quarta-feira, novembro 16, 2011

Ações intencionais: básicas e não básicas

Ana Mendieta, 1948/1985 Cuba.

Uma ação intencional é aquela que uma pessoa pratica e pretende praticar -como quando desço para o andar de baixo ou digo algo que pretendo dizer. Uma ação básica é aquela que a pessoa faz directa e intencionalmente, sem levar a cabo nenhuma outra acão intencional. Ir de Oxford para Londres é uma ação não básica, porque a levo a cabo fazendo outras coisas -indo até à estação, entrando no comboio, etc. Mas apertar a minha mão ou mexer a minha perna ou mesmo dizer "isto" são ações básicas. Faço-as directamente, sem levar a cabo outro acto intencional. (Com certeza que certos acontecimentos têm de ocorrer no meu corpo - os meus sentidos têm de transmitir impulsos - para que eu consiga realizar uma ação básica. Mas estes não são acontecimentos que eu leve a cabo intencionalmente. Limitam-se a acontecer -posso nem sequer saber da sua existência. (...) Só posso produzir efeitos no mundo, fora do meu corpo, fazendo algo intencional com o meu corpo. Posso abrir a porta agarrando a maçaneta com a minha mão e puxando-a na minha direção ou posso fazer com que alguém saiba uma certa coisa usando a minha boca para o dizer. Quando produzo um certo efeito, intencionalmente (por exemplo abrir a porta) levando a cabo uma outra ação qualquer (puxar a porta na minha direção), levar a cabo a primeira é realizar uma ação não básica, ir a londres, escrever um livro, ou mesmo colocar um parafuso na parede são ações não básicas que desempenho, levando a cabo outras ações básicas. Quando realizo uma ação intencional qualquer, procuro com ela atingir um certo propósito - normalmente um propósito para além da mera realização da própria ação (como quando canto só por cantar).

Richard Swinbourne, Será que Deus existe? Gradiva, Lisboa, 1998, pp.12,13

sábado, novembro 12, 2011

Problemas Filosóficos: Liberdade e responsabilidade moral

Problemas Filosóficos: Liberdade e responsabilidade moral: Há pelo menos dois sentidos de "liberdade". Em um deles, "liberdade" refere-se ao montante de ações permitidas ou não-proibidas pelas leis d...

terça-feira, novembro 08, 2011

NÓS E OS OUTROS
O RELATIVISMO CULTURAL



A relatividade dos valores morais é um facto de que mesmo o mais distraído dos seres humanos se apercebe, a não ser que viva em comunidades muito homogéneas e muito isoladas. As viagens, o desejo de conquista, o maior acesso à informação, a globalização, tornaram evidente que as diferenças entre povos são muitas e, por vezes, profundas. Logo à partida, diferenças físicas, mas também, e sobretudo, nos costumes e valores, de tal modo que aquilo que é visto com repugnância ou escárnio por uns, pode ser louvado ou idolatrado por outros. Estas diferenças foram motivo de surpresa e espanto, de deslumbramento e entusiasmo, mas também, frequentemente, de incompreensões e conflitos.
De facto, é por vezes muito difícil absorver ou mesmo conviver com práticas que achamos repugnantes. Por exemplo, na Coreia come-se carne de cão, o que, para um ocidental, é repugnante e revoltante. Nós comemos carne de porco, o que para os muçulmanos e judeus, por exemplo, é uma coisa nojenta e, por isso, imoral. Há comunidades de seres humanos que comem cadáveres, tribos em que os jovens têm de se submeter a testes terríveis para se poderem tornar adultos, ideais estéticos que são sinónimo de grande sofrimento. Na China, por exemplo, a tradição dos ‘pés de lótus’ constrangia as pessoas a apertar os pés das suas filhas com ligaduras, deformando-os para que não crescessem e coubessem em sapatinhos muito pequenos, ficando com a aparência de uma flor de lótus. Esta prática sujeitava as raparigas a dores horríveis e a problemas ortopédicos graves.

