segunda-feira, abril 25, 2016

25 de Abril


Hoje comemora-se um feriado político, não religioso. Comemora-se a mudança do regime político: de uma ditadura autista para a vontade popular. Mudámos para um regime que, sobretudo, tinha em conta a vontade popular. Era essa a sua intenção, diminuir as desigualdades. 42 anos depois o balanço é positivo mas longe do modelo que gostaríamos de viver, assente na verdadeira igualdade de oportunidades e num acordo social entre todos os membros da sociedade no sentido de um bem comum. Apesar de sermos uma pequena comunidade de 10 milhões, as desigualdades destroem a possibilidade de nos pensarmos como comunidade. Os ricos e os pobres vivem em comunidades diferentes, cruzam-se apenas na prestação de serviços, mas nada os liga, nem o facto de serem humanos parece ter relevância. Claro que temos de pensar Portugal e as comunidades democráticas como aquelas onde as desigualdades são menos evidentes e chocantes, basta pensar em Angola ou no Brasil, só para mencionar dois países de língua portuguesa, para nos lembrarmos das proporções que podem atingir as desigualdades. Não estamos a defender os pobres só por serem pobres,ser pobre não é, por si só, um estatuto, o que interessa é a falta de uma ideia de comunidade que as desigualdades acentuam. Tanto nos pobres como nos ricos não existe a ideia de bem comum,  mas nos ricos é mais grave porque eles podem contribuir significativamente para a diminuição da desigualdade, e, não o fazem, acrescento, alguns  praticam uma definitiva não cidadania quando fogem aos impostos. Falta às democracias uma capacidade exemplar de punir estes "não cidadãos", de os punir com a pena que poderemos dar a quem corrompe os princípios da democracia. A pena que lhes daremos é proporcional à importância política da democracia, à importância que damos ao 25 de Abril e à liberdade.

Helena Serrão

domingo, abril 24, 2016

Será que a psicanálise não é é científica?


Em resposta a Karl Popper para quem a teoria psicanalítica não poderia ser considerada científica pois não supunha a possibilidade de poder ser falsificável. Um artigo a ver AQUI

segunda-feira, abril 18, 2016

Será que uma comunidade política tem o direito de excluir os destituídos, os perseguidos e os apátridas só porque são estrangeiros?

Refugiados Sírios em Viena, Setembro 2015 
Foto de Josh Zakary

Será que uma comunidade política tem o direito de excluir os destituídos, os perseguidos e os apátridas só porque são estrangeiros? Na perspectiva de Walzer(1), a comunidade encontra-se obrigada por um princípio de ajuda mútua e assinala justamente que este princípio pode ter efeitos mais vastos quando aplicado a uma comunidade do que quando aplicado a um indivíduo, porque muitos actos benevolentes estão ao alcance de uma comunidade, só afectando marginalmente os seus membros. Aceitar um estranho numa família é algo que podemos considerar que está para além das exigências da ajuda mútua; mas aceitar um estranho ou mesmo muitos numa comunidade é muito menos oneroso. Na perspectiva de Walzer, um país com vastas terras desocupadas -- Walzer toma a Austrália como exemplo, embora o faça como uma suposição, e não com base num estudo dos recursos hídricos e do solo australianos -- pode de facto ter uma obrigação decorrente da ajuda mútua de aceitar pessoas de terras densamente povoadas do Sudeste asiático atingidas pela fome. A escolha da comunidade australiana seria então a de desistir da homogeneidade que a sua sociedade possa ter ou de se retirar para a pequena porção do território que ocupa, cedendo o restante àqueles que dele tivessem necessidade. Embora não aceite qualquer obrigação geral das nações abastadas de admitir refugiados, Walzer defende o princípio popular do asilo. De acordo com este princípio, qualquer refugiado que consiga chegar às fronteiras de outro país pode reclamar asilo e não pode ser deportado de volta ao país onde é possível que seja perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade ou :, opinião política. _é interessante que este princípio seja tão amplamente aceite enquanto a obrigação de aceitar refugiados não o é. A distinção traçada pode reflectir alguns dos princípios analisados nos capítulos anteriores deste livro. O princípio da proximidade desempenha claramente um papel -- a pessoa que procura asilo está apenas fisicamente mais próxima de nós do que de outros países. Talvez o nosso maior apoio ao asilo assente em parte na distinção entre um acto (deportar um refugiado que chegou aqui) e uma omissão (não oferecer um lugar a um refugiado que está num campo distante). Poderia constituir também um exemplo da diferença entre fazer algo a um indivíduo identificável e fazer algo que sabemos terá o mesmo efeito em alguém, nunca chegando a saber realmente em quem teve esse efeito. Um factor adicional é provavelmente o pequeno número de pessoas que são capazes de chegar para pedir asilo, em contraste com o número muito maior de refugiados de cuja existência temos conhecimento, embora estejam distantes de nós. Trata-se do argumento da "gota no oceano", que estudámos em relação à ajuda internacional. Talvez possamos corresponder a todos os pedidos de asilo, mas, por muitos refugiados que possamos admitir, o problema continua a existir. 

