quarta-feira, janeiro 22, 2020

A propósito dos saberes úteis e inúteis.






É sobre esta questão de saber como se liga o saber das coisas e o retorno a si próprio,  que vemos aparecer num certo número de textos da época helenista e romana, que vos queria falar, em torno deste antiquíssimo tema que já Sócrates evocava no Fedro, quando dizia: será que é preferível escolher o conhecimento das árvores ou o dos homens? E escolhia o conhecimento dos homens. É um tema que vamos encontrar em seguida nos socráticos, quando dizem uns a seguir aos outros, que aquilo que é interessante, importante e decisivo, não é conhecer os segredos do mundo e da natureza, é conhecer o homem ele mesmo. É um tema que encontraremos nas grandes escolas cínicas, epicuristas e estóicas, e é aqui que eu gostaria de tentar ver como se põe o problema. (…)
                Os conhecimentos inúteis, rejeitados por Demetrius, não se definem pelo seu conteúdo. Definem-se por um modo de conhecimento, um modo de conhecimento causal que tem a dupla propriedade, ou melhor esta dupla fraqueza, que podemos definir na relação com os outros: são conhecimentos que não se podem transformar em prescrições, que não têm pertinência prescritiva; em segundo lugar, não têm, quando tomamos deles conhecimento, efeito sobre o modo de ser do sujeito. No lado oposto, irá ser validado um modo de conhecimento que, considerando todas as coisas do mundo ( os deuses, o cosmos, os outros, etc)  como estando em relação connosco, poderemos transcrever esse conhecimento  num conjunto de  prescrições que modificarão o que nós somos.(…)
                Parece-me , que a distinção, o corte introduzido no campo do saber, mais uma vez, não é aquele que marcará como inúteis certos conteúdos do conhecimento e como úteis alguns outros; é o que marca o carácter “ethopoético” ou não do saber. Quando o saber, quando o conhecimento tem uma forma, quando ela funciona de uma tal maneira que é capaz de produzir o ethos, então ela é útil. E o conhecimento do mundo é perfeitamente útil: ele pode fabricar ethos ( o conhecimento dos outros e o conhecimento dos deuses também). (…) Consequentemente  vemos que esta crítica do saber inútil, não nos reenvia para a valorização de um outro saber com outro conteúdo, que seria o conhecimento de nós-mesmos e do nosso interior. Reenvia-nos antes a um outro funcionamento do mesmo saber das coisas exteriores.  O conhecimento de si  não é de modo nenhum, pelo menos a este nível, um caminho que se torna num decifrar dos arcanos da consciência, na exegese de si, que vemos no cristianismo. O conhecimento útil, o conhecimento onde a existência humana está em questão, é um modo de conhecimento relacional, simultaneamente assertivo e prescritivo, e que é capaz de produzir uma mudança no modo de ser do sujeito.

Michel Foucault, L’herméneutique du sujet, Seuil, Gallimard, 2001, p.p 222,227


Tradução do francês de Helena Serrão


quarta-feira, janeiro 08, 2020

A Ciência e as verdades discutíveis


Alex MacLean, EUA, n.1947


Bruno Latour em entrevista ao jornal brasileiro "Correio do Povo"12 de março de 2017



