terça-feira, janeiro 30, 2018

A parábola da açougueira e do filósofo analítico.




Um concurso foi anunciado para ver quem poderia esculpir(retalhar) melhor um pedaço de carne. O juiz anunciado fora um famoso Chefe, com duas estrelas Michelin no seu curriculum. Atraídos pelo prémio em dinheiro, uma açougueira e um filósofo analítico aderiram ao concurso.  O filósofo analítico foi o primeiro.  Um pedaço de carne fresco foi colocado na sua frente numa mesa de madeira, e este aproximou-se para começar. O filósofo estava vestido com calças chinesas bem passadas e uma camisa de abotoar. Colocando sobre a mesa uma mala em couro que revelava uma coleção cintilante de bisturis perfeitamente afiados, o filósofo analítico selecionou cuidadosamente um dos seus bisturis e, após uma cuidadosa inspeção do pedaço de carne, levantou a mão e fez o primeiro corte, um corte preciso numa linha reta perfeita. Trabalhando constantemente, mas com um cuidado meticuloso, procedeu realizando cortes transversais e perpendiculares até completar a tarefa; empreendimento que lhe custou uma hora. Quando terminada, o filósofo recuou, limpou o bisturi com um pedaço de papel toalha, recolocando-o na maleta, e com uma reverência ao juiz, retirou-se. A açougueira prosseguiu.  O segundo pedaço de carne estava na mesa ao lado daquela onde o filósofo analítico trabalhara. Ela estava vestida com um fato-macaco e um avental de açougueiro, no qual manchas e respingos de sangue poderiam ser vistos. Tirou uma machadinha, um serrote, uma faca afiada de açougue, e começou a trabalhar prontamente no seu pedaço de carne. Pedaços de gordura e cartilagem voavam para lá e para cá, sujando o seu avental e mesmo o seu cabelo, o qual ela protegera com uma touca de rendas. A açougueira assobiava enquanto trabalhava na sua mesa até que, de repente, colocou sobre a mesa o seu serrote, reverenciou o juiz, e deu um passo para trás. O juiz examinou cada mesa apenas um momento e, então, sem a menor hesitação, deu o prémio à açougueira. O filósofo analítico estava estupefato. “Mas”, protestou, “não há a menor comparação entre os resultados das duas mesas!. A mesa da açougueira está uma confusão, pedaços de carne, gordura, pedacinhos de osso e gotas de sangue por todo lado. A minha mesa está intacta; um cenário cuidadoso de cubos de carne esculpidos perfeitamente, todos com lados paralelos e do mesmo tamanho. Por qual motivo na terra você deu o prémio à açougueira?”.  O juiz explicou. “A açougueira transformou o seu pedaço de carne numa série de pedaços de bifes para churrasco, para assar, cozer e separou uma pequena pilha de sobras para moer. Ela sabia claramente onde as junções do bife estavam, como cortar contra a textura nas partes mais duras e onde aplicar o seu serrote. Você, por outro lado, reduziu o seu pedaço de carne de primeira a carne de guisado”.  Moral: Quando for cortar um pedaço de carne é bom conhecer algo sobre o que se esconde abaixo da sua superfície. Observação: Essa também não é uma má ideia quando for fazer filosofia.

Parábola de Robert Paul Wolf. 

Tradução: Felipe Kauai

quarta-feira, janeiro 17, 2018

Natureza e Ética



David Seymour, Nuremberga, 1947 "Crianças brincando na praia"



A Natureza, Sr Allnut, é aquilo que viemos a este mundo para ultrapassar"
Nature, Mr Allnut, is what we were put in the world to rise above.

Frase de Katherine Hepburn para Humprey Bogart na Rainha Africana (1951)

(...) Como decidimos o que é certo ou errado, bom ou mau? Muitos filósofos avisaram-nos de que nenhum facto sobre a natureza pode fornecer alguma base para discutir valores. No Tratado sobre a Natureza Humana (1739/40), David Hume formula um convincente argumento sobre o fosso intransponível entre facto e valor, entre “é” e “deve”. Numa tentativa de ultrapassar esse fosso comete-se a chamada “falácia naturalista”: nenhum argumento com premissas factuais pode fornecer-nos qualquer conclusão sobre o que tem valor, ou sobre o que devemos fazer.

