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domingo, setembro 19, 2021

A civilidade ou como começar o novo ano.




A civilidade é uma questão de costumes, etiqueta, urbanidade, ritos informais que facilitam as nossas interacções e, dessa forma, nos fornecem modos de nos tratarmos mutuamente com consideração.Cria espaço social e psicológico para as pessoas viverem as suas vidas e fazerem as suas escolhas. Os jovens que cospem para o passeio e praguejam nos autocarros revelam sintomas meramente superficiais de incivilidade. Mais grave é a violação da privacidade por parte dos jornais sensacionalistas e as incursões em áreas da vida pessoal irrelevantes para as questões públicas - por exemplo, revelações acerca da vida sexual dos políticos. A nossa época é, efectivamente, moralista. Nauseantemente moralista. E isso constitui grande parte do problema, uma vez que as atitudes moralistas são intolerantes, e a intolerância é uma das piores descortesias. Exigir a cortesia é, de certa forma, exigir muito pouco: "Devemos ser corteses com um homem da mesma forma  como o somos com um quadro, ao qual estamos dispostos a conceder o benefício de uma boa luz", dizia Emerson.
A perda de civilidade significa que o sentimento social foi substituído pela defensiva, com os grupos a reunir-se em torno de conceitos de identidade nacionalista, étnica e religiosa, erigindo barreiras contra os outros e, assim protegendo-se a si mesmos. A sociedade fragmenta-se em subgrupos cujos membros esperam assim escudar-se do egoísmo e desconsideração cáusticos dos outros.
"Há uma cortesia do coração que possui um carácter semelhante ao amor. Dela nasce a cortesia mais pura, no comportamento exterior", disse Goethe (...) a civilidade promove uma sociedade que se comporta bem em relação a si mesma, cujos membros respeitam o valor intrínseco do indivíduo e os direitos das pessoas diferentes de si.

A.C. Grayling, O Significado das coisas, Gradiva,Lx, 2002, pp.28,29

sábado, março 06, 2021

Etnocentrismo versus relativismo cultural

 


Jonas Bendiksen, Fotografias da periferia da ex-União Soviética,2006


Desta forma, o etnocentrismo pode ser considerado como um fator de ajustamento e de integração do indivíduo, por reforçar a sua identificação com o grupo do qual faz parte, com as formas de conduta aprovadas e consideradas como boas por esse mesmo grupo. Os problemas surgem, entretanto, a partir do momento em que o etnocentrismo é racionalizado e passa a constituir a base de programas de ação postos em prática com prejuízo para o bem estar de outros povos.

Esta é a forma mais usual que toma o etnocentrismo entre muitos povos – uma certa insistência nas virtudes do seu próprio grupo, mas sem qualquer tendência para levar esta atitude ao campo prático. Segundo tal ponto de vista, os ideais, as formas de comportamento socialmente aprovadas, os sistemas de valores dos povos com os quais se entra em contacto, podem ser julgados, após o que serão aceites ou rejeitados, mas sem qualquer referência a padrões absolutos, uma vez que há padrões de cultura que são bons para um grupo e não o são para outros, e o que um grupo considera como bom não é, necessariamente, bom para o outro. Mas aceitar-se que pode haver diferentes maneiras de atuar na prossecução de objetivos visados, sem que isso envolva, necessariamente, juízos valorativos, implica uma modificação na maneira de pensar. A posição relativista não significa, de forma alguma, que todos os sistemas de valores, todos os conceitos de bem e de mal, assentem sobre areias tão movediças que não haja necessidade de uma moral, de formas de comportamento estabelecidas e aceites, de códigos éticos. Aliás, o relativismo cultural é uma filosofia que aceita os valores estabelecidos em qualquer sociedade, acentuando a dignidade inerente a qualquer desses sistemas de valores e a necessidade de tolerância em relação a eles, embora possam diferir dos que adotamos e pelos quais nos conduzimos. Reconhece ainda a necessidade de conformidade com normas estabelecidas, como condição necessária para a normalidade da vida em sociedade.

Mas salienta que o facto de termos o direito de esperar, daqueles com quem interactuamos, conformidade com o código pelo qual nos guiamos, não significa que esperemos e muito menos que imponhamos, às pessoas que vivem de acordo com diferentes sistemas de valores, a observância do nosso próprio código.

