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domingo, fevereiro 05, 2023

Há 62 anos era assim... hoje...continua

 


“Tive de acabar por deixar as estradas escondidas entre as árvores e fazer o meu melhor para atravessar as cidades, como Hartford e Providence, que são grandes cidades, afadigando-se nas fábricas, enxameando de trânsito. Leva muito mais tempo a atravessar as cidades do que a percorrer várias centenas de milhas. E no intrincado esquema de trânsito, enquanto tentamos encontrar o caminho através delas, não há possibilidade de vermos nada. Mas agora que atravessei centenas de cidadezinhas e de grandes cidades com todos os climas e em toda a espécie de cenários, claro que são todas diferentes e que as pessoas têm pontos de diferença, mas em alguma coisa são todas iguais. As cidades americanas são como buracos de texugo, rodeadas, todas elas, de retalho, cercadas por pilhas de automóveis a enferrujar, e quase asfixiadas em refugo. Tudo quanto usamos vem em caixas, caixinhas e caixotes, as chamadas embalagens de que tanto gostamos. Os montes de coisas que deitamos fora são muito maiores do que as coisas que usamos. Nisto, se não por outro meio, podemos ver a exuberância desenfreada e perdulária da nossa produção, e o desperdício parece ser o seu índice. Seguindo o meu caminho, pensava como em França e na Itália cada uma destas coisas deitada fora seria guardada e aproveitada para alguma coisa. Isto não é dito como crítica de um sistema ou do outro, mas pergunto a mim mesmo se não virá um tempo em que já não possamos permitir-nos o nosso desperdício – desperdícios químicos nos rios, desperdícios de metais por toda a parte, e desperdícios atómicos profundamente sepultados na terra ou afundados no mar. Quando uma aldeia índia ficava demasiado enterrada na sua própria imundice, os habitantes mudavam de lugar. Mas nós não temos lugar para onde mudar.

John Steinbeck, Viagens com o Charlie, livros do Brasil, Lx


 

quinta-feira, fevereiro 11, 2021

O que são os valores?


 






Quadro Joaquim Sorolla  dizer título e ano ... apreciação...

O que são os valores? Dizemos que os valores não existem por si mesmos: necessitam de um depositário sobre o qual descansam. Aparecem-nos, portanto como meras qualidades desses depositários: beleza de um quadro, elegância de um vestido, utilidade de uma ferramenta. Se observarmos o vestido, o quadro ou a ferramenta, veremos que a qualidade valorativa é distinta das outras qualidades.

Nos objetos mencionados há algumas qualidades que parecem essenciais para a própria existência dos objetos, por exemplo, a extensão. Mas o valor não confere nem agrega ser, pois a pedra existia plenamente antes de ser talhada, antes de se transformar num bem.

Enquanto as qualidades primárias não se podem eliminar dos objetos, bastam uns golpes de martelo para terminar com a utilidade de um instrumento ou a beleza de uma estátua. Antes de incorporar-se no respetivo portador ou depositário, os valores são meras "possibilidades", isto é, não têm existência real mas virtual.
Ver-se-á melhor a diferença se se comparar a beleza, que é um valor, com a ideia de beleza, que é um objeto ideal. Captamos a beleza primordialmente por via emocional, enquanto a ideia de beleza aprende-se por via intelectual.
Com o fim de distinguir os valores dos objetos ideais, afirma-se que estes são, enquanto os valores não são mas valem.
Uma característica fundamental dos valores é a polaridade. Enquanto as coisas são o que são, os valores apresentam-se desdobrados num valor positivo e o correspondente valor negativo. Assim, a beleza opõe-se à fealdade, o mal ao bem. A polaridade implica a rutura com a indiferença. Não há obra de arte que seja neutra, nem pessoa que se mantenha indiferente a escutar uma sinfonia, ler um poema ou ver um quadro.
Aliás os valores estão ordenados hierarquicamente, isto é, há valores inferiores e superiores. É mais fácil afirmar a existência de uma ordem hierárquica do que indicar qual é essa ordem e quais são os critérios para a estabelecer.
Muitos são os axiólogos que têm enunciado uma tábua de valores, pretendendo que essa seja a "TÁBUA", mas a crítica mostra rapidamente os erros de tais tábuas e dos critérios usados na sua elaboração.
O homem individualmente, bem como as comunidades e os grupos culturais concretos, manejam sempre uma tábua de valores. É certo que tais tábuas não são fixas, mas flutuantes, e nem sempre coerentes; porém é indubitável que o nosso comportamento frente ao próximo, aos seus actos, às suas criações estéticas (...) é julgá-los e preferi-los de acordo com uma tábua de valores. Submeter essas tábuas de valores, que obscuramente influem na nossa conduta e nas nossas preferências, a um exame crítico, é a tarefa a que o homem moderno não pode renunciar.

Frondizi, Qué son los valores? (México, Fondo de Cultura Económica).

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Serão os valores morais universais?


Todos sabemos que há muitas maneiras de entender o que são direitos e vemos que variam de país para país e de cultura para cultura. Assim, propor direitos "humanos", "universais" ou "morais" não é fácil. No entanto, foi o que a Assembleia-Geral da ONU propôs em 1948: estabelecer direitos aceitáveis e obrigatórios em todos os países, qualquer que seja a sua história, orientação religiosa e filosófica e quaisquer que sejam as circunstâncias políticas e económicas. Uma vez que pretendem ser independentes das tradições e das práticas culturais particulares, estão, por isso, acima do que cada país possa estabelecer sobre eles. É nesse sentido que se dizem universais e inalienáveis. Isto quer dizer que nenhum ser humano pode ser "expropriado" destes direitos porque, se assim fosse, ficaria privado do que a Assembleia da ONU definiu : todos os seres humanos possuem igualmente dignidade.


David Stewart e Gene Blocker, Fundamentals of Philosophy, (adaptado)

Foto 1948, Cartier-Bresson

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Historicidade dos valores.

As normas morais mudam de sociedade para sociedade, e modificam-se no decorrer da história. O antigo guerreiro considerava altamente moral fazer uma incursão em território inimigo e trazer de lá a cabeça dos adversários mortos. Os Romanos consideravam digno e meritório pôr a ferros os chefes dos exércitos derrotados, arrastá-los atrás do carro dos vencedores, e depois destruí-los. A nós, isso parece-nos um acto inútil, cruel e mesquinho. Os inquisidores torturavam as feiticeiras e depois queimavam-nas numa fogueira, convencidos de proceder em nome de Deus. Nós ficamos horrorizados.
A variedade dos costumes, as suas transformações no tempo demonstraram-nos que não existe um direito natural. A natureza não prescreve nada. A natureza não conhece a lei da sobrevivência do mais hábil. Só sobrevive quem conseguiu fugir às inúmeras insídias do ambiente, às infinitas armadilhas que lhes são estendidas pelos outros seres vivos. Quem conseguiu comer sem ser comido, quem conseguiu expulsar do seu nicho ecológico o concorrente mais perigoso ou conviver astutamente com ele. Quem conseguiu vencer os seus adversários na competição sexual, procriar, difundir o seu património genético.
Tudo é competição. Pelo território, pela comida, pelo sexo. E a competição desenvolve-se não só entre indivíduos, mas também entre sociedades organizadas como no caso dos insectos.
Ou então entre órgãos, mesmo a nível celular, entre espermatozóides. Esta competição não se desenvolve na base de princípios cavalheirescos ou seguindo regulamentos imutáveis. Cada nova espécie viola as regras anteriores, dá-lhe voltas, dá à competição novas formas. Os estratagemas para se conseguir a sobrevivência assumem todas as formas possíveis, e parecem-nos bizarros, geniais ou monstruosos.
Também nós, apesar da nossa cultura e da nossa moral, damo-nos conta de que estamos envolvidos nestas forças primordiais, na guerra e na fome. Quando a fome destrói os nossos sentimentos morais, transformando-nos em feras empenhadas numa luta sem quartel pela sobrevivência. [...].
A teoria do gene egoísta, elaborada pelos sociobiólogos, diz que os indivíduos não agem para maximizar a própria utilidade pessoal, mas para difundir os seus próprios genes. São os genes que utilizam os indivíduos para sobreviverem e se reproduzirem. Mas os genes são moléculas e não têm uma moralidade do tipo humano. Os homens julgam seguir os seus próprios princípios morais, quando na realidade obedecem apenas às exigências dos próprios genes.
A solidariedade social, segundo esta teoria, pode ser considerada um meio para aumentar a difusão dos genes. Se um homem se sacrifica para defender os seus consanguíneos, o pai, a mãe, o irmão, a irmã, os filhos, renuncia a procriar mas, em compensação, favorece uma bem maior proliferação dos genes semelhantes aos seus. Do ponto de vista do gene, o balanço é positivo.
A lealdade para com o grupo e o amor da pátria são, porém, todos explicáveis como consequência da selecção genética. Na competição pela existência, a ajuda recíproca favorece a sobrevivência das origens mais sociáveis. Contudo, nos momentos de grande escassez e de conflito violento, uma excessiva solidariedade e um excessivo altruísmo tornam-se perigosos. Nos campos de concentração não sobreviveram os mais generosos e os mais altruístas mas, frequentemente, os mais violentos ou aqueles que colaboravam com o inimigo.
Nós somos filhos de quem se demonstrou capaz de sobreviver. Quem se comportou de uma ou de outra forma. Quem se comportou de outra forma não pode falar. Os seus descendentes não chegaram a nascer. E ressurge assim a pergunta que, de tantas formas perturbou o Ocidente cristão. Os pobres de espírito, os mansos, os bons, os puros de coração, aqueles que não defendem com unhas e dentes o seu território e a sua prole, combatendo contra o inimigo, que não o aniquilam quando é perigoso, que não disseminam os próprios genes a todo o custo, esses estão em desvantagem na luta pela vida e não deixarão descendentes.
Apenas sobrevivem os filhos de Caim. Disse-o a sabedoria bíblica, Abel está morto. Apenas ficou Caim e nós somos a sua primogenitura. Também na evolução, todos aqueles que eram como Abel morreram. Com Abel a vida não se teria desenvolvido. Como se poderá continuar a repetir que Abel era bom e que Caim era mau? Uma moral que parte dos interesses e das necessidades, que quer favorecer a vida, encontra-se em sérias dificuldades para considerar boa a renúncia, a mansidão, o puro amor incondicionado.

