sexta-feira, fevereiro 21, 2025

Adília Lopes, nascimento 1960 - falecimento 30 dezembro 2024

 




Arte poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio

que não sei dizer

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

É suficiente ter boas razões para agir bem? Não me parece.

 



Fotografia: Vivian Maier, Nova Iorque, 1953

Qual é a natureza dos juízos morais?

Será que está garantida a sua objetividade?

Hume enfatizou que se examinarmos ações más – «assassínio premeditado», por exemplo – não encontraremos «matéria de facto» que corresponda à maldade. O universo, separado das nossas atitudes, não contém tais factos. Esta tomada de consciência tem muitas vezes sido vista como causa de desespero porque as pessoas assumem que isso tem de significar que os valores não possuem um estatuto «objetivo». Mas porque é que a observação de Hume nos surpreende? Os valores não são o tipo de coisas que podem existir do modo como existem estrelas e planetas. (O que é que poderia ser um valor concebido dessa maneira?) Um erro básico, que muitas pessoas cometem quando pensam sobre este assunto, é assumir apenas duas possibilidades:

1. Há factos morais, do mesmo modo que há factos acerca de estrelas e planetas; ou

2. Os nossos valores não são mais do que a expressão dos nossos sentimentos subjetivos.

Isto é um erro porque ignora uma crucial terceira possibilidade. As pessoas não têm apenas sentimentos, mas também têm razão, e isso faz uma grande diferença.

Pode acontecer que:

3. As verdades morais são verdades da razão; isto é, um juízo moral é verdadeiro se apoiado em melhores razões do que os juízos alternativos.

Deste modo, se quisermos compreender a natureza da ética, temos de nos focar em razões. Uma verdade ética é uma conclusão que é apoiada em razões: a resposta correta a uma questão moral é simplesmente aquela resposta que tem o peso da razão do seu lado. Tais verdades são objetivas no sentido em que são verdades independentemente do que nós possamos querer ou pensar. Não podemos fazer com que algo seja bom ou mau apenas porque queremos que assim seja, porque não podemos meramente desejar que o peso da razão esteja de um lado ou do lado contrário. E isto também explica a nossa falibilidade: podemos estar errados acerca do que a razão recomenda. A razão diz o que diz, independentemente das nossas opiniões ou desejos.

James Rachels, Elementos de Uma Filosofia Moral, Gradiva, 2004, p. 41

quarta-feira, fevereiro 12, 2025

Há fotografias que provam factos.


Destruição de um campo de refugiados em Jabalia. Entre os dias 8 de julho e 27 de agosto, mais de 2100 palestinos morreram na Faixa de GazaO Campo de Jabalia é um campo de refugiados palestinos estabelecido em 1948 pelas Nações Unidas para abrigar os deslocados pela expulsão palestina de 1948. Localizado 3 quilómetros a norte de Jabalia, na Faixa de Gaza, é o maior campo de refugiados em território palestiniano, com mais de 100 mil habitantes.

É o método científico que sustenta a construção colectiva da verdade. Não oferece uma verdade absoluta, mas um processo para testar, refutar, corrigir e demonstrar, aproximando-nos do real. Ou seja, a ciência é um percurso de dúvida permanente, de reavaliação contínua. Cada descoberta é uma verdade temporária, válida enquanto resistir à experiência, e resulta de uma cooperação diária entre milhões de pessoas que testam, desafiam e constroem sobre o conhecimento acumulado.

E é por isso que o método científico é o motor do progresso. Como sublinha Yuval Noah Harari em “Nexus”, foi a cooperação humana em larga escala que permitiu à Humanidade prosperar. Essa cooperação sempre implicou narrativas compartilhadas – sejam elas religiosas, económicas ou sociais.

O método científico é uma dessas narrativas. Ele estabelece um quadro partilhado para que diferentes sociedades e indivíduos possam confrontar ideias de forma racional e chegar a consensos baseados em provas. Essa característica torna-o um dos poucos espaços verdadeiramente universais.