O relativismo cultural põe o assento tónico na disciplina social que advém do respeito pelas diferenças – respeito mútuo. A posição relativista dá especial ênfase à validade de muitas formas de vida, não de uma só. Tal ênfase procura compreender e harmonizar objetivos, em vez de julga-los e destruí-los, quando sejam diferentes dos nossos.

Augusto Mesquitela Lima, Introdução à antropologia cultural, Lx, Presença, 1984, pp.60-62

domingo, novembro 06, 2016

O significado de cultural



Em virtude da sua grande capacidade de adaptação e do seu engenho notável, o homem pode aperfeiçoar de muitíssimos modos a forma pela qual satisfaz as suas necessidades. Possui capacidade de criar o próprio meio, em vez de ser obrigado, como no caso de outros animais, a sujeitar-se ao meio em que se encontra. Dentro de cada sociedade existem maneiras especiais de satisfação das necessidades. As origens dessas maneiras,  regra geral, estão “perdidas na névoa dos tempos” ou, como dizem os aborígenes australianos, “pertencem ao tempo do sonho”. Com efeito, uma das coisas mais difíceis em Antropologia é traçar a origem de um costume. De ordinário, não existe ninguém com idade suficiente para se lembrar da sua origem porque, por via de regra, ele surgiu há muito tempo, muito antes da tradição oral ou da história escrita.
A cultura representa a resposta do homem às suas necessidades básicas. É o seu modo de se colocar à vontade no mundo. É o comportamento que aprendeu como membro da sociedade. Podemos defini-la como o modo de vida de um povo, o meio, em formas de ideias, instituições, língua, instrumentos, serviços e pensamentos, criado por um grupo de seres humanos que ocupam um território comum.
É esse meio feito pelo homem, a cultura, que todas as sociedades humanas impõem ao meio físico e no qual todos os seres humanos são adestrados. De tal forma se identifica a cultura com a própria vida que se pode dizer perfeitamente não ser ela tanto sobreposta à vida quanto uma extensão da mesma vida. Assim como o instrumento amplia e estende as capacidades da mão, assim a cultura acentua e estende as capacidades da vida.

São os seguintes critérios pelos quais se reconhece a cultura: (1) precisa ser inventada, (2) precisa ser transmitida de uma geração a outra, e (3) precisa ser perpetuada na sua forma original ou duma forma modificada. Ao passo que outros animais são capazes de um restrito comportamento cultural, só o homem parece possuir uma capacidade virtualmente ilimitada de cultura. O processo de criar, transmitir e manter o passado no presente é cultura – a capacidade que o linguista  norte-americano  Alfred Korybski denominou vinculadora do tempo. As plantas vinculam as substâncias químicas, os animais vinculam o espaço, mas só o homem é capaz de vincular o tempo.
A cultura é a criação conjunta do indivíduo e da sociedade, que interagem mútua e reciprocamente, para se servirem, manterem, sustentarem e desenvolverem um ao outro.
A cultura, portanto, é o complexo de configurações mentais que, em forma de produtos de comportamento e produtos materiais, constitui de modo principal que tem o homem de adaptar-se ao meio total, controlando-o, mudando-o e transmitindo e perpetuando os modos acumulados de fazê-lo.
A mudança evolutiva processa-se em todos os animais por mutação e pelo armazenamento, nos genes, das mutações mais valiosas resultantes da adaptação. No homem, a mudança evolutiva também se processou dessa maneira, mas a adição de um sem-número de mudanças não genéticas, que também representam mudanças evolutivas sociais. Essas mudanças culturais ou de comportamento, não genéticas, não estão armazenadas nos genes, porém na parte do meio feita pelo homem, na parte aprendida, na cultura, nos instrumentos, nos costumes, nas instituições, nas baladas, etc., nas lembranças dos homens, assim como em outros dispositivos não genéticos de armazenamento e recuperação de informações.
A natureza humana é o que se aprende do meio feito pelo homem; não é alguma coisa com que se nasce. O ser humano nasce, isso sim, com as possibilidades de aprendizagem, que, mediante o ensino adequado, podem ser transformadas em capacidades unicamente humanas.


