quinta-feira, outubro 24, 2019

Raciocinar

COMO USAM OS FILÓSOFOS AS CELULAZINHAS CINZENTAS
Raciocinar em filosofia é semelhante a raciocinar em outras áreas. Frequentemente raciocinamos acerca de questões como 'Quem cometeu o crime?', 'Que carro comprar?',  'Há um número primo maior do que todos?' ou 'Como curar o cancro?' Ao abordar estes temas, clarificamos as questões e colhemos informação de fundo. Consideramos o que outros disseram sobre o assunto. Consideramos perspectivas alternativas e as objecções a estas. Fazemos distinções e pesamos os prós e contras. O clímax do processo atinge-se quando tomamos posição e tentamos justificá-la. Explicamos que a resposta tem de ser tal e tal e apontamos para outros factos que justificam a nossa resposta. Isto é raciocínio lógico, no qual vamos de premissas para uma conclusão.
Raciocinar logicamente é concluir algo a partir de algo diferente. Por exemplo, concluir que foi o mordomo que cometeu o homicídio a partir das crenças (1) ou foi o mordomo ou a criada e (2) a criada não pode ter sido. Se colocamos o racicínio em palavras temos um argumento - uma série de proposições consistindo em premissas e uma conclusão:

Ou foi o mordomo ou a criada.
A criada não foi.
Logo, foi o mordomo.

[…] Este argumento é válido, o que significa que a conclusão se segue logicamente das premissas. Se as premissas são verdadeiras, então a conclusão tem de ser verdadeira. Portanto, se podemos ter confiança nas premissas, podemos estar confiantes de que foi mordomo que cometeu o crime.
Dizer que um raciocínio é válido é dizer que a conclusão se segue das premissas e não que as premissas são verdadeiras. Para provar algo precisamos, além da validade do argumento, de premissas verdadeiras. Provamos a nossa conclusão se ela se segue logicamente de premissas claramente verdadeiras.  
A filosofia envolve muito raciocínio lógico. A forma mais comum de raciocínio lógico em filosofia consiste em atacar-se uma tese P argumentando que ela conduz ao absurdo Q:

Se P é verdadeiro, então Q também o será.
Q é falso.
Logo, P é falso.

Ao examinarmos uma tese, consideramos as suas implicações e vamos à procura das falhas. Se encontramos implicações claramente falsas, então mostrámos que a tese é falsa; se encontramos implicações altamente duvidosas, então a tese é duvidosa.
Na formação das nossas perspectivas filosóficas são igualmente importantes o raciocínio e o empenho pessoal. O raciocínio só por si não resolve todas as disputas. Uma vez considerados os argumentos de um lado e de outro, temos de tomar uma decisão. Se nos decidimos por uma perspectiva que levanta fortes objecções, temos de estar à altura de lhes responder.

Harry Gensler, Ethics - A Contemporary Introduction. (London & New York, 1998, p. 3). Tradução de Carlos Marques.

terça-feira, outubro 22, 2019

Argumentos dedutivos



René Magritte

Todos os argumentos que até agora apreciamos têm um certo grau de incerteza, de uma maneira ou de outra. Exemplos novos podem sempre refutar um argumento com base em exemplos, e até uma fonte informada e imparcial pode estar errada. No entanto, os argumentos dedutivos bem construídos são argumentos em que a verdade das premissas garante a verdade das conclusões.
 Se não há factores de sorte no xadrez, então o xadrez depende unicamente do talento dos jogadores. Não há factores de sorte no xadrez. Logo, o xadrez depende unicamente do talento dos jogadores.

 Se estas duas premissas são verdadeiras, então tem também de ser verdade que o xadrez depende unicamente do talento dos jogadores. Para discordar da conclusão, o leitor teria de discordar também de pelo menos uma das premissas.

Os argumentos dedutivos oferecem, pois, certezas —mas apenas se as respectivas premissas forem também certas. Uma vez que as premissas dos nossos argumentos. raramente são de fato assim, as conclusões dos argumentos dedutivos da vida real têm ainda assim de ser apreciadas com algumas (por vezes muitas!) reticências. No entanto, quando conseguimos encontrar premissas fidedignas, as formas dedutivas são muito úteis. Lembre-se da regra 3: tente começar com premissas fidedignas. Mesmo quando as premissas são incertas, as formas dedutivas oferecem uma maneira efetiva de organizar um argumento, especialmente num ensaio argumentativo. Este capítulo apresenta seis formas dedutivas comuns com exemplos simples, cada uma com uma regra própria. Os capítulos VII-IX voltarão a tratar do seu uso nos ensaios argumentativos.