Na obra Principia Ethica (1903), o filósofo G. E. Moore aduziu o que ele chamou de “argumento de pergunta aberta" para uma restrição semelhante em qualquer discurso sobre o valor. Moore alega que qualquer tentativa para definir “bom” em termos naturalistas – tal como prazer, utilidade, ou, como um mandamento divino – tem de falhar, porque permanece sempre a questão em aberto se o prazer, ou a utilidade ou aquele particular mandamento divino, são realmente bons. Se essa definição naturalista fosse boa, como a definição de triângulo enquanto uma figura plana com três ângulos, então a questão “É o triângulo realmente uma figura com três lados?”, não faria sentido, o que apenas assinala o falhanço da definição de “bom”. A formulação de Moore deu origem a um enorme debate. É razoável objetar que ficou por formular a seguinte questão: se uma dessas definições estiver correta então já esta questão não está em aberto. Mas teremos que admitir que nenhuma definição de “bom” em termos de propriedades naturais é muito plausível. O fosso original “é- deves” de Hume permanece.

Na prática é claro que seria impossível decidir o que é melhor sem referências a factos. Em medicina como nas políticas públicas, as decisões “baseadas em evidências” são os padrões por excelência a que até os políticos aspiram. Mas a evidência que esperamos só é relevante porque certos objetivos são considerados inquestionáveis: saúde, felicidade, vida. Estes são os valores que pressupomos mesmo que pareçam demasiado óbvios para serem articulados em qualquer argumento prático ou moral. Se o dinheiro compra a felicidade, então esforça-te para fazer dinheiro. Mas apenas se a felicidade for o tipo de coisas que deves perseguir. Se a comida sustém a vida, então come! Mas apenas se valorizas a vida.

Então onde poderemos encontrar a justificação das premissas gerais sobre os valores? Se ir dos factos para os valores é uma falácia, então não poderemos fundamentar os juízos de valor nos factos. Mas se não nos factos, então em quê? Não-factos? “Factos alternativos”, talvez? Um tipo de verdades que se distinguem dos factos vulgares da experiência são os factos lógicos. E alguns filósofos, nomeadamente, Immanuel Kant, no século XVIII, pensava que podemos extrair os princípios morais puramente da razão. Isto parece reduzir a imoralidade a um mero erro lógico matemático. E, face a isto, parece absurdo, apesar dos sucessivos esforços dos seguidores de Kant, para considerar que o absurdo só o é porque não somos espertos o suficiente para o compreender. Há muito tempo que este tem sido o estratagema de filósofos e teólogos: se discordares do seu dogma então deves ser estúpido ou fraco. Prefiro continuar a pensar que não percebo.

Então devemos admitir que tudo o que diz respeito a valores, bondade ou correção é arbitrário? Não. (...)

Uma proposta de resposta é aquela que aponta para considerarmos as nossas vontades e desejos face ao valor. Querer qualquer coisa tem implícito que vejamos isso que queremos como valoroso. O nosso desejo é um facto sobre nós, mas parece apontar para um valor. Cuidamos do que desejamos, e, por  definição, aquilo que cuidamos é o que valorizamos. Stuart Mill adota esta estratégia quando declara no Utilitarismo (1863) “a única evidência sobre o facto de algo ser desejável é porque alguém realmente o deseja.” Por tal, Mill foi acusado de cometer uma falácia naturalista por se ter equivocado em relação ao significado de “desejável”. Significa “o que merece ser desejado” ou “o que é capaz de ser desejado”? O facto de uma coisa ser desejada prova que ela pode sê-lo; mas não prova que deva ser desejada. Pois nem sempre o que desejamos merece ser desejado.

(...) Mas como poderemos saber qual dos nossos desejos devemos aprovar?

Uma abordagem outrora apreciada apela para ideia de que os nossos desejos são dignos desde que provenham da nossa autêntica natureza humana. Daoistas, Epicuristas e Aristotélicos, entre outros dignatários da antiga sabedoria sempre nos incentivaram a seguir a natureza. Mas o que quer isso dizer?

(...) O que a biologia nos ensina acerca da natureza humana é que, em sentido realista, não há tal coisa como a natureza humana. A única atitude coerente que podemos ter perante esse facto é a existencialista; se há algum ensinamento que podemos encontrar na natureza é a de que nada aí existe que possamos seguir. Logo, só podemos aspirar a criá-lo.”