– Claro que isso era doloroso – lembra Wang Yixian, uma senhora que foi vítima desta tradição – Mas se não ligássemos os pés, não arranjávamos marido.

A relatividade cultural coloca assim dificuldades práticas sérias de adaptação e convivência, sobretudo no plano dos valores morais. Como conviver com aqueles que são diferentes de nós e cujos costumes nós consideramos profundamente imorais? Ora, esta questão prática só pode ser resolvida seriamente se tivermos resposta aceitável para questões mais profundas de natureza filosófica: há ou não verdades morais? Se há verdades morais, qual a sua natureza e como se podem conhecer?
Sabemos que muita violência entre seres humanos resultou do facto de certos grupos se acharem detentores da “verdade”, o que aos seus olhos os autorizava, ou mesmo obrigava, a impô-los aos outros que tinham valores diferentes. Usemos a expressão 'absolutismo ético' para designar esta posição. É isto que está por vezes na base do etnocentrismo e do fanatismo e que leva as pessoas ao ponto de afirmar que há raças intrinsecamente superiores a outras e que é legítimo escravizar ou mesmo, em casos extremos, eliminar as supostas “raças inferiores”.
Outros afirmam que o que a diversidade humana e cultural mostra é que não há verdades absolutas, que a verdade é relativa (a cada contexto histórico-cultural), não havendo, por isso, povos ou grupos superiores a outros, melhores ou piores, mas apenas diferentes. Daí concluem que cada tradição tem de aceitar as tradições dos outros povos e respeitá-las e tolerá-las, mesmo que choquem profundamente a sua sensibilidade moral. Esta posição é por vezes designada relativismo ético cultural. Parece uma teoria simpática, não parece? O relativismo ético cultural é, de facto, como uma pessoa muito bonita – imediatamente atractivo. Porquê? Porque parece ser sinónimo de tolerância e de respeito pela diferença e pelos direitos das minorias (princípios que toda a gente bem formada subscreve). Por outro lado, as ciências humanas, em particular a antropologia, parecem também fazer soprar os ventos a favor desta posição, ao mostrar que muitas vezes a intolerância é função da ignorância e que o conhecimento e compreensão das outras culturas facilita uma atitude mais liberal de reconhecimento do direito à diferença. Por exemplo, ao mostrar-se que a prática do infanticídio entre os esquimós não resulta de qualquer torpeza moral e que é, antes, uma medida pragmática adoptada só em casos extremos a fim de se garantir a sobrevivência da família, ela deixa de parecer tão intolerável.
Seja como for, não é a antropologia ou outra ciência humana que pode determinar se o relativismo ético cultural é uma teoria aceitável. Temos de proceder a uma análise filosófica. 
Voltemos, por isso, ao argumento em que se apoia o relativismo cultural:

Como todos os juízos morais são relativos, variam de cultura para cultura, de sociedade para sociedade, nenhuma cultura ou sociedade tem o direito de impor a sua moralidade às outras.