Como no caso do argumento análogo contra a concessão de auxílio internacional, este argumento ignora o facto de, ao admitirmos refugiados, permitir que certos indivíduos vivam uma vida decente -- e portanto estamos a fazer algo que tem valor, por muitos outros refugiados que continuem a existir e que não somos capazes de ajudar. Os governos moderadamente progressistas, sensíveis pelo menos a alguns sentimentos humanitários, agem mais ou menos da forma preconizada por Walzer. Defendem que as comunidades têm o direito de decidir quem admitem; os pedidos de reunião de famílias vêem em primeiro lugar e, em seguida, as pessoas do exterior que pertencem ao mesmo grupo étnico nacional, quando o estado tem identidade étnica. A admissão daqueles que se encontram em estado de necessidade é um acto "ex gratia". O direito de asilo é normalmente respeitado, desde que os efectivos sejam relativamente pequenos. Os refugiados, a não ser que possam apelar para algum sentido de afinidade política :, não têm qualquer direito de admissão e vêem-se forçados a recorrer à caridade do país de acolhimento. Tudo isto concorda com os termos gerais da política de imigração das democracias ocidentais. No que diz respeito aos refugiados, a abordagem "ex gratia" constitui a ortodoxia actual. A falácia da abordagem actual A ortodoxia actual assenta em pressupostos vagos e normalmente não fundamentados sobre o direito de a comunidade determinar quem são os seus membros.
(1) Michael Walzer.

Peter Singer, Ética Prática, Cap.9

sábado, abril 16, 2016

Lenda do santo inquisidor contada por Ivan Karamazov em "Os Irmãos Karamazov" de Dostoievski


A ação passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e «os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé». Oh! Não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, «como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente». Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges. Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: «Senhor, cura-me e ver-Te-ei»; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.

- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: «Se és Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, alto, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança - e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:

- És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez - diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso. (...)

«... não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: «Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?» Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. «Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!» Eis o que se o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: «Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram.» Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: «Fazei de nós escravos, mas alimentai-nos.» Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! (...)

Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo.

O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: «Vai e nunca mais voltes... nunca mais.» E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.

Excerto dos Irmãos Karamazov, Dostoievski

Fala-se da "morte de Deus" que Dostoievski em 1879 teria descrito neste conto colocando-o na boca do irmão "intelectual" Ivan para confrontar Aliocha o irmão "religioso". Trata-se de uma história ficcionada mas cujos contornos de verosimilhança sustentam uma imensa perplexidade perante a evidência que a autoridade terrena suplantaria pela sua força qualquer autoridade espiritual e que esta evocando a liberdade moral do homem seria sempre maximamente perigosa porque o homem proclama a sua liberdade intelectualmente mas não a pratica e não a quer, prefere a submissão pois não tem nem saber nem vontade para decidir por um bem que não tem nenhuma contrapartida.



quinta-feira, abril 07, 2016

A propósito da recente morte de Imre Kertész

Excerto da obra "Sem destino" de Imre Kertész




" Em todo o caso, parecia-me que tinha ficado muito tempo deitado, e estava bem, tranquilo, sereno, sem curiosidade, paciente, aí onde me tinham colocado. Não sentia frio, nem dor, e só pela razão, não através da pele, eu percebia as gotas picantes, entre neve e chuva, que me molhavam o rosto. Devaneava, olhava um pouco o que tinha à frente dos olhos, simplesmente, sem nenhum movimento supérfluo, nem fadiga: por exemplo, lá em cima, o céu baixo, cinzento e opaco, mais precisamente, as nuvens invernais de chumbo que deslizavam preguiçosamente e o escondiam aos meus olhos. Ao mesmo tempo, ele dilacerava-se algures, fendas imprevistas, buracos mais claros apareciam aqui e ali por um breve instante, e foi como o súbito mistério de um abismo, de cujo cimo caía sobre mim uma espécie de raio, um rápido perscrutador olhar cor indefinida, mas de olhos sem dúvida nenhuma claros, um pouco semelhantes ao do médico a que me apresentara antigamente em Auschwitz. Instantaneamente, ao meu lado, um objecto disforme entrou no meu campo de visão: um tamanco, e, do outro lado, uma gorra de diabo semelhante à minha, dois acessórios pontiagudos – o nariz e o queixo – no meio, uma depressão cavernosa – um rosto. E, depois, ainda outras cabeças, objectos corpos – eu compreendi que eram os restos da mudança, os resíduos, diria, para usar um termo mais preciso, que, sem dúvida, ali tinham sido postos, entretanto. Algum tempo depois, uma hora, um dia ou um ano, não sei, percebi, por fim, vozes, ruídos, rumores de trabalho e de organização. A cabeça que estava ao meu lado levantou-se de repente e, mais abaixo, aos ombros, vi braços em farrapos de prisioneiro que procuravam levantar o corpo para um espécie de carroça ou de carreta, sobre outros que aí já se acumulavam.”


Imre Kertész, (1975) Sem destino, Presença, Lx, pp131, 132


A descrição de um não sentimento, de uma espécie de letargia, onde as capacidades e funções humanas estão suspensas para que a dor a a extrema violência não possam causar um dano irreparável, é a tentativa de passar em palavras uma experiência vivida pelo autor, jovem prisioneiro de vários campos de concentração na Polónia e na Checoslováquia. Compreendemos que o corpo tem  uma espécie de mecanismo de baixa manutenção, onde só funciona o que é absolutamente vital para continuar a sobreviver. Esta  situação onde, historicamente, foi arredada qualquer autonomia, respeito, ou cuidado pelo indivíduo, assim como suspenso o julgamento individual que pode separar criminosos e inocentes, é também ela, na sua estranheza, monstruosa, uma situação de pré-humanidade que seria apenas cruel e desumana se não fosse legalizada, isto é, criada como lei por pessoas com responsabilidade política e executada minuciosamente por outras pessoas, algumas apenas servis para com a lei, outras, normais cidadãos, cuja oportunidade para serem excelentes cidadãos cometendo toda a espécie de crimes era levada com grande entusiasmo.