Daí que o método científico seja o alicerce das sociedades abertas e plurais onde a verdade não é ditada pela força, mas conquistada pela evidência. Ele cria um terreno comum que transcende crenças individuais, permitindo que discordâncias sejam resolvidas pela razão. Esse processo fortalece a democracia, garantindo debates informados e decisões colectivas enraizadas na lógica e na transparência. No entanto, a inteligência artificial (IA) veio alterar este estado de coisas, abrindo espaço tanto para a desacreditação como para a substituição do método científico.

De facto a IA cria um espaço de dúvida radical, onde a confiança naquilo que tomávamos como certo é abalada. Fotografias, outrora prova de um acontecimento, são agora manipuladas com precisão. Um discurso gravado pode ser replicado por algoritmos que imitam a voz, os erros e até as emoções humanas. Mesmo transmissões ao vivo, símbolos máximos de autenticidade, podem ser suspeitas de manipulação. É uma fábrica de dúvidas.

Neste tempo, qualquer facto pode ser rotulado como falso. Se tudo pode ser falsificado, porquê aceitar o que desafia as nossas crenças? E se qualquer prova pode ser desacreditada, porque não escolher a que confirma os nossos preconceitos? Nos tempos de polarização, essa incerteza deixa de ser uma possibilidade intelectual e transforma-se numa arma política e cultural que descarta evidências com a desculpa de que são falsificadas – e só são falsificadas porque nos desconfortam.

E, no entanto, nunca pareceu tão fácil fazer a sociedade acreditar no que lhe é apresentado. Num ambiente saturado de informação e de estímulos incessantes, a capacidade de distinção entre o verdadeiro e o falso enfraquece. As pessoas acreditam porque o que vêem e ouvem confirma as suas expectativas ou alimenta as suas emoções. A IA não só tornou a manipulação mais sofisticada como acelerou a predisposição para aceitar narrativas pré-fabricadas, sem o filtro do questionamento crítico.

Adolfo Mesquita Nunes, O Fim da verdade, in Expresso,31 janeiro 2025

É o método científico que sustenta a construção colectiva da verdade. Não oferece uma verdade absoluta, mas um processo para testar, refutar, corrigir e demonstrar, aproximando-nos do real. Ou seja, a ciência é um percurso de dúvida permanente, de reavaliação contínua. Cada descoberta é uma verdade temporária, válida enquanto resistir à experiência, e resulta de uma cooperação diária entre milhões de pessoas que testam, desafiam e constroem sobre o conhecimento acumulado.

E é por isso que o método científico é o motor do progresso. Como sublinha Yuval Noah Harari em “Nexus”, foi a cooperação humana em larga escala que permitiu à Humanidade prosperar. Essa cooperação sempre implicou narrativas compartilhadas – sejam elas religiosas, económicas ou sociais.

O método científico é uma dessas narrativas. Ele estabelece um quadro partilhado para que diferentes sociedades e indivíduos possam confrontar ideias de forma racional e chegar a consensos baseados em provas. Essa característica torna-o um dos poucos espaços verdadeiramente universais.

Daí que o método científico seja o alicerce das sociedades abertas e plurais onde a verdade não é ditada pela força, mas conquistada pela evidência. Ele cria um terreno comum que transcende crenças individuais, permitindo que discordâncias sejam resolvidas pela razão. Esse processo fortalece a democracia, garantindo debates informados e decisões colectivas enraizadas na lógica e na transparência. No entanto, a inteligência artificial (IA) veio alterar este estado de coisas, abrindo espaço tanto para a desacreditação como para a substituição do método científico.

De facto a IA cria um espaço de dúvida radical, onde a confiança naquilo que tomávamos como certo é abalada. Fotografias, outrora prova de um acontecimento, são agora manipuladas com precisão. Um discurso gravado pode ser replicado por algoritmos que imitam a voz, os erros e até as emoções humanas. Mesmo transmissões ao vivo, símbolos máximos de autenticidade, podem ser suspeitas de manipulação. É uma fábrica de dúvidas.

Neste tempo, qualquer facto pode ser rotulado como falso. Se tudo pode ser falsificado, porquê aceitar o que desafia as nossas crenças? E se qualquer prova pode ser desacreditada, porque não escolher a que confirma os nossos preconceitos? Nos tempos de polarização, essa incerteza deixa de ser uma possibilidade intelectual e transforma-se numa arma política e cultural que descarta evidências com a desculpa de que são falsificadas – e só são falsificadas porque nos desconfortam.

