terça-feira, julho 15, 2008

O mito da alma e de Eros

William - Adolphe Bouguerou, Eros e Psiché, 1825/1905, França

Com efeito, a alma estava outrora repleta de penas e eis que, agora sente a dor própria do crescimento das asas! As impressões que sofre são exacatamente como as que derivam do nascimento dos dentes: dores e irritação nas gengivas.

Quando de repente, contempla a beleza de um jovem, sente um fluxo de partículas dele provenientes, de onde nasce o que se designa por onda de desejo (hímeros) e a alma encontra assim remédio para as suas dores, e assim nasce a alegria.

Mas quando se encontra separada do objecto amado, sente-se fenecer. As aberturas pelas quais saem as asas começam a murchar e, logo se fecham, interrompendo o seu crescimento.

Por sua vez, a asa, feita prisioneira no interior, juntamente com a força do desejo, começa a palpitar fazendo pressão sobre cada uma das saídas. Assim atormentada, a alma abandona-se sem resistência à dor, ao mesmo tempo que a recordação do objecto belo leva-a a deixar-se invadir pelo frenesim. A mistura destes dois sentimentos, atormenta-a pois verifica ser incapaz de vencer a situação. Neste delírio em que foi lançada, não pode repousar, nem de noite, nem de dia, e impelida pela paixão lança-se em busca dos lugares onde, segundo julga, pode encontrar a Beleza. Quando a consegue rever e dirigir-lhe a força do desejo, os poros, ainda obstruídos começam a abrir-se. A alma retoma a respiração, deixa de sentir o aguilhão da dor e goza, nesse instante a volúpia mais deliciosa. Esta é uma das coisas das quais não se pode afastar voluntariamente, e nada existe que possa merecer-lhe tanta atenção como o objecto amado. Nem mãe, nem irmãos, nem camaradas! Tudo é esquecido e a perda dos bens materiais, por culpa da sua incúria, não tem para a alma a menor importância. Os bons costumes e as boas maneiras que até aí se comprazia em praticar, são vistas com o mesmo desdém. Está disposta à escravidão, a repousar em qualquer parte desde que seja a mais próxima possível do seu amado. Efectivamente, não contente em venerar o ser que possui a Beleza, ela encontra nele e só nele, o remédio para a sua grande dor. Os homens, belo jovem a quem dirijo este discurso, denominam de amor este estado (...)

Platão, Fedro, 251c - 252b.


Nota : O Amor alado, na etimologia da palavra grega, dar asas, dar asas ao desejo.
O amor surge como uma iniciação da alma para a procura do saber, que se inicia com a libertação (servida no texto pela imagem das asas) das penas ou escravidão terrena a que estaria sujeita a alma enquanto condicionada pelo corpo.

terça-feira, julho 08, 2008

Sobre Eros

Apolo, escultura grega de Polykleitos de Elder, sec.V a.c ( cópia em mármore romana)

[Diotima] “ (…) Deste modo, [Eros] não é por natureza mortal nem imortal. No mesmo dia, tanto floresce e vive, segundo está senhor dos seus recursos, como morre para voltar à vida, graças à natureza de seu pai. Porém, os seus achados escapam-lhe continuamente das mãos, de tal sorte que nunca se encontra na indigência nem na riqueza: antes, num meio termo que é, de
igual modo, entre sabedoria e ignorância. A verdade é esta: nenhum deus ama o saber ou deseia ser sábio (pois que já o é), nem qualquer outro que possua o saber se dedica à filosofia, do mesmo modo que não são também os ignorantes que a ela se dedicam ou que aspiram a ser
sábios! A ignorância acarreta efectivamente consigo este peso: é que os que julgam possuir em suficiência beleza, bondade e inteligência, nada disso possuem: e quem se não crê destituído não aspira, consequente-mente, a um bem de cuja falta se não apercebe.”

[Sócrates] “Vamos, Diotima” interpelei-a. “Como qualificaremos então esses que se dedicam à filosofia, se não são sábios nem ignorantes?”

Ela exclamou: “Isso salta até aos olhos de uma criança! São intermediários entre ambos os extremos, como indubitavelmente sucede com o Amor: pois se a sabedoria se conta entre as mais belas coisas e se o Amor é amor do Belo, forçosamente terá de ser filósofo e, como filósofo, situar-se no meio termo entre sábio e ignorante. Ora, a causa de tais caracterfsticas reside justamente na sua origem: de uma parte, um pai sábio e engenhoso; de outra, uma mãe desprovida de sabedoria e de recursos. E aí tens, pois, a natureza deste génio. Quanto às ideias que tu fazias do Amor, não é assim coisa tão extraordindria: tanto quanto posso avaliar das indicações que me deste, o que tu vias no Amor era “o objecto amado” e não “o amante”. Por isso mesmo, se não estou em erro, ele incarnava aos teus olhos a suprema forma de beleza - exactamente porque ao amado compete ser belo, delicado, perfeito e feliz em sumo grau. 

Platão, O Banquete, 204 a- c (Lisboa, s. d.). Tradução Maria Teresa Schiappa Azevedo.

quarta-feira, julho 02, 2008

O tabu: proibição e tentação.

Arthur Leipzig, Diversos, East River, 1948

Explicámos o poder de contaminação, que é inerente ao tabu, pela capacidade de induzir em tentação, de instigar à imitação. Parece não se coadunar com isto o facto de a capacidade de contaminação do tabu se manifestar, sobretudo, na transferência para objectos que, consequentemente, passam a ser, eles próprios, portadores de tabu.


Esta capacidade de transferência do tabu reflecte a tendência inconsciente, já apontada na neurose, para se deslocar, por vias associativas, para objectos sempre novos. Somos, assim, alertados para o facto de que à perigosa força mágica do mana correspondem dois géneros de capacidades mais reais: a de lembrar ao homem os seus desejos proibidos e uma outra, que se nos afigura mais significativa, a capacidade de o induzir a violar a proibição para satisfazer esses seus desejos. Ambas acabam, afinal, por se fundir numa só, se admitirmos como sendo próprio de um psiquismo primitivo, que o despertar da lembrança de um acto interdito esteja ligado ao despertar da tendência para o executar. Nessa conformidade, a lembrança e a tentação coincidem mais uma vez. Há que admitir, igualmente, que, se o exemplo de um homem que transgride a proibição induz outro a cometer a mesma falta, isso se deve a que a desobediência ao proibido se propaga como um contágio, tal como o tabu de uma pessoa se transfere para um objecto e deste para outro.


Se a violação de um tabu pode ser reparada por meio de expiação ou penitência, as quais, afinal, significam uma renúncia a qualquer tipo de bens ou a uma liberdade, isso só prova que a obediência às regras do tabu constituía, ela própria, uma renúncia a algo que se teria desejado ardentemente. A dispensa de uma renúncia é substituída por uma renúncia imposta em relação a qualquer outro objecto. No que respeita ao cerimonial do tabu, poderíamos concluir que a penitência tem uma origem muito mais remota que a purificação.


...o tabu é uma interdição antiquíssima, imposta exteriormente (por uma autoridade) e que visa os mais intensos desejos do homem. O desejo de violar essa interdição está sempre presente no seu inconsciente. aquele que obedece ao tabu tem uma atitude ambivalente perante o que o tabu proíbe. A força mágica atribuída ao tabu deve-se à sua capacidade de induzir o homem em tentação. Essa força actua como uma contaminação, porque o exemplo é contagioso e porque o desejo proibido se desloca, no domínio do inconsciente, para outro objecto. A remissão da transgressão do tabu por meio de uma renúncia constitui a prova de que na base da obediência ao tabu está uma renúncia.


Sigmund Freud, Totem e Tabu, Relógio d'Água, Lx, 2001, pag.58,59

Tradução de Leopoldina Almeida