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segunda-feira, agosto 17, 2009

A arte como expressão de emoções

Dia de Verão em Skagen, 1884, Severin Kroyer, Dinamarca/Noruega, 1851/1909


Aquele que fabrica arte, aquele que escreve, não devia nunca esquecer que reforça a colectividade. A sua individualidade não é senão uma forma de colectivo. É preciso que saiba que a sua expressão, como a da linguagem, é sempre, faça o que fizer, uma tentativa com vista à aprovação e não à revolta. E tudo aquilo que ele pensa e diz envolve totalmente a comunidade, a sua comunidade. (…)


O artista engana-se ao querer estar só; são perigosos e ilusórios os prazeres retirados do hermetismo. Podem conduzir à inexpressão, quer dizer à morte. O artista não é um semi-deus nem um profeta. Não é mesmo forçosamente um homem inteligente. É um emotivo, só isso. Não inventa nada; não cria nada. Não tem génio. Sabe apenas fazer sínteses. É um bom organizador. Hoje não exigimos mais ao artista que seja artesão. As especializações vêm-nos do tempo em que os dons da expressão nos indivíduos eram desiguais; havia o hábil de mãos, o que falava bem, aquele que tinha boa voz para cantar, ou boas pernas para dançar. Mas a sociedade actual não sente mais a necessidade de perfeição expressiva; está aberta a todas as formas. Cada um tem verdadeiramente uma alma, cada um tem qualquer coisa a dizer. A noção de estilo existe ainda por hábito, mas a verdade da arte, hoje, está na sensibilidade, já não está na técnica. A arte não é possível de outro modo senão pela emoção. O que procuramos, é menos um cálculo exacto do mundo do que uma evocação afectiva que o permite entender num plano exterior à realidade.



É isto, um erro? Terá sido este deslizamento do domínio do real para o domínio do emotivo que desviou a arte do seu percurso na direcção da consciência? Ou é o começo de um novo caminho na direcção de uma consciência verdadeiramente humana, por assim dizer presa na sua própria aventura falível e sem verdade intemporal?

Talvez o movimento na direcção da beleza não seja mais que uma espécie de tentativa para alcançar a revelação. Beleza dos objectos que é preciso aprender a ver como são, desprovidos dos seus mistérios e dos seus rituais, reino de tudo o que é igual, não igualmente indiferente, mas igualmente poderoso, igualmente atroz, igualmente sumptuoso, reino de tudo o que acontece.
Tradução de Helena Serrão
J.M.G. Le Clézio, L'extase matérielle, Gallimard, Siant-Amand, 2008, pags 206,207

terça-feira, novembro 25, 2008

Misticismo

J.M.G. Le Clézio,Nice, 1940. Prémio Nobel da Literatura 2008


«Quando lhe chegou a fé?»

«Nunca chegou... Acredito poder dizer que , tanto quanto me lembre, sempre tive fé. Nasci crendo.»

«Teve períodos de perturbação, de dúvida?»

«Nunca. Tomei verdadeiramente consciência da religião, e da possibilidade de ser irreligioso, com a idade de oito-nove anos. Qualquer coisa me marcou; nessa época frequentava uma Igreja muito bela onde a missa era maravilhosamente cantada. E, curiosamente, não foi um sentimento de injustiça que me fez compreender a realidade do espírito irreligioso, mas um sentimento de perfeição, de beleza, de sublime. Mergulhei vivo no universo divino, nadei na alegria, e ainda estava aqui, sobre a terra, um homem, nada mais que um homem, pequeno, mesquinho, sem infinito! Era sobretudo esta contradição aparente que me fazia sofrer. Como foi possível sentir tão totalmente o que era Deus, e não passar de um homem? Mas este sofrimento nunca me levou a duvidar, não. Contentei-me a ler os livros santos, e os livros de fé. Mas fui atraído sobretudo por Ruysbrock, O Admirável. Scot Érigène também me comoveu. Mas foi sobretudo Ruysbrock que me formou religiosamente.»

«O misticismo?»

«Sim, o misticismo como única forma possível de religião. Naturalmente, não tardei a chocar-me com Pascal. E retrospectivamente, encontrei-me assim em estado de heresia pura e simples em relação a St. Agostinho ou ao tomismo. Foi, se quiser, nesse momento que tive qualquer coisa comparável a uma crise. Mas foi sempre no interior da fé, e nada tinha de dúvida. Para mim, Descartes ou Malebranche nunca deixaram de representar mundos estranhos, o mundo do raciocínio e da dialéctica. Lia-os, compreendia-os mas se fosse necessário colocar qualquer coisa em dúvida, seriam eles, seria a sua estranha pretensão a tudo regularizar, a construir um mundo sobre os fundamentos da linguagem humana, essa linguagem tão pobre, tão desajeitada. Sabe, dividir o pensamento em duas partes, dado que a frase se divide em duas partes, que a causa apela pela consequência, o tema o predicado, a principal a subordinada. Si deus est bonus est. Tudo isso me parecia puéril, pequeno, cego. Faltava qualquer coisa que transborda, que se esvazia, uma calma completa, uma inocência total face a face com a realidade.»

J.M.G Le Clézio, La fièvre, Gallimard, 2004
Publicado pela 1ª vez em 1965, pela Gallimard
Tradução de Helena Serrão