ASHLEY MONTAGU - As necesidades humanas e o significado da cultura

sábado, janeiro 19, 2013

Curiosidades


Namora uma rapariga que lê


"Namora uma rapariga que lê. Namora uma rapariga que gaste o dinheiro dela em livros, em vez de roupas. Ela tem problemas de arrumação porque tem demasiados livros. Namora uma rapariga que tenha uma lista de livros que quer ler, que tenha um cartão da biblioteca desde os doze anos.

Encontra uma rapariga que lê. Vais saber que é ela, porque anda sempre com um livro por ler dentro da mala. É aquela que percorre amorosamente as estantes da livraria, aquela que dá um grito imperceptível ao encontrar o livro que queria. Vês aquela miúda com ar estranho, cheirando as páginas de um livro velho, numa loja de livros em segunda mão? É a leitora. Nunca resistem a cheirar as páginas, especialmente quando ficam amarelas.

 Ela é a rapariga que lê enquanto espera no café ao fundo da rua. Se espreitares a chávena, vês que a espuma do leite ainda paira por cima, porque ela já está absorta. Perdida num mundo feito pelo autor. Senta-te. Ela pode ver-te de relance, porque a maior parte das raparigas que lêem não gostam de ser interrompidas. Pergunta-lhe se está a gostar do livro.
Oferece-lhe outra chávena de café com leite.

 Diz-lhe o que realmente pensas do Murakami. Descobre se ela foi além do primeiro capítulo da Irmandade. Entende que, se ela disser ter percebido o Ulisses de James Joyce, é só para soar inteligente. Pergunta-lhe se gosta da Alice ou se gostaria de ser a Alice.

 É fácil namorar com uma rapariga que lê. Oferece-lhe livros no dia de anos, no Natal e em datas de aniversários. Oferece-lhe palavras como presente, em poemas, em canções. Oferece-lhe Neruda, Pound, Sexton, Cummings. Deixa-a saber que tu percebes que as palavras são amor. Percebe que ela sabe a diferença entre os livros e a realidade – mas, caramba, ela vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco com o seu livro favorito. Se ela conseguir, a culpa não será tua.

 Ela tem de arriscar, de alguma maneira.

 Mente-lhe. Se ela compreender a sintaxe, vai perceber a tua necessidade de mentir. Atrás das palavras existem outras coisas: motivação, valor, nuance, diálogo. Nunca será o fim do mundo.

 Desilude-a. Porque uma rapariga que lê compreende que falhar conduz sempre ao clímax. Porque essas raparigas sabem que todas as coisas chegam ao fim. Que podes sempre escrever uma sequela. Que podes começar outra vez e outra vez e continuar a ser o herói. Que na vida é suposto existir um vilão ou dois.

 Porquê assustares-te com tudo o que não és? As raparigas que lêem sabem que as pessoas, tal como as personagens, evoluem. Excepto na saga Crepúsculo.

 Se encontrares uma rapariga que leia, mantém-na perto de ti. Quando a vires acordada às duas da manhã, a chorar e a apertar um livro contra o peito, faz-lhe uma chávena de chá e abraça-a. Podes perdê-la por um par de horas, mas ela volta para ti. Falará como se as personagens do livro fossem reais, porque são mesmo, durante algum tempo.

ais declarar-te num balão de ar quente. Ou durante um concerto de rock. Ou, casualmente, na próxima vez que ela estiver doente. Pelo Skype.
Vais sorrir tanto que te perguntarás por que é que o teu coração ainda não explodiu e espalhou sangue por todo o peito. Juntos, vão escrever a história das vossas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos ainda mais estranhos. Ela vai apresentar os vossos filhos ao Gato do Chapéu e a Aslam, talvez no mesmo dia. Vão atravessar juntos os invernos da vossa velhice e ela recitará Keats, num sussurro, enquanto tu sacodes a neve das tuas botas.

 Namora uma rapariga que lê, porque tu mereces. Mereces uma rapariga que te pode dar a vida mais colorida que consegues imaginar. Se só lhe podes oferecer monotonia, horas requentadas e propostas mal cozinhadas, estás melhor sozinho. Mas se queres o mundo e os mundos que estão para além do mundo, então, namora uma rapariga que lê.

Ou, melhor ainda, namora uma rapariga que escreve."

