1960