quarta-feira, abril 29, 2015

Verificar pela experiência



Pintura, Ana Teresa Fernandez

A experiência deve confirmar a propriedade dos corpos de maneira que a definição coincida com os fenómenos.
Galileu escreve numa carta a Carcarilhe (…) “Se a experiência mostra que as propriedades que deduzimos encontram confirmação na queda livre dos corpos, podemos afirmar, sem medo de errar, que o movimento concreto da queda é idêntico ao que nós definimos e pressupusemos; se não é o caso, as nossas demonstrações  que se aplicam à nossa única hipótese, não perdem nada da sua força e valor, tal como as proposições de Arquimedes sobre a espiral não sofrem pelo facto de não encontrar na natureza nenhum corpo ao qual se possa atribuir um movimento em espiral”.
Aqui está enunciado um princípio fundamental do pensamento científico moderno: o princípio fundamental que estabelece a relação alternativa das hipóteses e da experiência. Para observar a natureza o espírito humano desenvolve hipóteses que devem ser matemáticas, logicamente conclusivas. As demonstrações matemáticas incidem sobre hipóteses. O facto de serem conclusivas não dá, no entanto, qualquer indicação quanto à existência rela na natureza, das relações tais como estas são vistas nas hipóteses. As hipóteses só adquirem o carácter de leis naturais se são empregues na experiência empírica e verificadas por ela. Hipóteses que são em si lógicas, matemáticas, mas não correspondem a nada na natureza, não deixam de concluir qualquer coisa, mas não constituem uma lei natural.

W. Heisenberg, La nature dans la Physique Contemporaine, Gallimard, 1962, p.99



Penso que descobrir um padrão nos acontecimentos físicos, encontrar depois uma explicação possível e descobrir como a poderemos comprovar é o trabalho que podemos reconhecer no conhecimento científico. A confirmação da experiência é um passo fundamental ou indispensável para a credibilidade científica e para a forma como esta pode reproduzir o fenómeno em laboratório a partir do momento que conhece o seu funcionamento. O papel da experiência pode não verificar a hipótese mas não é primeiramente para isso que a experiência é necessária. Daqui decorre que algo que se usa com determinado fim, é na acepção ou satisfação desse fim que encontra a sua natureza. Contrariamente ao procedimento usual na ciência Popper propõe uma finalidade na experiência que não é aquela pela qual ela é importante, se considerarmos que a ciência é um conhecimento, isto é pressupõe que busca uma explicação e ou uma descrição de como funcionam os elementos e os fenómenos, essa explicação pode não ser verdadeira mas é suficiente para os podermos manipular, reproduzir e sobre eles intervir. O registo prático do conhecimento não pode ser separado da sua estratégia de procedimento e penso que Popper o faz, fixa-se na lógica  e esquece o procedimento prático, tanto no sentido da lógica prática da descoberta científica como no sentido da sua manipulação material dos fenómenos.

domingo, abril 26, 2015

Não haverá alternativa ao capitalismo selvagem?


Sebastião Salgado, Trabalhador de chá no Rwanda, 1991 
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período da manufactura, a opinião pública europeia despiu o último farrapo de consciência e de pudor. Cada nação vangloriava-se cinicamente de qualquer infâmia que servisse para acumulação do capital. Leiam-se por exemplo os ingénuos Annales du commerce, do honesto A. Anderson. Este bravo homem admira, como um golpe genial da política inglesa, que, quando da paz de Utrecht, a Inglaterra tenha arrancado à Espanha, pelo tratado de Asiento, o privilégio de fazer entre a África e a América espanhola, o tráfico de negros, que até então se fizera apenas entre África e as suas possessões na Índia oriental. A Inglaterra forneceu assim, até 1743, quatro mil e oitocentos negros por ano à América espanhola. Isso servia-lhe, ao mesmo tempo para cobrir com o véu oficial as proezas do seu contrabando. Foi o tráfico de negros que lançou as bases da grandeza de Liverpool; para esta cidade ortodoxa, o tráfico de carne humana constituiu todo o método de acumulação primitiva. E, até aos nossos dias, os notáveis de Liverpool cantaram as virtudes específicas do comércio de escravos, "o qual desenvolve o espírito de empreendimento até à paixão e forma marinheiros sem paralelo"(John Aikin, Description from the Country, 1745).(...)
A industria algodoeira, ao mesmo tempo que introduzia em Inglaterra a escravatura infantil, nos Estados Unidos  transformava o tratamento mais ou menos patriarcal dos negros num sistema de exploração mercantil. Em resumo, para suportar a escravatura disfarçada dos assalariados na Europa, era necessária a escravatura sem limites do novo mundo. Tanto e molis erat (De tal modo era difícil, Vergílio, Eneida,1,33). Eis por que preço pagamos as nossas conquistas; eis quanto nos custou desenvolver as leis eternas e naturais da produção capitalista, para consumar o divórcio entre os trabalhadores e as condições de trabalho, para transformar estas em capital, e a massa do povo em assalariados, em pobres laboriosos, obra-prima da arte, criação sublime da história moderna.
Se, segundo Augier (Maria Augier, Du crédit Públic, 1842, p,265), foi com manchas naturais de sangue numa das faces que o dinheiro veio ao mundo, o capital surge exalando sangue e lama por todos os poros.
Karl Marx, A acumulação Primitiva, ,estampa, 1977, Lx, p.100,101,102,103 -
8ª Secção de O Capital Marx publicado pela primeira vez em 1867.