 
Texto de Rosemary Urquico, Tradução “informal” de Carla Maia de Almeida para celebrar o

dia mundial da leitura

 

terça-feira, janeiro 19, 2010

Guerra na Argélia
Não julgo que as culturas tenham tentado, sistemática ou metodicamente, diferenciar-se umas das outras. A verdade é que durante centenas de milhares de anos a Humanidade não era numerosa na terra e os pequenos grupos existentes viviam isolados, de modo que nada espanta que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características, tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade sentida pelos grupos. Foi apenas o mero resultado das condições que prevaleceram durante um período bastante dilatado.

Chegados a este ponto, não queria que pensassem que isto é um perigo ou que estas diferenças deviam ser eliminadas. Na realidade as diferenças são extremamente fecundas. O progresso só se verificou a partir das diferenças. Actualmente, o desafio reside naquilo que poderíamos chamar supercomunicação -ou seja a tendência para saber exactamente, num determinado ponto do mundo, o que se passa nas restantes partes do Globo. Para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa medida, da sua superioridade sobre os outros; é somente em condições de subcomunicação que ela pode produzir algo. Hoje em dia estamos ameaçados pela perspectiva de sermos apenas consumidores, indivíduos capazes de consumir seja o que for que venha de qualquer ponto do mundo e de qualquer cultura, mas desprovidos de qualquer grau de originalidade.


Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, Ed.70,Viseu, 1985 ,pp.34



Este é um texto retirado de uma obra muito divulgada, quiça a mais lida de Lévi-Srauss, Myth and Meaning publicada pela primeira vez em 1978 e responsável por uma vaga de curiosidade e admiração pelo exotismo das chamadas civilizações selvagens. Os povos ocidentais descobriam assim uma outra forma de se olharem a si próprios através da diferença cultural encarada não como um sinal de primitivismo torpe mas como uma certa atitude original capaz de nos ensinar o que perdemos com o pensamento científico e a cultura tecnológica. Curiosamente esta antropologia estruturalista está hoje um pouco em desuso e isso, julgo, deve-se, ao facto das civilizações ocidentais se confrontarem com fenómenos de compreensão e integração de outras culturas, fenómeno forçado pela globalização crescente. Assim quando a diferença se quer impôr como uma igual, desenraízada do seu espaço por razões económicas e sociais, deixa de ser uma outra cultura que observamos pacificamente para ser uma interferência relutante nos nossos hábitos e geradora de conflito. Daí que Lévi-Strauss tenha morrido de forma mais ou menos apagada, e o seu pensamento mais ou menos esquecido porque hoje o exotismo transformou-se em resistência e isso não é de modo nenhum agradável.


Helena Serrão

terça-feira, janeiro 12, 2010

Os Tupinambás


Dança dos Tupinambás
Cena canibalista

A ideia de uma filial terrena do Éden bíblico, onde ninguém precisaria de ler leis escritas para ser feliz para sempre, existia muito antes de 1500 (1502 era a data da carta de Américo Vespúcio ao banqueiro Lourenço de Medici , relatando a descoberta na baía de Guanabara, de um grupo de índios, os Tupinambás. Esta carta segundo teses citadas pelo autor serviria de inspiração à obra de Thomas More Utopia) O problema era que não se sabia onde ficava esse Éden e quais eram as horas de visita.Mas, com as grandes navegações, vieram os descobrimentos e os primeiros contactos com as populações dos trópicos. Finalmente se tinha um Éden para mostrar, melhor ainda que o do Génesis - e, pelo que se depreendeu do relato de Vespúcio, ele ficava no Rio. Por quê?
Porque, aqui, em meio da natureza mais exuberante que se pudesse imaginar, vivia um povo doce e inocente, sem noção de governo,moeda, bens materiais ou propriedade privada, desprovido de cobiça, inveja e egoísmo, e alheio a qualquer noção de "bem" e de "mal". Sem culpa também, porque, no perene verão da Guanabara,os homens, mulheres, crianças e velhos circulavam nus dia e noite, sem que isso levantasse sobrolhos entre eles. E, ao contrário do que se poderia pensar, não se tratava de feras com o corpo coberto de pêlos e um terceiro olho na testa, mas de uma gente simpática, de grande beleza física e com uma saúde de fazer inveja a qualquer europeu. O "homem natural", filho directo de Adão, existia de verdade, e que isto servisse de lição para o homem europeu, subitamente esmagado pelo surgimento das grandes potências, pela emergência do capitalismo e pelo individualismo que começava a grassar - eis o recado da Utopia de sir Thomas More.
Tudo isso era confirmado pelos piratas franceses, normandos e bretões que começaram a aportar na Guanabara em 1504, apenas dois anos depois de Vespúcio, e que voltavam para contar a história. Diziam eles que, ao se aproximar do Rio, assim que as suas naus despontavam na barra, eram cercados pelas canoas dos tupinambás e recebidos com tratamento VIP. Os indígenas subiam a bordo, faziam-lhes festinhas, ofereciam-lhes frutas e presentes e ainda lhes entregavam as mulheres. (...)
Supreendentemente, uma outra especialidade dos Tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. Talvez porque o seu hábito de comer carne humana fosse movido apenas por vingança (nada a ver com escassez de alimento na praça) e obedecesse a rígidas regras de etiqueta. Primeiro, só comiam os seus prisioneiros de guerra e, mesmo assim, só os fortes e corajosos - de preferência os temiminós, uma tribo com quem mantinham uma guerra quase esportiva havia quinhentos anos. Segundo, nada era feito às pressas: o prisioneiro tinha uma série de direitos e deveres antes de morrer.