Mas quando se diz que os juízos morais são relativos surge logo uma primeira dificuldade: são relativos a quê? A uma “cultura”? Mas o que é uma cultura? A uma “sociedade”? Mas o que significa exactamente este termo? Não há várias ‘culturas’ em cada ‘cultura’, várias ‘sociedades’ em cada ‘sociedade’?
Suponhamos, no entanto, que conseguimos contornar a imprecisão destes conceitos e resolver esta dificuldade. Podíamos, mesmo assim, ser confrontados com a seguinte objecção: tu, que és um relativista moral, defendes que nenhuma sociedade pode impor os seus valores a outra (chamemos a este o princípio da não interferência) pelo facto de não haver padrões éticos universais. Ora, esta ideia é auto-contraditória em qualquer das interpretações que lhe possamos dar. Se for tomada como uma verdade universal autocontradiz-se porque para um relativista não há, por definição, verdades universais; e se for interpretada apenas como uma verdade relativa, obriga-nos a admitir que há culturas que podem estar-se nas tintas para o princípio da não interferência, e, portanto, que, afinal de contas, uma cultura pode tentar legitimamente impor os seus valores a outras.
Outra crítica que se pode fazer ao relativismo moral cultural é a seguinte: os relativistas culturais apelam frequentemente para o valor das tradições. Quando os defensores dos animais dizem que as touradas são moralmente condenáveis por serem um divertimento que se faz à custa da tortura de animais, muitos relativistas limitam-se a responder que as touradas são uma tradição antiga e que é preciso respeitar as tradições. É esse o sentido desta declaração que encontrei num comentário a um artigo aparecido num blogue sobre os “pés de lótus”: “penso ser uma questão cultural de um país e de uma época que tinham os seus significados lá no oriente e eu aqui no ocidente não me atrevo a emitir um parecer contrário.” Ora, este argumento é manifestamente fraco, pois implicaria que temos de aceitar qualquer tradição, por mais horrível que seja. A escravatura, a sujeição das mulheres, eram (são) também tradições antigas. Devemos mantê-las? Por outro lado, há muito exemplos de crenças tradicionais manifestamente erradas e que abandonámos por isso mesmo. Há uma tradição hindu que diz que o nosso planeta, a terra, se aguenta no vazio porque se apoia sobre as costas de um grande elefante. Sabemos que isto é falso. Devemos, para respeitar a tradição, coibirmo-nos de proclamar a sua falsidade?
Uma outra crítica na mesma linha, porventura mais devastadora, resulta do facto de o relativismo poder conduzir ao cepticismo moral e ao “vale tudo”. Uma das ideias que atrai muita gente para o relativismo cultural é a de que não há culturas moralmente superiores a outras. Esta tese tem um ar simpático, pois, como foi dito, parece promover a tolerância e o respeito pela identidade das outras culturas. Mas se repararmos melhor, ela introduz uma espécie de igualitarismo moral que nos leva a aceitar precisamente aquilo que os relativistas liberais querem evitar. É que se todas as sociedades são equivalentes quanto ao valor dos princípios morais que promovem, todas valem moralmente o mesmo, quer defendam a tolerância e o respeito pelo indivíduo, quer defendam o fanatismo e a violência. Uma sociedade democrática baseada nos direitos humanos vale o mesmo que uma sociedade que aceita a escravatura ou que proíbe as mulheres de direitos básicos como os de votar ou de tirar a carta de condução. O relativismo, tal como o subjectivismo, leva-nos a não acreditar em nenhuns valores em especial (cepticismo), a retirar qualquer valor intrínseco a qualquer valor, e, por isso, a achar que tudo é aceitável e permissível (mesmo o que é obviamente intolerável).
Na análise filosófica temos de ir para lá das boas intenções, das declarações pomposas da ideologia cega e da preguiça intelectual (estes dois últimos aspectos costumam comportar-se como um casal inseparável). Lembro-me de ouvir a muitas pessoas, normalmente à esquerda do espectro político (muitas delas sinceramente preocupadas com o direito dos povos e com o “imperialismo americano”), que querer impor os valores das democracias ocidentais aos iraquianos ou aos afegãos era, além de imoral, um erro crasso, pois as formas de vida nessas paragens são ainda em grande medida tribais, etc., o que impede essas pessoas de seguir ou compreender os nossos valores. "Deixemo-los em paz com os seus valores", era o mote! Ora, é interessante comparar esta posição com as palavras do estadista inglês Theophilus Shepstone, o responsável pela anexação em 1877 da província sul-africana do Transvaal no império colonial inglês:


Embora a humanidade, e especialmente os mandamentos da nossa religião nos compilam a reconhecer no nativo a capacidade de ser elevado à perfeita igualdade social e política com o homem branco, isso é tão falso quanto é insensato dizer que o nativo está actualmente nesta condição, ou que ele, no seu presente estado, seja capaz de desfrutar, ou mesmo compreender, os direitos civis e políticos do homem branco.


Irónico, não é? Se não formos cuidadosos nas nossas análises pode bem acontecer que quando dermos por nós estamos a dizer o mesmo que aqueles que queremos condenar.
Carlos Marques