E, no entanto, nunca pareceu tão fácil fazer a sociedade acreditar no que lhe é apresentado. Num ambiente saturado de informação e de estímulos incessantes, a capacidade de distinção entre o verdadeiro e o falso enfraquece. As pessoas acreditam porque o que vêem e ouvem confirma as suas expectativas ou alimenta as suas emoções. A IA não só tornou a manipulação mais sofisticada como acelerou a predisposição para aceitar narrativas pré-fabricadas, sem o filtro do questionamento crítico.

Adolfo Mesquita Nunes, O Fim da verdade, in Expresso,31 janeiro 2025

quarta-feira, fevereiro 05, 2025

O Erro do Livre-arbítrio


Inge Morath, Durante o festival de São Firmin, Pamplona, Espanha. 1954

Não somos indulgentes com a ideia do livre-arbítrio: sabemos de sobejo do que se trata; a habilidade teológica de pior reputação que já houve para tornar a humanidade responsável à maneira dos teólogos, o que equivale a colocar a humanidade sob a dependência dos teólogos. Vou me limitar a explicar a psicologia dessa tendência a exigir responsabilidades. Onde quer que exijam responsabilidades, o instinto de julgar e de castigar anda, geralmente, mesclado na tarefa. Retira-se a inocência do devir quando lhe atribui um estado de fato, qualquer que seja, à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade. A doutrina da vontade foi inventada, principalmente, colimando castigar, isto é, com a intenção de achar um culpado. Toda a antiga psicologia, psicologia da vontade, deve sua existência ao fato de que seus inventores, os sacerdotes, chefes das comunidades primitivas, quiseram atribuir-se o direito de castigar, ou quiseram conceder tal direito a Deus. Os homens foram considerados livres para se poder julgá-los e castigá-los, para se poder declará-los culpados. Consequentemente, toda ação tinha que reputar-se voluntária, e a origem de todo ato devia supor-se na consciência (pelo que a falsificação das moedas in psychologicis, por princípio, se erigia da própria psicologia). Hoje, que entramos na corrente contrária e nós, os imoralistas, trabalhamos com todas nossas forças para conseguir que desapareça mais uma vez do mundo a ideia da culpabilidade e do castigo, tanto quanto para eliminar delas a psicologia, a história, a Natureza, as instituições e as sanções sociais, não há, a nossos olhos, oposição mais radical que a dos teólogos, que por meio da ideia do mundo moral prosseguem contaminando a inocência do devir com o pecado e o castigo. O cristianismo é uma metafísica de verdugos.

                          Friedrich Nietzsche, O crepúsculo dos ídolos, Lisboa, Edições 70, pag 41

O anátema que Nietzsche impõe ao cristianismo, o enfoque no discurso de ódio, tem exactamente, nas suas palavras, um espelho claro onde se vê esse mesmo discurso virulento, acusar de virulência toda a moral cristã. A análise será oportuna como diagnóstico de uma certa forma de julgar, que ultrapassa o sentido de juízo enquanto forma de considerar, entre outras formas, e se pretende determinante para moldar a consciência do indivíduo. O juízo cristão é fundamentado numa metafísica do julgamento e não do livre-arbítrio que seria um pretexto mais do que uma verdadeira crença. O tribunal do julgamento será a consciência de cada indivíduo, daí ser uma moral enfraquecedora, que cria, por isso mesmo, um ressentimento perante aqueles que, não estando submetidos a essa moral, seriam , esses sim, verdadeiramente livres, isto é, capazes de fazer o que verdadeiramente têm vontade de fazer. Pressuposto de que a moral cristã, impediria o homem de fazer a sua vontade pois o pecado estaria na própria vontade. A questão que parece pertinente acerca de textos como estes é que eles não deixam de ser textos de ódio e de ressentimento. Pois a luz de uma libertação que parece devir do "faz verdadeiramente o que queres" nos leva a perguntar o que molda a vontade para que esta constitua motor da ação, sendo que a resposta é que a vontade é deterministicamente, sempre, uma vontade de poder.  Mas há, parece um conflito entre poderes visto que Nietzsche parte do princípio de que o poder está do lado cristão, daí o seu ódio.  

Helena Serrão