 
Ruy Castro, Carnaval no Fogo, Companhia das letras, S. Paulo, 2003, pp 27, 28, 30

Curioso é o modo como no livro é descrito o canibalismo, uma forma de cerimónia onde se prestava o culto ao inimigo comendo o seu corpo para assim assimilar as suas virtudes.Esta visão contrasta com o modo como as gravuras cristãs retratam a mesma cena: uma forma terrífica onde sobressai o demoníaco do acto. Resta acrescentar que, segundo descrição, o inimigo canibalizado era morto de forma indolor com uma pancada seca na cabeça e que antes tinha todas as suas exigências satisfeitas. As perspectivas alteram o significado do acto.
O texto está escrito em português do Brasil e mantém as expressões tal como as utiliza o autor.
Helena Serrão

domingo, dezembro 13, 2009

A sociedade do espectáculo


Richard Kalvar, EUA, n. 1944

É na figura deste mundo separado e organizado através dos media, em que as formas do Estado e da Economia se penetram mutuamente, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e irresponsável sobre toda a vida social. Depois de ter falsificado a totalidade da produção, ela pode agora manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória e da comunicação social, para transformá-las numa única mercadoria espectacular, em que tudo pode ser posto em questão, excepto o próprio espectáculo, que, em si, nada mais diz do que isto: o que aparece é bom, o que é bom aparece".

Giorgio Agamben, A comunidade que vem,Presença,1993, Lx, p.62

quarta-feira, outubro 07, 2009

Radicalismos 2

Disseste que devemos à literatura praticamente tudo o que somos e o que temos sido. Se os livros desaparecessem, a história desapareceria, e os seres humanos também desapareceriam. Estou certa que tens razão. Os livros não são apenas a soma arbitrária dos nossos sonhos e da nossa memória. Dão-nos também o modelo da auto-transcendência. Alguns pensam ler apenas como uma forma de escape: um escape do mundo “real” de todos os dias, para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Os livros são muito mais. São uma forma de ser completamente humano.
Sinto ter de te dizer que os livros são hoje considerados como uma espécie em extinção. Por livros, entendo também as condições de leitura que tornam possível a literatura e os seus efeitos na alma. Em breve, dizem, acederemos a qualquer texto disponível nos "livros on-line" e será possível modificar a sua aparência, colocar-lhe questões, “interagir” com eles. Quando os livros se tornarem “textos” com os quais “interagimos” de acordo com um critério de utilidade, a palavra escrita tornar-se-á simplesmente um outro aspecto da nossa realidade televisiva orientada para a publicidade. Este o glorioso futuro que nos está ser criado e prometido, como algo mais “democrático”. Claro, isso não significa nada menos do que a morte do universo interior– e do livro.


