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terça-feira, maio 10, 2022

Textos sobre o fideísmo


 
Imagem: Pintura de Paolo Veronese (1528–1588),Sacrifício de Isaac


 Tenho de confessar sinceramente que jamais encontrei, no curso das minhas observações, um só exemplar autêntico do cavaleiro da fé, sem com isto negar que talvez um homem em cada dois o seja. Em vão, no entanto, durante vários anos procurei sinal dos seus passos. É comum dar-se a volta ao mundo para ver rios e montanhas, novas estrelas, aves multicoloridas, estranhos peixes ou ridículas raças humanas. Abandona-se cada um a vago estupor animal, arregalando os olhos do mundo, crendo assim ver alguma coisa. Tudo isso me deixa indiferente. Mas, se acaso soubesse onde mora um cavaleiro da fé, iria, com meus próprios pés, ao encontro desse prodígio que representa para mim um interesse absoluto. Não o abandonaria um instante sequer; em cada minuto que passasse observaria os seus mais secretos movimentos e, considerando-me para sempre enriquecido, dividiria o meu tempo em duas partes: uma para observá-lo miudamente e outra para me exercitar de tal modo que, afinal só me empenharia em admirá-lo. Repito: nunca encontrei tal homem; contudo é-me bem possível representá-lo, Ei-lo; está travado o conhecimento; fui-lhe apresentado. No próprio instante em que o fito afasto-o de mim, retrocedo instantaneamente, junto as mãos em prece e digo a meia voz: "Meu Deus! É este o homem! Mas sê-lo-á verdadeiramente? Tem todo o ar dum preceptor!" Contudo é ele. Aproximo-me um pouco, vigio os mínimos movimentos tentando surpreender qualquer coisa de natureza diferente, um pequeno sinal telegráfico emanado do infinito, um olhar, uma expressão fisionómica, um gesto, um ar melancólico, um ligeiro sorriso que traísse o infinito na sua irredutibilidade finita. Mas nada! Examino-o com minúcia da cabeça aos pés, procurando a fissura por onde se escape a luz do infinito. Nada! É um sólido bloco. A sua conduta? Firme, integramente dada ao finito. O burguês endomingado que dá o seu passeio rotineiro a Fresberg não o pode ser mais; nem o merceeiro é capaz de ser tão inteiramente deste mundo como ele! Nada denuncia essa natureza soberba e estranha onde se reconheceria um cavaleiro do infinito. Regozija-se por tudo e por tudo se interessa. De cada vez que intervém em alguma coisa, fá-lo com a perseverança característica do homem terrestre cujo espírito se ocupa de minúcias e seus cuidados. Ele está realmente naquilo que faz. Ao vê-lo, crê-se estar em face de um escriba que haja perdido a alma na contabilidade de partidas dobradas à força de ser meticuloso. Respeita os domingos. Vai à Igreja. Nem um olhar com sinal celeste, nem um só vestígio de incomensurabilidade o trai.

A resignação infinita implica a paz e o repouso, aquele que a deseja, aquele que não se aviltou rindo-se de si próprio (vício mais terrível que o excesso de orgulho), pode fazer a aprendizagem deste movimento doloroso, sem dúvida, mas que leva à reconciliação com a vida. A resignação infinita é parecida com a camisa do velho conto: o fio é tecido com lágrimas e lavado com lágrimas, a camisa é também cosida com lágrimas, mas, ao cabo, protege melhor que ferro e aço. O defeito da lenda é que um terceiro pode tecer o pano. Ora, consiste o segredo da vida em que cada um deve coser a sua própria camisa e, coisa curiosa, o homem pode fazê-lo tão perfeitamente como uma mulher. A resignação infinita implica o repouso, a paz e a consolação no seio da dor, sempre com a condição de que o movimento seja efetuado normalmente. Eu não teria, contudo, muito trabalho se quisesse escrever um grosso volume onde passasse revista aos desprezos de toda espécie, às situações completamente alteradas, aos movimentos abortados que me foi dado observar no decurso da minha modesta experiência. Acredita-se muito pouco no espírito e, no entanto, ele é indispensável para realizar este movimento, que interessa não ser unicamente o resultado de uma dura necessitas que, quanto mais vai agindo tanto mais duvidoso torna o seu caráter normal.