É inegável que, 148 anos passados da publicação deste texto,  depois dos massacres de populações inteiras, duas guerras mundiais e  várias revoluções comunistas, o mundo económico e moral ocidental não sejam o mesmo de que falava Marx, todavia há verdade factual nas suas palavras e esperança na possibilidade de mudança. A crítica contra as usurpações disfarçadas da sociedade capitalista é contundente, essa mesma crítica continua actual, hoje nenhuma alternativa se perfila contra o capitalismo selvagem que estamos a viver,  apesar de nos considerarmos livres,  não pode haver liberdade sem alternativas reais e credíveis.



Não podemos perder a memória nem a imaginação para voltar a ver os últimos 100 anos e o que é hoje a sociedade ocidental. As intervenções "ocidentais" por todo o mundo, da expansão ao tráfico, adquiriram novas formas mas têm o mesmo objectivo e deixam o mesmo rasto de sangue. Considerado ultrapassado o nome de Marx exala o medo do comunismo Estalinista que tem proporções fantasmagóricas maiores no nosso imaginário que o capitalismo do qual somos dependentes e cúmplices nas suas continuadas e pretensamente justificadas surtidas sanguinárias. Há pelo menos dois factos que dão razão a Marx: a alienação dos meios de produção tomou a forma de alienação do povo dos centros de poder, apesar do Citroen à porta somos uns assalariados e a nossa opinião, apesar de livre, conta zero, porque estamos todos a falar sozinhos. Segundo facto, a riqueza está acumulada em meia dúzia de detentores desses meios de produção enquanto a esmagadora população do mundo vive no limiar da pobreza. Estamos melhor hoje do que estávamos em termos de condições de trabalho? Parece-nos que sim, a verdade é que muitos nem têm direito ao trabalho. Daí que nos surpreende que Marx seja tão dramático, o dramatismo é sinal de romantismo serôdio, talvez não possa deixar de ser dramático por estar desesperado, sabe-se que vivia da caridade dos amigos para comer, nessa Inglaterra industrial onde as desigualdades sociais eram injustas e incompreensíveis. Apeteceu-me lembrá-lo 41 anos depois do 25 de Abril.


Helena Serrão

domingo, abril 19, 2015

O que é a política?

1. A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia   ocupam-se do homem, e todas as suas afirmações seriam correctas se houvesse apenas um homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mais, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem — na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só existe o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões.
É surpreendente a diferença de categoria entre as filosofias políticas e as obras de todos os grandes pensadores — até mesmo de Platão. A política jamais atinge a mesma profundidade. A falta de profundidade de pensamento não revela outra coisa senão a própria ausência de profundidade, na qual a política está ancorada.
2. A política trata da convivência entre diferentes. Os homens organizam-se politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. Enquanto os homens organizam corpos políticos sobre a família, em cujo quadro se entendem, o parentesco significa, em diversos graus, por um lado aquilo que pode ligar os mais diferentes e por outro, aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-se de novo umas das outras e umas contra as outras.
Nessa forma de organização, a diversidade original tanto é extinta de maneira efectiva como também é destruída a igualdade essencial de todos os homens. A ruína da política em ambos os casos surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família. Aqui já está indicado o que se torna simbólico na imagem da Sagrada Família: Deus não criou tanto o homem como o fez com a família.*
3. Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja, a participação activa na pluralidade, começa-se a fazer de Deus, ou seja, a agir como se se pudesse sair, de modo natural, do princípio da diversidade.