Susan Sontag, A letter to Borges, Junho 1996



in Where the stress falls,Penguin books, 2009, Londres, p.112




Tradução Helena Serrão

quarta-feira, abril 29, 2009

O Homem revoltado

Rubens, Prometeu

Há, sem dúvida, um mal que os homens acumulam no seu desejo apaixonado de unidade. Mas um outro mal está na origem desse movimento desordenado. Diante desse mal, diante da morte, o homem, no mais profundo de si mesmo, clama por justiça. O cristianismo histórico só respondeu a esse protesto contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige a fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; continua solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer são multidões sem Deus. O nosso lugar, a partir de hoje, é ao seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores. O cristianismo histórico adia para além da história a cura do mal e do assassinato, que, no entanto, são sofridos na história. O materialismo contemporâneo julga, da mesma forma, responder a todas as perguntas. Mas, escravo da história, aumenta o domínio do assassinato histórico, deixando-o ao mesmo tempo sem justificação, a não ser no futuro, que, ainda uma vez mais, exige a fé. Em ambos os casos, é preciso esperar, e, enquanto isso, os inocentes não deixam de morrer. Há vinte séculos, a soma total do mal não diminuiu no mundo. Nenhuma cura, divina ou revolucionária, se realizou. A injustiça continua ligada a todo sofrimento, mesmo o mais merecido aos olhos dos homens. O longo silêncio de Prometeu diante das forças que o oprimem continua a gritar. Mas, nesse momento, Prometeu viu os homens voltarem -se contra ele, ridicularizando-o. Acossado entre o mal humano e o destino, o terror e o arbítrio, só lhe resta a sua força de revolta para salvar do assassinato aquilo que ainda pode ser salvo, sem ceder ao orgulho da blasfémia.Compreende-se então que a revolta não pode prescindir de um estranho amor. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: os humilhados. O corolário do movimento mais puro de então o grito dilacerante de Karamazov: se não forem todos salvos, de que serve a salvação de um só?
Albert Camus, O Homem Revoltado

terça-feira, dezembro 02, 2008

A Sociedade do Espectáculo

Guy Debord, Paris, 1931 -1994
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A sociedade que repousa sobre a moderna indústria não é fortuitamente espectacular ou superficialmente espectacular, ela é fundamentalmente "espectalista". No espectáculo, imagem da economia reinante, a finalidade não é nada, o desenvolvimento tudo. O espectáculo não quer vir a ser outra coisa senão ele mesmo.

15

Enquanto adereço indispensável dos objectos produzidos, enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, enquanto sector económico que forma directamente uma multidão de imagens/objectos, o espectáculo é a principal produção da sociedade.

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O espectáculo submete os homens vivos na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Não há mais nada senão economia desenvolvendo-se a si mesma. O espectáculo é o reflexo fiel da produção das coisas, e a objectivação infiel dos produtores.

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A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou na definição de toda a realização humana uma degradação evidente, degradação do ser no haver. A presente fase da ocupação total da vida social através dos resultados acumulados da economia, conduz a um deslizamento generalizado do haver no parecer, do qual todo o haver efectivo dele tira o seu prestígio imediato e a sua última função. Ao mesmo tempo, toda a realização individual tornou-se social, directamente dependente da força social, formada por ela. Aqui, quando nada é, permitem-lhe aparecer.


Guy Debord, La société du Spectacle (Gallimard, Paris 1992). Publicado pela primeira vez em 1967.
Tradução de Helena Serrão.

Retirando o tom apologético e datado na forma como simplifica as relações sociais e económicas de modo a obter um produto discursivo inflamante , a leitura de Debord não deixa de fazer todo o sentido e obrigar-nos a pensar de novo este produto imagem/espectáculo onde as verdadeiras motivações do sistema são apagadas ou elididas. Um sistema que se mostra e autopromove a todo o momento numa espécie de máquina histórica que submete as relações individuais e sociais, mesmo aquelas que supostamente se queriam marginais, a um efeito promocional; de facto à luz desta leitura nenhum discurso parece poder escapar a este efeito de globalização.