Kierkegaard, Temor e Tremor, Ed, Vitor Civita, São Paulo, 1979
Tradução Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro


A questão da religião e dos seus ensinamentos, tal como a coloca Kierkegaard, é incompatível com a tranquilidade ou a segurança da vivência oficial e pública da religião. O que é válido para a religião é também válido para a filosofia, sendo que, para ambas, o problema essencial devia ser o homem enquanto indivíduo vivente e existente no seu conflito existencial irresolúvel, a finitude por um lado e a esperança do infinito, por outro. A busca do sentido é precisamente a tentativa de resolver o conflito que não é resolúvel em termos intelectuais, pelo contrário intelectualmente não há uma síntese, intelectualmente só há antítese. Trata-se de acreditar sem que intelectualmente haja provas ou evidências sensíveis. Acreditar como um salto no desconhecido, essa a função da fé e esse o exemplo do "cavaleiro da fé". A questão central da filosofia deveria ser o sentido da vida e, desse modo, a resposta só poderia ser; desculpem mas a vida não tem qualquer sentido, é um absurdo de decisões incertas das quais nos arrependemos certamente e que só acaba com a morte; há uma saída mas também ela parece gozar connosco. Kierkegaard advoga que o salto na transcendência, o salto da fé,  contra todas as evidências, significa, antes de mais, uma possibilidade de sentido, mas um paradoxo para o pensamento. Pois o sentido revelar-se-ia a quem desistiu de o procurar, a quem abandonou a esperança de o obter.É esse "salto" que parece paradoxal, e é, um paradoxo para o pensamento.

Helena Serrão

segunda-feira, junho 08, 2020

A Fé sendo o oposto da razão é a mais alta das virtudes humanas - Kierkegaard



Sacrifício de Isaac, Caravaggio, (1590-1610)


E é assim de facto. Acaso o espírito da mesquinha burguesia que observo na vida e que não julgo pelas minhas palavras, mas pelos meus atos, não será realmente o que parece? E será ela o verdadeiro prodígio? Podemos admiti-lo, porque o nosso herói da fé oferecia uma flagrante semelhança com esse espírito; não se tratava de um humorista nem de um ironista, mas de alguma coisa de muito diferente. Em nossos dias fala-se demasiado de ironia e de humor, sobretudo aquelas pessoas que não conseguiram nunca fazer nada, mas que, apesar disso sabem explicar tudo. Pessoalmente não desconheço essas duas paixões, sei um pouco mais acerca delas do que se diz nas coleções alemãs e germano-dinamarquesas. Sei, por consequência, que são essencialmente diferentes da paixão da fé. A ironia e o humor refletem-se sobre si próprios e pertencem, por isso, à esfera da resignação infinita; encontram seus motivos no fato de o indivíduo ser incomensurável com a realidade.
Apesar do mais vivo desejo, não posso efetuar o último, o paradoxal movimento da fé, quer ele seja dever ou outra coisa. Tem alguém o direito de afirmar que pode fazê-lo? Cabe-lhe a ele decidir; é um assunto entre ele e o ser eterno, objeto da fé, saber se pode, a esse respeito, acomodar-se. O que está ao alcance de qualquer homem é o movimento da resignação infinita e, pela minha parte, não hesitaria em acusar de covardia quem quer que se julgasse incapaz de o realizar. Porém, em relação à fé, já é outra questão. Não é permitido a ninguém fazer acreditar aos outros que a fé tem pouca importância ou é coisa fácil, quando é, pelo contrário, a maior e a mais penosa de todas as coisas.
A história de Abraão é interpretada de outra maneira. Celebra-se a graça de Deus que outorgou Isaac pela segunda vez; em toda a história não se vê senão uma prova. Uma prova: é dizer muito e pouco: e, no entanto, passou-se em menos tempo do que leva a contá-lo. Cavalga-se no Pégaso e, num abrir e fechar de olhos, está-se em Morija, avista-se o cordeiro; esquece-se de que Abraão fez a caminhada ao passo lento do seu burro, que levou três dias de viagem e que lhe foi necessário um pouco de tempo para acender o fogo, ligar Isaac e afiar a faca.
No entanto, faz-se o elogio de Abraão. O pregador pode dormir sossegado até o último quarto de hora que antecede o seu discurso, e o auditório pode adormecer escutando-o, porque, de um lado e de outro, tudo se passa sem dificuldades nem inconvenientes. Mas, se há na assembleia um homem atingido de insónia, talvez regresse a casa e, sentando-se no seu canto, pense: Tudo isso se resume num momento; espera apenas um minuto, verás o cordeiro e a prova terá terminado. Se o orador o surpreende nesta disposição, imagino que vai avançar para ele, muito digno, para invectivá-lo: Miserável! Como podes abandonar a tua alma a tal loucura! Não há milagre algum e toda a vida é uma prova!, e à medida que vai falando, inflama-se, sente-se cada vez mais contente consigo mesmo; e de tal maneira que, se durante o sermão sobre Abraão não se congestionara, sente agora incharem-lhe as veias da testa. E talvez acabe mesmo por perder o fôlego e a palavra, se o pecador lhe responder com tranquila dignidade: Olha que eu queria pôr em prática o teu sermão de domingo passado.
Ou nos é necessário eliminar de uma vez a história de Abraão, ou então temos que compreender o espantoso e inaudito paradoxo que dá sentido à sua vida, para que possamos entender que o nosso tempo pode ser feliz como qualquer outro, se possuir a fé. Se Abraão não é um zero, um fantasma, um personagem de opereta, o pecador nunca será culpado de tentar imitá-lo; mas convém reconhecer a grandeza da sua conduta para ajuizar se tem a vocação e a coragem de afrontar uma prova semelhante. A única contradição do pregador consiste em que faz de Abraão um personagem insignificante, ao mesmo tempo em que exorta a tomá-lo como exemplo.
Urge então abster-nos de pregar acerca de Abraão. Creio, no entanto, que não. Se porventura tivesse que falar sobre ele, pintaria antes de mais a dor da prova. Para terminar, sorveria como sanguessuga toda a angústia, toda a miséria e todo o martírio do sofrimento paternal para apresentar o de Abraão, fazendo notar que, no meio das suas aflições, ele continuava a crer. Recordaria que a viagem durou três dias e ainda uma boa parte do seguinte; e mesmo esses três dias e meio duraram infinitamente mais tempo que os milhares de anos que me separam do patriarca. Chegado a esse ponto, lembraria que, segundo a minha opinião, todos podem dar meia volta antes de subir a Morija, que todos podem a cada momento arrepender-se da decisão e voltar para trás. Agindo desta maneira, não corro nenhum perigo nem receio, sequer, de despertar em alguns o desejo de sofrerem a prova tal como Abraão. Mas, se alguém quer introduzir uma edição popular de Abraão convidando todos a imitá-lo, cai no ridículo.
É agora meu propósito extrair da sua história, sob forma problemática, a dialética que comporta para ver que inaudito paradoxo é a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um ato santo e agradável a Deus, paradoxo que devolve a Abraão o seu filho, paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão.