Francesco Alberoni, Valores, Círculo de Leitores, 2001, trad. do italiano por Maria Carlota Álvares da Guerra, pp. 5-8.
Fotografia: Abutre e menina de Kevin Carter

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Os valores dependem dos gostos

Vivienne Westood, Foto de desfile


" As questões sobre os valores - isto é, sobre o que é bom ou mau em si, independentemente dos seus efeitos estão fora do domínio da ciência, como os defensores da religião afirmam veementemente. Eu penso que nisto têm razão, mas retiro outra conclusão que eles não retiram - a de que as questões sobre "valores" estão completamente fora do domínio do conhecimento. Por outras palavras, quando afirmamos que isto ou aquilo tem "valor", estamos a exprimir as nossas emoções, e não a indicar algo que seria verdadeiro mesmo que os nossos sentimentos pessoais fossem diferentes. (...)


Qualquer tentativa de persuadir as pessoas de que algo é bom (ou mau) em si, e não apenas por causa dos seus efeitos, depende não de qualquer recurso a provas, mas da arte de suscitar sentimentos. O talento do pregador consiste em criar nos outros emoções semelhantes às suas - ou diferentes, se ele for hipócrita. Ao dizer isto não estou a criticar o pregador, mas a analisar o carácter essencial da sua actividade.


Quando um homem diz "Isto é bom em si" parece estar a exprimir uma proposição como se tivesse dito "Isto é um quadrado" ou "Isto é doce". Julgo que isto é um erro. Penso que aquilo que o homem quer realmente dizer é "Quero que toda a gente deseje isto", ou melhor, "Quem me dera que toda a gente desejasse isto". Se aquilo que ele diz for interpretado como uma proposição, esta é apenas sobre o seu desejo pessoal. Se for antes interpretado num sentido geral, nada afirma, exprimindo apenas um desejo. O desejo, enquanto acontecimento, é pessoal, mas o que se deseja é universal. Penso que foi este curioso entrelaçamento entre o particular e o universal que provocou tanta confusão na Ética. (...)


Se esta análise está correcta, a ética não contém quaisquer proposições, sejam elas verdadeiras ou falsas, consistindo em desejos gerais de uma certa espécie, nomeadamente naqueles que dizem respeito aos desejos da humanidade em geral - e dos deuses, dos anjos e dos demónios, se eles existirem. A ciência pode discutir as causas dos desejos e os meios para os realizar, mas não contém quaisquer frases genuinamente éticas, pois esta diz respeito ao que é verdadeiro ou falso.


A teoria que estou a defender é uma forma daquela que é conhecida por doutrina da "subjectividade" dos valores. Esta doutrina consiste em sustentar que, se dois homens discordam quanto a valores, há uma diferença de gosto, mas não um desacordo quanto a qualquer género de verdade. Quando um homem diz "As ostras são boas" e outro diz "Eu acho que são más" , reconhecemos que nada há para discutir. A teoria em questão sustenta que todas as divergências de valores são deste género, embora pensemos naturalmente que não o são quando estamos a lidar com questões que nos parecem mais importantes que as das ostras. A razão principal para adoptar esta perspectiva é a completa impossibilidade de encontrar quaisquer argumentos que provem que isto ou aquilo tem valor intrínseco. Se estivéssemos de acordo a este respeito, poderíamos defender que conhecemos os valores por intuição. Não podemos provar a um daltónico que a relva é verde e não vermelha, mas há várias maneiras de lhe provar que ele não tem um poder de discriminação que a maior parte dos homens tem. No entanto, no caso dos valores não há qualquer maneira de fazer isso, e aí os desacordos são muito mais frequentes que no caso das cores. Como não se pode sequer imaginar uma maneira de resolver uma divergência a respeito de valores, temos de chegar à conclusão de que a divergência é apenas de gostos e não se dá ao nível de qualquer verdade objectiva.

Bertrand Russell, Ciência e Ética, 1935. Tradução de Paula Mateus