terça-feira, março 11, 2014

Os princípios da justiça para John Rawls



Como podes ver, a concepção geral de justiça de Rawls deixa estes problemas por resolver. Será então indispensável um sistema de prioridades que justifique a opção por um dos bens em conflito. E nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro, é porque temos uma razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que outro. Nesse sentido, Rawls divide a sua concepção geral em três princípios:

Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.
Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto se a existência de desigualdades económicas e sociais gerar o maior benefício para os menos favorecidos.
Princípio da oportunidade justa: As desigualdades económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades.
Estes três princípios formam a concepção de justiça de Rawls. Mas por si só estes princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma espécie de guia nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de prioridades entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade absoluta sobre o bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um liberal. A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades, são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por exemplo, se já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes abdicar da tua liberdade e aceitar a restrição de não poderes sair de uma exploração agrícola na condição de passares a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares de gozar de liberdade de expressão para um dia teres a vantagem económica de não te serem cobrados impostos.
Em cada um dos princípios mantém-se a ideia de distribuição justa. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidade ou rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Isto faz de Rawls um liberal com preocupações igualitárias. Considera mais uma vez alguns exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais dotados o acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e evitando despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que a maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia e investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas doenças e desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos favorecidos.
Faustino Vaz

terça-feira, março 04, 2014

Verdade e sentido


As questões levantadas pela nossa sede de conhecimento provêm da nossa curiosidade acerca do mundo, do nosso desejo de investigar tudo o que é dado ao nosso aparelho sensorial. A famosa primeira frase da Metafísica de Aristóteles, "Pantes anthrõpoi tou aidenai orengotai physei." - "Todos os homens desejam por natureza saber." -quando traduzida literalmente diz: "Todos os homens desejam ver e ter visto (ou seja, conhecer)", e Aristóteles acrescenta imediatamente: "Uma indicação disto é o seu amor pelos sentidos; porque eles são amados por si sós, completamente à parte do seu uso".As questões levantadas pelo desejo de saber são em princípio todas respondíveis pela experiência e raciocínio de senso comum; estão expostas a erro e ilusão corrigidas da mesma maneira que as percepções e experiências sensoriais. Mesmo a obstinação quanto ao progresso da ciência moderna que continuamente se corrige a si própria deitando fora as respostas e reformulando as perguntas, não contradiz o objecto basilar da ciência - ver e conhecer o mundo como é dado aos sentidos - e o seu conceito de verdade é derivado da experiência de senso comum da evidência irrefutável, a qual elimina o erro e a ilusão. Mas as questões levantadas pelo pensar são tais que é da própria natureza da razão levantá-las - questões de sentido - são todas irrespondíveis pelo senso comum e pelo refinamento deste a que chamamos ciência.(...) O intelecto, o órgão do conhecimento e da cognição, é ainda deste mundo; nas palavras de Duns Eccoto, cai debaixo da influência da natureza, cadit sub natura, e transporta com ele todas as necessidades às quais está sujeito um ser vivo, dotado de órgãos dos sentidos e capacidade cerebral. O contrário de necessidade não é contingência ou acidente mas sim liberdade. (...)
 Por outras palavras não existem verdade para além e acima das verdades factuais; todas as verdades científicas são verdades factuais, não excluindo aquelas que são geradas pela pura capacidade cerebral e expressas em uma linguagem de signos especialmente concebida, e só as declarações factuais são empiricamente verificáveis. Assim, a frase "Um triângulo ri" não é não verdadeira mas sem sentido, ao passo que a velha demonstração ontológica da existência de Deus, como a encontramos em Anselmo de Cantuária, não é válida e  neste sentido não é verdadeira, mas é plena de sentido. "

Hannah Arendt, A vida do espírito, Vol.I, Pensar,Instituto Piaget,2011, Lx

Foto: Siskind

segunda-feira, março 03, 2014

Rawls:argumento intuitivo da igualdade de oportunidades



Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social ou raça. Intuitivamente não achamos plausível que uma mulher, pelo simples facto de ser mulher, encontre resistências à possibilidade de liderar um banco. Estas são circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades actuais a ideia de que as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de os menos favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é desfavorecido pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas suas próprias mãos. Os sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um, ou da falta dele. É assim que a maioria pensa.
Mas será que esta visão dominante da igualdade de oportunidades respeita a tua intuição de que o destino das pessoas deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas circunstâncias em que se encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão: reconhecendo apenas diferenças nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos talentos naturais, a visão dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja determinado pela sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de uma pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o destino de cada um seja determinado por desigualdades sociais, também o será se for determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma injustiça neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais. E neste caso não poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa com um QI baixo.
O que propõe Rawls em alternativa? Que a noção comum de igualdade de oportunidades passe a reconhecer as desigualdades naturais. Como? Dispondo a sociedade da seguinte maneira: quem ganha na "lotaria" social e natural dá a quem perde. De acordo com Rawls, ninguém deve beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é injusto permitir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles que a "lotaria" natural não favoreceu. E deste modo justificamos o princípio da diferença. Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades parte da intuição de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente considerada obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que daí resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende que o princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da diferença.
Faustino Vaz

sábado, março 01, 2014

O argumento do contrato social hipotético: John Rawls




Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto social, os teus gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua sorte na distribuição dos talentos naturais (como a inteligência, a força e a beleza) e que nem sequer conheces a tua concepção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Mas não és o único que se encontra nesta posição original; pelo contrário, todos estão envoltos neste véu de ignorância. Rawls afirma que esta situação hipotética descreve uma posição inicial de igualdade e nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da igualdade de oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que melhor dá conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam maneira de saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais. Nessa medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido.
Apesar de não sabermos qual será a nossa posição na sociedade e que objectivos teremos, há coisas que qualquer vida boa exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou poderás ter uma vida boa como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares serão bastante diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas coisas Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais e os naturais. Os bens primários sociais são directamente distribuídos pelas instituições sociais e incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os poderes, e os direitos e as liberdades. Os bens primários naturais são influenciados, mas não directamente distribuídos, pelas instituições sociais e incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a imaginação e os talentos naturais. Podes achar estranho que as instituições sociais distribuam directamente rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são instituições sociais.
Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas querem princípios de justiça que lhes permitam ter o melhor acesso possível aos bens sociais primários. E, como não sabem que posição têm na sociedade, identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar dela. Desse modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de todos e garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três famílias, a pessoa que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se queremos assegurar um jogo de futebol justo, a pessoa que estabelece as regras não pode saber se a sua equipa está a fazer um bom campeonato ou não. Imagina os seguintes padrões de distribuição de bens sociais primários em mundos só com três pessoas:
Mundo 1: 9, 8, 3;
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.
Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão? Lembra-te que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo seguro? Tentas maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior resultado possível? Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá ao mundo 3. A escolha racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida como "maximin", dado que procura maximizar o mínimo.

Faustino Vaz