Hannah Arendt, O que é a Política? p.

Imagem, Leonard Freed, Colónia

sábado, abril 18, 2015

O método científico.


1. O facto observado é guiado por conhecimentos prévios
“Trouxeram um dia, ao meu laboratório, coelhos do mercado, Colocaram-nos numa mesa onde urinaram e observei, por acaso, que a sua urina era clara e ácida. Este facto impressionou-me, porque os coelhos têm geralmente a urina turva e alcalina por serem herbívoros, enquanto os carnívoros, como se sabe, têm, pelo contrário, urinas claras e ácidas.
2. A formulação da hipótese como explicação provisória do facto observado
Esta observação da acidez da urina dos coelhos fez-me supor que estes animais deviam ser da condição alimentar dos carnívoros. Supus que eles não tinham comido havia muito tempo e que se tinham transformado, pela abstinência, em verdadeiros animais carnívoros (...). Nada era mais fácil de verificar pela experiência do que esta ideia preconcebida ou esta hipótese.
3. A experimentação como processo de verificação da hipótese
Dei erva a comer aos coelhos e, algumas horas depois, as suas urinas tinham-se tornado turvas e alcalinas. Submeti em seguida os mesmos coelhos à abstinência e, vinte e quatro ou trinta e seis horas depois, as suas urinas tinham-se tornado claras e fortemente ácidas; depois voltaram a ser alcalinas se lhes desse ervas, etc. Repeti esta experiência tão simples um grande número de vezes com os coelhos e sempre com o mesmo resultado. Repeti-a em seguida com um cavalo, animal herbívoro, que tem igualmente a urina turva e alcalina. Verifiquei que a abstinência tinha produzido, como no coelho, uma pronta acidez da urina com um acréscimo relativamente considerável da ureia, a ponto de cristalizar por vezes, espontaneamente, na urina arrefecida.
4. A hipótese torna-se uma ideia aceitável
Cheguei assim, em consequência das minhas experiências, a esta proposição geral que então era desconhecida: em jejum, os herbívoros têm urinas semelhantes às dos carnívoros.
5. A contraprova como garantia da aceitabilidade
Mas, para provar que os meus coelhos em jejum eram carnívoros, havia uma contraprova a fazer. Era preciso, experimentalmente, fazer um coelho carnívoro, alimentando-o a carne, a fim de saber se as suas urinas seriam claras, ácidas e relativamente carregadas de ureia como durante a abstinência. Por isso fiz alimentar coelhos com carne de vaca cozida fria, alimento que comem muito bem, quando não se lhes dá outra coisa. A minha previsão foi ainda verificada e, enquanto durou esta alimentação animal, os coelhos conservaram urinas claras e ácidas”


Claude Bernard, Introdução ao estudo da medicina experimental,

quinta-feira, abril 09, 2015

O ponto de partida da ciência é o senso comum.



Christopher Anderson, Palestina 2007

A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso comum.
Não, talvez, por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão "senso comum" que estou aqui a usar é muito vaga, simplesmente porque denota uma coisa vaga e mutável - os instintos, ou opiniões de muitas pessoas, às vezes adequados ou verdadeiros e às vezes inadequados ou falsos.
Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como o senso comum? A minha resposta é: porque não pretendemos nem tentamos construir (...) um sistema seguro sobre esses "alicerces". Qualquer das nossas muitas suposições de senso comum (...) da qual partamos pode ser contestada e criticada a qualquer tempo; frequentemente, tal suposição é criticada com êxito e rejeitada (por exemplo, a teoria de que a Terra é plana). Em tal caso, o senso comum é modificado pela correcção, ou é transcendido e substituído por uma teoria que, por menor ou maior período de tempo, pode parecer a certas pessoas como mais ou menos "maluca" (...). Se tal teoria necessitar de muito treino para poder ser compreendida, poderá mesmo deixar para sempre de ser absorvida pelo senso comum. (...)Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido. (...)
Deste modo começamos com um ponto de partida vago e construímos sobre alicerces inseguros. Mas podemos progredir: podemos às vezes, após alguma crítica, ver que estivemos errados podemos aprender com os nossos enganos, com a compreensão de que fizemos um erro. (...)
A minha primeira tese é, pois, que o nosso ponto de partida é o senso comum e que o nosso grande instrumento para progredir é a crítica.


K. Popper (1975), Conhecimento Objectivo, Belo Horizonte, Editora da Universidade de S. Paulo e Itatiaia Limitada, p. 42.