Ronnie de Sousa "Nascemos existencialistas" in AEON,  Ver artigo completo AQUI 

Tradução de Helena Serrão

sábado, janeiro 06, 2018

Camus, o homem revoltado


Sorolla, 1894, Ainda dizem que o peixe é caro



“Se os homens não conseguem referir- se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o Homem torna-se incompreensível para o próprio homem. O rebelde exige que esse valor seja claramente reconhecido em si mesmo, porque suspeita ou sabe que, sem ele, a desordem e o crime reinariam no mundo. O movimento de revolta surge nele como uma reivindicação de clareza e de unidade. A mais elementar rebelião exprime, paradoxalmente, a aspiração a uma ordem. Linha por linha, essa descrição convém ao revoltado metafísico. Este insurge-se contra um mundo fragmentado para dele reclamar a unidade. Contrapõe o princípio de justiça que nele existe ao princípio de injustiça que vê no mundo. Primitivamente, nada mais quer senão resolver essa contradição, instaurar o reino unitário da justiça, se puder, ou o da injustiça, se a isso for compelido. Enquanto espera, denuncia a contradição. Ao protestar contra a condição naquilo que tem de inacabado, pela morte, e de disperso, pelo mal, a revolta metafísica é a reivindicação motivada de uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e de morrer. Se a dor da morte generalizada define a condição humana, a revolta, de certa forma, é dela contemporânea. Ao mesmo tempo em que recusa a sua condição mortal, o revoltado recusa-se a reconhecer o poder que o faria viver nessa condição. O revoltado metafísico, portanto, certamente não é ateu, como se poderia pensar, e sim obrigatoriamente blasfemo. Ele blasfema, simplesmente em nome da ordem, denunciando Deus como o pai da morte e o supremo escândalo. Voltemos ao escravo revoltado para esclarecer a questão. No seu protesto, ele estabelecia a existência do senhor contra o qual se revoltava. No entanto, demonstrava simultaneamente que o poder do senhor dependia de sua própria subordinação e afirmava o seu próprio poder: o de questionar permanentemente a superioridade que até então o dominava. Nesse sentido, senhor e escravo estão realmente no mesmo barco: a realeza temporária de um é tão relativa quanto a submissão do outro. As duas forças afirmam-se alternativamente, no instante da rebelião, até o momento em que se confrontarão para se destruírem, e uma das duas então desaparecerá provisoriamente.


Da mesma forma, se o revoltado metafísico se volta contra um poder, cuja existência simultaneamente afirma, ele só reconhece a sua existência no próprio instante em que a contesta. Arrasta então esse ser superior para a mesma aventura humilhante do homem, com o seu vão poder equivalendo à nossa vã condição. Submete-o a essa força de recusa, inclina-o por sua vez diante da parte do homem que não se inclina, integra-o à força numa existência para nós absurda, retirando-o, enfim, do seu refúgio intemporal para compromete-lo na história, muito longe de uma estabilidade eterna (que só poderia encontrar no consentimento unânime dos homens). A revolta afirma desse modo que, no seu nível, qualquer existência superior é, pelo menos, contraditória.”



Albert Camus, O Homem revoltado, S. Paulo, Record, 2011, p.30, 31,


A escrita de Camus excessiva e desassombrada já não nos choca mas faz-nos esboçar um meio sorriso de condescendência, a nossa época intelectual prefere discutir argumentos, cansou-se de ideologias ou não as tem, perdeu-as ou não as quer, por demasiado espalhafatosas e condenadas a uma ruína inevitável e previsível. A questão que Camus faz ressurgir não é ideológica mas dialética. A dialética assegura-nos a passagem das contradições próprias do viver histórico e psicológico dos indivíduos e, ao mesmo tempo, eleva a contradição ao estatuto de duplamente necessária; necessária para a passagem a uma ordem diferente e necessária enquanto constante inevitável do percurso humano/histórico. A revolta exprime e resulta da vivência dessa contradição. Ora, quando analisamos filosoficamente a argumentação, vemos apenas uma perspetiva formal ou de conteúdos e descontextualizamos da história e da condição histórica do discurso, desvinculamo-lo assim do seu compromisso ideológico que resulta dessa condição e do ser particular que argumenta num determinado momento da sua vida e da sua história. Deste modo, a própria argumentação fica sem um fim, perdida em si, e sem o seu verdadeiro sentido que é psicológico ou ideológico ou ambos ou um deles.