24. Modus ponens

Os argumentos dedutivos bem formados chamam-se argumentos válidos. Usando as letras p e q em representação de duas frases, a forma dedutiva mais simples é:

 Se [frase p], então [frase q]. [Frase p].  Logo, [frase q].

 Ou, mais sucintamente:

 Se p, então q. p. Logo, q.

Esta forma chama-se modus ponens («o modo de pôr»: ponha p, fique com q). Se p representar «não há fatores de sorte no xadrez» e q «o xadrez depende unicamente do talento dos jogadores», o nosso exemplo introdutório é um caso de modus ponens. Verifique-o. Muitas vezes um argumento destes é tão óbvio que não precisa de ser formulado como um modus ponens.

Uma vez que os optimistas tem mais hipóteses de terem sucesso do que os pessimistas, devias ser optimista.



Este argumento pode escrever-se assim:



Se os optimistas tem mais hipóteses de terem sucesso do que os pessimistas, devias ser optimista. Os optimistas tem mais hipóteses de terem sucesso do que os pessimistas.  Logo, devias ser optimista.

No entanto, o argumento é perfeitamente claro sem o pormos nesta forma. Outras vezes, no entanto; é útil escrevermos o modus ponens:

 Se existem milhões de planetas habitáveis na nossa galáxia, então parece provável que a vida se tenha desenvolvido em mais do que um planeta. Existem milhões de planetas habitáveis na nossa galáxia. Logo, parece provável que a vida tenha evoluído em mais do que um planeta.

 Para desenvolvermos este argumento temos de defender e explicar ambas as premissas e elas requerem argumentos bastante diferentes (porquê?). E útil formulá-los clara e separadamente desde o início.


Anthony Weston, A arte de argumentar

quarta-feira, outubro 09, 2019

A filosofia como ciência ainda por amadurecer





AQSAI, LAKE CHAQMAQTIN, LITTLE PAMIR. Expedition walking along frozen Lake Chaqmaqtin. © Frédéric Lagrange

A filosofia não é algo que nos seja completamente estranho. Está omnipresente nas nossas vidas, de maneiras triviais e importantes. Porém, o que é a filosofia? O que procuram os filósofos alcançar?
Tradicionalmente, os filósofos quiseram compreender a natureza de tudo, de um modo muito geral: a existência e a inexistência, a possibilidade e a necessidade, o mundo do senso comum, o mundo da ciência natural, o mundo da matemática, as partes e os todos, espaço e tempo, causa e efeito, mente e matéria. Querem compreender a nossa compreensão ela mesma; o conhecimento e a ignorância, a crença e a dúvida, a aparência e a realidade, a verdade e a falsidade, o pensamento e a linguagem, a razão e a emoção. Querem compreender e ajuizar o que fazemos com essa compreensão: ação e intenção, meios e fins, bem e mal, correto e incorreto, facto e valor, prazer e dor, beleza e fealdade, vida e morte, e mais. A filosofia é superambiciosa.

Esta breve descrição coloca uma pergunta óbvia: uma vez que os cientistas estudam muitos destes tópicos, como se relaciona a filosofia com a ciência? Estas nem sempre estiveram separadas. Desde os antigos gregos, a filosofia incluía a filosofia natural, o estudo do mundo natural. Abreviando, ao longo dos séculos XVI e XVII, a filosofia natural transformou-se em algo reconhecível como a ciência natural no sentido moderno, especialmente a física. Pioneiros como Galileu e Newton ainda se descreviam a si próprios como filósofos naturais. Alguns filósofos eram também cientistas e matemáticos, inclusive Descartes e Leibniz. Contudo, a filosofia natural, ou ciência natural, desenvolveu uma metodologia particular, conferindo um papel crucial à experimentação, à observação exata através de instrumentos especiais como os telescópios e microscópios, à medição e ao cálculo. Cada vez mais esta filha da filosofia se foi assemelhando a uma rival e a uma ameaça mortal à sua progenitora. (…)  Se é um duelo, a filosofia parece em desvantagem, pois dispõe apenas do pensamento, ao passo que a ciência natural tem também aqueles outros métodos. Se os filósofos insistirem que são melhores a pensar, quem acreditará neles? Mudando a metáfora, ao filósofo é dado o papel do preguiçoso que discursa para nós, a partir do conforto da sua poltrona, acerca de como o universo deve ser, ao passo que o cientista sai para observar e ver como realmente é. Se isto for verdade, não será a filosofia obsoleta? Assim, o surgimento da ciência natural provocou uma lenta crise do método filosófico.

Muita da história da filosofia subsequente pode ser interpretada como uma série de reações a esta crise do método; tentativas de encontrar algo, qualquer coisa; que os métodos filosóficos possam fazer melhor que os métodos científicos. (…).

A meu ver, a suposta oposição entre filosofia e ciência parte de uma conceção excessivamente limitada, de modelo único, da ciência. Afinal, a matemática é tão científica quanto as ciências naturais como a física, a química, e a biologia, as quais se apoiam constantemente naquela, e no entanto os matemáticos não fazem experiências. Como os filósofos podem trabalhar sentados numa poltrona. Os métodos que os filósofos usam são os métodos científicos apropriados para responder às sua questões. Como a matemática a filosofia é uma ciência não natural. Ao contrário da matemática, não chega a ser uma ciência plenamente madura.


Timothy Williamson, Filosofar. Da curiosidade comum ao raciocínio lógico, Lisboa, Gradiva,2019,  p.13,14 e 15,

segunda-feira, outubro 07, 2019

Da dúvida



                                                        Foto de Nana Sousa Dias

Estava naquele estado de espírito de incerteza e de dúvida que Descartes exige para a procura da verdade. Este estado não é feito para durar, é inquietante e penoso; deixa-nos apenas o interesse do vício e a preguiça na alma. Não tinha o coração tão corrompido para aí me comprazer; e nada preserva melhor o hábito de refletir que estar mais satisfeito consigo do que com o seu destino.

Meditava então na triste sorte dos mortais flutuando sobre um mar de opiniões humanas, sem governo, sem bússola, e entregues às suas tempestuosas paixões, sem outro guia que um piloto inexperiente que conhece mal a sua rota, e que não sabe nem de onde vem nem para onde vai. Dizia a mim próprio: Amo a verdade, procuro-a, e não posso reconhecê-la; que ma mostrem e ficarei a ela ligado: porque será preciso que ela seja roubada à espontaneidade de um coração feito para a adorar?

Apesar de ter provado muitas vezes grandes males, nunca levei uma vida tão desagradável como nesse tempo de desordem e ansiedade, onde, sem cessar, errando de dúvida em dúvida, só retirava, das minhas longas meditações, incerteza, obscuridade, contradições sobre a causa do meu ser e sobre a regulação dos meus deveres.

Como poderemos ser sistematicamente céticos e estar de boa fé? Não podia compreendê-lo. Estes filósofos, ou não existem, ou são os mais infelizes dos homens. A dúvida sobre as coisas que nos importam conhecer é um estado demasiado violento para o espírito humano: ele não resiste aí muito tempo; decide-se, apesar de tudo, de um modo ou de outro, e prefere enganar-se a não crer em nada.
O que redobrava o meu embaraço, era que tendo nascido numa Igreja que tudo decide, que não permite nenhuma dúvida, um único ponto rejeitado fazia-me rejeitar tudo o resto, e que a impossibilidade de admitir tantas decisões absurdas separava-me também das que não o eram. Ao dizer-me: Crê em tudo, impediam-me de crer em alguma coisa, e eu já não sabia onde me deter.
Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei a sua diferentes opiniões; pareceram-me todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo pretendendo ser céticos, não ignorando nada, não provando nada, troçando uns dos outros; e este ponto comum a todos pareceu-me o único onde todos tinham razão. Triunfantes quando atacavam, não tinham qualquer vigor quando se defendiam. Se pensarmos nas razões, só as têm para destruir; se contarmos as vozes, cada um está reduzido à sua; só entram em acordo para se disputarem; escutá-los não era a forma de sair da minha incerteza.

Conclui que a insuficiência do espírito é a primeira causa desta prodigiosa diversidade de sentimentos, e que o orgulho é a segunda.(…)

Quando os filósofos estiverem em estado de descobrir a verdade, quantos terão interesse nela? Cada um sabe bem que o seu sistema não está melhor fundamentado que o dos outros; mas mantém-no porque é o seu sistema. Não há um único que chegando ao conhecimento do verdadeiro e do falso, não prefira a mentira que descobriu à verdade descoberta por um outro.  Onde está o filósofo que pela sua glória não enganaria voluntariamente o género humano? Onde está aquele que , no segredo do seu coração, tem outro objetivo senão distinguir-se? Desde que se eleve por cima da vulgaridade, desde que apague o efeito dos seus concorrentes, que quer mais? O essencial é pensar de modo diferente dos outros. Para o crente é ateu, para o ateu será crente.

Tradução de Helena Serrão
Jean-Jacques Rousseau, L’Émile ou de l’éducation, Flammarion,1966, Paris pág.347 e348