segunda-feira, outubro 26, 2020

Sobre os céticos


Fotograma de " O Ajo Azul" Filme de Joseph Von Sternberg, 1930

 

"Não temos os ouvidos cheios dos perigosos rumores dos factos?", diz o cético, no seu amor pela quietude, como um policial que deve zelar pela segurança pública, "Este não subterrâneo é terrível. Silêncio. Pelo menos uma vez, animais subterrâneos!" Aqui é que o cético, este ser delicado,  amedronta-se facilmente, a sua consciência está pronta a sobressaltar –se a cada não e mesmo a um sim decidido, e experimenta uma espécie de ofensa. Sim e não! — mas isto a seu ver vai contra a moral — contrariamente, gosta de festejar a sua virtude com uma nobre abstenção, por exemplo dizendo com Montaigne: "Que sei eu?" ou, com Sócrates "Sei que não sei nada", ou ainda: "Desconfiei de mim mesmo, nenhuma porta se me abriu aqui" e, "supondo que fosse aberta, porquê entrar depressa?" Ou ainda: "Para que servem as hipóteses apressadas?" Abster-se de todas as hipóteses poderia ser prova de bom gosto. "É necessário endireitar aquilo que é curvo? Ou tapar um buraco com uma estopa qualquer? Não há tempo para isso? E o tempo não tem tempo? Mas sois endiabrados que não quereis ESPERAR? Mesmo o incerto tem seus atrativos, a Esfinge é uma Circe, e Circe também era filósofo." Estes são os consolos do cético e é necessário conceder que deles necessita. O ceticismo é a expressão mais espiritual para um estado fisiológico complicado, que vulgarmente se chama debilidade nervosa e morbidez, e que se manifesta todas as vezes em que raças ou classes longamente divididas entre si se entrecruzam de modo decidido e repentino. Na nova geração que herdou, por assim dizer, diferentes medidas e valores, tudo é inquietude, turbamento, dúvida, tentativa, as melhores forças agem inibidoramente, as próprias virtudes não permitem, reciprocamente, o crescimento e fortalecimento de cada uma delas, falta equilíbrio à alma e ao corpo, força gravitacional e segurança perpendicular. Mas aquele que nasceu de tais raças cruzadas é, antes de mais nada adoentado e degenerado em termos de vontade, ignora a independência que há na resolução, a sensação valorosa, a satisfação do querer, duvidam do "livre arbítrio", até nos seus sonhos. A nossa Europa é, nos nossos dias,teatro de uma tentativa insensatamente repentina de mistura radical de classes e consequentemente de raças e portanto cética, daquele ceticismo móvel que salta impaciente de ramo em ramo, outras vezes sombrio como uma nuvem prenhe de pontos de interrogação e frequentemente mortalmente saciado do próprio querer! Paralisia da vontade — onde não se encontra, na atualidade, esse ser raquítico?! E quantas vezes com que fausto não é visto! E que fausto sedutor! Esta moléstia endossa as mais suntuosas vestes da mentira, e assim, por exemplo, tudo aquilo que é pomposamente tratado, na atualidade, sob o nome de “objetividade”, de “filosofia científica” de “l'art pour l'art”, de “conhecimento puro e independente da vontade”, nada mais é que ceticismo, paralisação da vontade pomposamente apresentada -, asseguro-me o diagnóstico dessa moléstia europeia. A vontade doente difundiu-se de modo desigual na Europa, manifesta-se com mais força e sob os aspetos mais variados onde a cultura se aclimatou há mais tempo e tende a limitar-se na medida em que o "bárbaro" tende a manter — ou a reivindicar — os seus direitos sobre os negligentes vestuários da civilização ocidental.

Nietzsche, Para além do Bem e do Mal, São Paulo HEMUS LIVRARIA, pág 128

quarta-feira, outubro 07, 2020

Existirá um conhecimento "a priori"?

 



Retire um livro retangular da sua estante e olhe para a capa. Qual é a cor predominante, e quantos lados tem? Ao responder a estas questões, o leitor fica a saber duas coisas acerca deste livro, e esses dois factos mostram uma importante distinção entre duas maneiras que temos de adquirir conhecimento.

Para ficarmos a saber a cor do livro temos que observá-lo (ou pedir a alguém que o faça por nós). A justificação para a sua crença acerca da sua cor é fornecida pela experiência (nossa ou de outrem). Mas não precisamos de olhar para um livro retangular para sabermos quantos lados tem. Sabemos que os retângulos têm quatro lados pelo simples facto de pensarmos o que é um retângulo. Adquirimos este conhecimento usando apenas os nossas poderes de raciocínio; não temos de considerar a informação dada pelos nossos sentidos. O conhecimento que é justificado pela experiência é denominado conhecimento a posteriori ou conhecimento empírico. O conhecimento em que a experiência não tem um papel justificatório é denominado conhecimento a priori.



Dan O'Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento