quinta-feira, maio 29, 2014

O Sentido de existir.




A filosofia da existência não se opõe ao pensamento, contanto que este pensamento seja intenso e apaixonado. Recordemos que Kierkegaard definiu a existência, na medida em que pode ser definida, como uma energia de pensamento. Podemos mesmo dizer que o pensamento existencial é reflexão; não é verdade que a reflexão sufoque a originalidade: pode aguçá-la; e Kierkegaard quererá unir a reflexão ao caráter autêntico, originário do pensamento naquilo a que ele chama um sério imediato, uma juventude séria, uma primitividade adquirida, uma imediação amadurecida. Sem dúvida, em certos momentos, ele diz, para se opor aos cartesianos: «Quanto mais penso, menos sou, e quanto mais sou, menos penso»; e não é menos verdade que só há real existência se houver a reflexão da existência. Há aqui dois termos anti-téticos; há uma luta de morte entre o pensamento e a existência; mas esta luta de morte constitui precisamente a existência. Kierkegaard diz: «Se eu penso a existência, eu abulo-a. Mas aquele que a pensa existe. A existência encontra-se posta ao mesmo tempo que o pensamento.» Não podemos conceber a existência, nem eliminá-la, nem eliminar o seu pensamento. Reside aí o paradoxo e, simultaneamente, a essência do pensamento existencial.

Uma vez que chegamos aí, que devemos fazer? Poderemos voltar às coisas «deste mundo» ? Foi o que Kierkegaard pensou e o que quis efectuar pela ideia de repetição. Trata-se de reencontrar «este mundo» depois de ter estado em contacto com o paradoxo, com o absurdo, com Deus.

Devemos escolher e devemo-nos escolher, escolhermo-nos tal qual somos, devemos assumir o próprio destino. é o que ele chama imediação amadurecida, que só pode existir quando se passou pela mediação divina. Devemo-nos escolher, mas simplificando-nos constantemente, pela própria paixão, pela paixão do próprio absoluto.

Trata-se sempre de se unificar, de se simplificar, porque o simples é mais elevado que o complexo. As crianças têm uma multidão de ideias, mas aquele que medita realmente, um Sócrates, por exemplo, só tem uma ideia. Aumentar os nossos conhecimentos, diz Kierkegaard, reencontrando uma fórmula neoplatónica, é muitas vezes diminuirmo-nos nós próprios.

Devemos entretanto acrescentar que, ao mesmo tempo, Kierkegaard sabe muito bem que ele próprio é feito de dualidades, de diversidades, de diversidades infinitas. Há assim em Kierkegaard um conflito entre esta vontade de unidade e esta multiplicidade quase infinita que ele sente em si.

A existência é a palpitação de uma vida intensa, o agudo extremo da subjectividade.

O pensador subjectivo torna-se um espírito existente infinito, torna-se um mistério por esta relação profunda em relação a si próprio e ao objecto da sua afirmação. (...)A existência é «ir sendo», a existência está sempre voltada para os possíveis e ao mesmo tempo para o que é a sua origem, para o que é originário. (...) O existente é o que se relaciona com si próprio e o que se relaciona com a transcendência.

Jean Wahl, As Filosofias da Existência, 

quinta-feira, maio 22, 2014

Hume e a relação de causalidade


No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência, as reflexões que seguem são sem dúvida su­ficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solici­tados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela in­vestigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola de bilhar é um evento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixados sem nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, desco­brimos algo nesta situação que nos pode dar origem à idéia de um movimento descendente, em vez de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito particular é, em todas as operações naturais, arbitrária se não con­sultamos a experiência, devemos igualmente supor como tal o laço ou a conexão entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossível que qualquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direção? Todas estas su­posições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.
Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.

David Hume, Investigação acerca do entendimento Humano 

Foto: Helena lebre