sexta-feira, setembro 12, 2008

Uma visão da modernidade

Félix Nadar, 1820/1910, Baudelaire
Baudelaire caracteriza do modo seguinte o rosto da modernidade, não negando o sinal de Caim na sua fronte: "A maior parte dos poetas que se ocuparam de assuntos verdadeiramente modernos contentou-se com os reconhecidos e oficiais - as nossas vitórias e o nosso heroísmo político. Mesmo assim, fazem-no de mau grado, só porque o governo lhes faz a encomenda e lhes paga os honorários. E no entanto há assuntos da vida privada que são muito mais heróicos. O espectáculo da vida mundana e dos milhares de existências sem saída que habitam os subterrâneos de uma grande cidade- as dos criminosos e das mulheres amancebadas - a Gazette des Tribunaux e o Moniteur, mostram que só precisamos de abrir os olhos para descobrir o nosso próprio heroísmo." Aqui surge o apache, o delinquente urbano, na imagem do herói, nele convergem os caracteres que Bounoure assinala na solidão de Baudelaire - "um noli me tangere, um enclausuramento do indivíduo na sua diferença." O apache rejeita as virtudes e as leis. Denuncia de uma vez por todas o Contrat Social, e acha que todo o mundo o separa do burguês. (...) Antes de Baudelaire, o apache, que durante toda a vida se vê remetido à periferia da sociedade como da grande cidade, não tem lugar na literatura.(...) Os poetas encontram o lixo da sociedade nas suas ruas, e é também ele que lhes fornece a sua matéria heróica. Assim, no tipo ilustre do poeta transparece um outro, vulgar de que ele é cópia. O poeta é penetrado pelos traços do trapeiro, que tantas vezes ocupou Baudelaire. (...) " Eis um homem cuja função é recolher o lixo de mais um dia na vida da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, perdeu, partiu, é catalogado e coleccionado por ele. Vai compulsando os anais da devassidão, o cafarnaun da escória. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; procede como um avarento com o seu tesouro, juntando o entulho que, entre as maxilas da deusa da indústria, voltaram a ganhar forma de objectos úteis ou agradáveis.".Esta descrição é apenas uma metáfora ampliada do trabalho do poeta segundo o sentimento de Baudelaire. Trapeiro ou poeta -a escória interessa a ambos; ambos exercem solitários, a sua profissão, a horas em que os burgueses se entregam ao sono; até o gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala da passada brusca de Baudelaire; é o passo do poeta saqueando a cidade nas suas deambulações em busca de rimas.


Walter Benjamin, A modernidade,Assírio e Alvim, Lx, 2006 pag.80, 81

Tradução de João Barrento

Os excertos de Baudelaire são retirados de Oeuvres de Charles Baudelaire, Pléiade,1931,1932

sábado, maio 24, 2008

Que significa 'cultura'?


Em meados do século dezoito o conceito de cultura surgiu da cabeça de Johann Gottfried Herder preparado para as batalhas em que tem estado envolvido desde então. Kultur, para Herder, é o sangue vital de um povo, a corrente de energia moral que mantém a sociedade intacta. Zivilisation, em contraste, é a sofisticação nas maneiras e o saber-fazer técnico e legal. As nações podem partilhar uma civilização, mas serão sempre distintas na sua cultura, uma vez que a cultura define o que elas são.
Esta ideia desenvolve-se em duas direcções. Os românticos alemães (Schelling, Fichte, Hegel, Holderlin) concebem a cultura no sentido de Herder, como a essência que define uma nação, uma força espiritual comum que se manifesta em todos os costumes, crenças e práticas de um povo. A cultura, sustentam, molda a língua, a arte, a religião e a história e deixa a sua marca no mais pequeno dos eventos. Nenhum membro da sociedade, por pouca formação que tenha está dela arredado, pois cultura e pertença social são a mesma ideia.
Outros, mais clássicos do que românticos, interpretam a palavra no seu significado latino. Para Wilhelm von Humboldt, pai fundador da universidade moderna, cultura não significa desenvolvimento espontâneo, mas a instrução. Nem todos a possuem, visto que nem todos possuem o tempo livre, a inclinação ou a capacidade necessárias para aprender. Além disso, entre pessoas cultas, algumas são mais cultas do que outras. O propósito da universidade é preservar e expandir a herança cultural e transmiti-la à geração seguinte.
As duas ideias ainda se encontram entre nós. Os primeiros antropólogos adoptaram a concepção de Herder e escreveram sobre a cultura enquanto práticas e crenças que formam a identidade própria de uma tribo. Qualquer membro da tribo possui a cultura, visto que é isso que a pertença requer. Mathew Arnold e os críticos literários que ele influenciou (incluindo Eliot, Leavis e Pound) seguiram Humboldt, entendendo a cultura como uma propriedade de uma elite, uma postura que envolve intelecto e estudo.