S – As ciências humanas podem produzir resultados indiscutíveis?
Latour – O objetivo da ciência não é produzir verdades indiscutíveis, mas discutíveis. Nem as ciências naturais e exatas produzem verdades indiscutíveis. As ciências sociais realizam perfeitamente o trabalho de gerar verdades que possam ser discutidas. Elas são como as demais ciências e em certos aspetos até mais exigentes. A antropologia é muito mais exigente que muitos ramos da psicologia, da economia e da geografia. O objetivo é produzir discussões públicas normatizadas.
CS – Quando se pensa na ciência em relação à religião, à fé, parece pertinente. A fé é indiscutível. O conhecimento racional, não. Mas como fazer quando uma corrente das ciências sociais sustenta uma coisa e outra corrente sustenta o contrário. Quem terá razão?
Latour – A “discutabilidade” dos argumentos faz parte do trabalho científico. Isso vale para astrónomos, biólogos ou químicos. Talvez isso seja menos verdadeiro na filosofia, que já é outra coisa. As ciências sociais aceitam muito bem a discussão como parte do trabalho. Que Pierre Bourdieu discorde de mim não impede que integremos o mesmo campo, a mesma disciplina, a sociologia.
CS – Jean Baudrillard, de quem estive próximo, ironizava um pouco dizendo que a sociologia pode ser considerada uma espécie de astrologia, tão capaz como esta de produzir alguma verdade. Li num texto seu que as ciências sociais se baseiam num sistema de crenças .
Latour – A astrologia foi ciência durante muito tempo. Ela organizou o conhecimento durante séculos. Não é destituída de interesse. As ciências sociais, diferentemente da astrologia, devem produzir enunciados discutíveis, como se diz, passiveis de refutação. Por outro lado, Baudrillard nunca foi um modelo de cientificidade.
(...)
CS – Máquinas substituem cada vez mais pessoas em trabalhos de todos os tipos. É possível fazer quase tudo nos aeroportos automaticamente e até se instalar num hotel sem falar com pessoas. Na França, caixas de supermercado estão sendo substituídas rapidamente por máquinas. Para que servirão os humanos no futuro? Para algo melhor?
Latour – Para que um robôt seja automático é preciso muita gente por trás dele. Insisto nisso. Trata-se de uma rede de sustentação entre o humano e a máquina. Eliminar o trabalho de caixa de supermercado é uma benção, pois se trata de uma atividade desagradável. Não?
CS – Em geral, as atividades não são muito agradáveis, mas criam empregos e garantem o sustento das pessoas. Como sobreviverão então?
Latour – Fundamental é que as máquinas não vão substituir os seres humanos. Isso é uma utopia completa. Mas as máquinas vão liberar as pessoas de muitas tarefas. Por exemplo, de dirigir automóveis e de trabalhar como motorista de táxi. O futuro dos humanos ou os empregos que terão é outro problema. Isso não elimina o facto de que sempre haverá seres humanos por trás das máquinas. Os economistas estão divididos quanto aos números, mais ou menos empregos. Certo é que os novos empregos não são geralmente para as mesmas pessoas desempregadas pela tecnologia. As transições são duras e penosas. Nos laboratórios japoneses, por trás de cada robotzinho, há muitos engenheiros. Só o tempo nos dirá como as coisas se resolverão.
CS – Muitos acusam-no de ser relativista. Isso incomoda-o?
Latour – O relativismo não pode ser visto como uma crítica. É uma virtude. Quem critica o relativismo é absolutista. Isso é pior. O relativismo é virtuoso moral, política, religiosa e cientificamente. A verdade científica não precisa de absolutismo mas de relativismo. O importante é estabelecer relações em todas as direções possíveis. Voltamos ao tema da “discutibilidade”. Não faz sentido que um cientista não seja relativista. Já faz alguns anos que não escuto essa crítica. É algo superado, ultrapassado, ingénuo, anacrónico. A defesa da verdade científica hoje passa justamente pelo relativismo. Talvez os filósofos ainda se interessem por esse debate, mas não os cientistas, que já mudaram os seus procedimentos e parâmetros. Relativismo significa capacidade de estabelecer relações entre pontos de vista diferentes. A filosofia da ciência antigamente era simplista, ingénua e imbecil. Isso tudo foi importante nos anos 1950. Atacados, os cientistas buscam atualmente aliados fora do absolutismo. Paul Feyerabend foi ultrapassado pelo lado esquerdo.


(...)
CS – Uma corrente científica diz que o aquecimento global é resultado da ação humana. Outra, sustenta o contrário. Quem tem razão?
Latour – É questão resolvida, dois mil em dois. Conseguimos encontrar dois cientistas que negam o papel humano no aquecimento global. Não é mais uma questão de maioria, mas de unanimidade. É um caso raro em que não há discordância. Todo mundo sustenta a mesma posição. As pessoas pensam que há discordância por que a Esso gastou milhões de dólares para difundir uma ideia errada sobre o fenómeno. Foi uma campanha de desinformação e de produção de ignorância à escala mundial.
CS – Complô ou hipótese?
Latour – Facto. Verificado. Foi possível fazer a demonstração.
CS – As ciências políticas transformam opinião em verdade?
Latour – A palavra ciência, neste caso, é acima de tudo uma maneira de falar. Não penso que seja de facto uma ciência. São artes políticas. A sociologia é diferente por não ter, por exemplo, a obrigação de indicar a melhor maneira de governar ou algo desse tipo. Voltamos ao começo. Não conheço ciência aplicada que não se veja às voltas com opiniões diferentes. É incontornável. Sempre foi assim.
CS – Visto que sempre há pontos de vista diferentes, o que leva alguém a escolher este ou aquele? Qual o critério? A crença?
Latour – As razões que levam alguém a optar, a tomar partido, a escolher, são muitas, políticas, sociais, psicológicas…
CS – Não necessariamente racionais?
Latour – Elas não são necessariamente irracionais, mas não são racionais tampouco no sentido de basear-se em provas indiscutíveis.



VER Entrevista AQUI


VER TAMBÉM AQUI