Roger Scruton, Modern Culture, London, New York, 1998.
Trad. Carlos Marques.

quarta-feira, abril 02, 2008

Televisão: Um perigo para a democracia

Imagem criada por Chris Weston para ilustrar o romance de George Orwell, "1984" onde se colocou pela primeira vez em ficção a ideia de uma câmara "Big brother" que vigiava o movimento dos cidadãos.


Por ocasião de uma conferência que dei há alguns anos na Alemanha tive o ensejo de conhecer o responsável de uma cadeia (de TV) que se deslocara para me ouvir juntamente com alguns colaboradores. (...) Durante a nossa discussão fez afirmações inauditas, que se lhe afiguravam naturalmente indiscutíveis. «Devemos oferecer às pessoas o que elas esperam», afirmava, por exemplo, como se fosse possível saber o que as pessoas pretendem recorrendo simplesmente aos índices de audiência. Tudo o que é possível recolher, eventualmente, são indicações sobre as preferências dos telespectadores face aos programas que lhes são oferecidos. Esses números não nos dizem o que devemos ou podemos propor, e esse director de cadeia também não podia saber que escolhas fariam os telespectadores perante outras propostas. De facto, ele estava convencido de que a escolha só seria possível no quadro do que era oferecido e não perspectivava qualquer alternativa. Tivemos uma discussão realmente incrível. A sua posição afigurava-se-lhe conforme aos «princípios da democracia» e pensava dever seguir a única direcção compreensível para ele, a que considerava «a mais popular». Ora, em democracia nada justifica a tese deste director de cadeia (de TV), para quem o facto de apresentar programas cada vez mais medíocres corresponde aos princípios da democracia «porque é o que as pessoas esperam». Nessas circunstâncias, só nos resta ir para o inferno!"A democracia, como expliquei algures, não é mais do que um sistema de protecção contra a ditadura, e nada no seio da democracia proíbe as pessoas mais instruídas de comunicarem o seu saber às que o são menos. Pelo contrário, a democracia sempre procurou elevar o nível de educação; é essa a sua autêntica aspiração. As ideias deste director de cadeia (de TV) não correspondem em nada ao espírito democrático, que sempre foi o de oferecer a todos as melhores oportunidades. Inversamente, os seus princípios conduzem a propor aos telespectadores emissões cada vez piores, que o público aceita desde que se lhes acrescente violência, sexo e sensacionalismo".




Karl Popper e John Condry, Televisão: Um perigo para a democracia, 1999, Gradiva, Lx

terça-feira, fevereiro 19, 2008

O egoísmo ético é arbitrário

Dorothea Lange


Devemos, pois, perguntar o seguinte: Pode um racista apontar uma diferença entre, digamos, brancos e negros que possa justificar tratá-los de maneira diferente? Os racistas tentaram por vezes fazer isso descrevendo os negros como estúpidos, falhos de ambição, e outras coisasa que tais. Se isso fosse verdade, poderia justificar-se tratá-los de forma diferente, pelo menos em algumas circunstâncias. (Este é o propósito de fundo dos estereótipos racistas, oferecer as "diferenças relevantes" necessárias para justificar as diferenças de tratamento.) Mas naturalmente isso não é verdade, e de facto não há tais diferenças genéricas entre as raças. portanto, o racismo é uma doutrina arbitária, pois advoga o tratamento diferenciado das pessoas, apesar de não haver entre elas diferenças que o justifiquem.


O egoísmo é uma teoria moral do mesmo género. Advoga que cada pessoa divida o mundo em duas categorias de pessoas nós e todos os outros - e que encare os interesses dos do primeiro grupo como mais importantes que os interesses dos do segundo grupo. Mas, pode cada um de nós perguntar, qual é afinal a diferença entre mim e todos os outros que justifica colocar-me a mim mesmo nesta categoria especial? Serei mais inteligente? Gozarei mais a minha vida? Serão as minhas realizações mais notáveis? Terei necessidades e capacidades assim tão diferentes das necessidades e capacidades dos outros? Em resumo, o que me torna tão especial? Ao não fornecer uma resposta, o egoísmo ético revela-se uma doutrina arbitrária, no mesmo sentido em que o racismo é arbitrário. Além de explicar a razão pela qual o egoísmo ético é inaceitável, isto lança também alguma luz sobre a questão de saber por que devemos importar-nos com os outros.




James Rachels, Problemas da Filosofia Moral, Lx, Gradiva