 Tradução de Maria José Marinho

Soren Kierkegaard, Temor e tremor,, Guimarães Editores, Lx, 1959, p.91 a 95.

quinta-feira, maio 29, 2014

O Sentido de existir.




A filosofia da existência não se opõe ao pensamento, contanto que este pensamento seja intenso e apaixonado. Recordemos que Kierkegaard definiu a existência, na medida em que pode ser definida, como uma energia de pensamento. Podemos mesmo dizer que o pensamento existencial é reflexão; não é verdade que a reflexão sufoque a originalidade: pode aguçá-la; e Kierkegaard quererá unir a reflexão ao caráter autêntico, originário do pensamento naquilo a que ele chama um sério imediato, uma juventude séria, uma primitividade adquirida, uma imediação amadurecida. Sem dúvida, em certos momentos, ele diz, para se opor aos cartesianos: «Quanto mais penso, menos sou, e quanto mais sou, menos penso»; e não é menos verdade que só há real existência se houver a reflexão da existência. Há aqui dois termos anti-téticos; há uma luta de morte entre o pensamento e a existência; mas esta luta de morte constitui precisamente a existência. Kierkegaard diz: «Se eu penso a existência, eu abulo-a. Mas aquele que a pensa existe. A existência encontra-se posta ao mesmo tempo que o pensamento.» Não podemos conceber a existência, nem eliminá-la, nem eliminar o seu pensamento. Reside aí o paradoxo e, simultaneamente, a essência do pensamento existencial.

Uma vez que chegamos aí, que devemos fazer? Poderemos voltar às coisas «deste mundo» ? Foi o que Kierkegaard pensou e o que quis efectuar pela ideia de repetição. Trata-se de reencontrar «este mundo» depois de ter estado em contacto com o paradoxo, com o absurdo, com Deus.

Devemos escolher e devemo-nos escolher, escolhermo-nos tal qual somos, devemos assumir o próprio destino. é o que ele chama imediação amadurecida, que só pode existir quando se passou pela mediação divina. Devemo-nos escolher, mas simplificando-nos constantemente, pela própria paixão, pela paixão do próprio absoluto.

Trata-se sempre de se unificar, de se simplificar, porque o simples é mais elevado que o complexo. As crianças têm uma multidão de ideias, mas aquele que medita realmente, um Sócrates, por exemplo, só tem uma ideia. Aumentar os nossos conhecimentos, diz Kierkegaard, reencontrando uma fórmula neoplatónica, é muitas vezes diminuirmo-nos nós próprios.

Devemos entretanto acrescentar que, ao mesmo tempo, Kierkegaard sabe muito bem que ele próprio é feito de dualidades, de diversidades, de diversidades infinitas. Há assim em Kierkegaard um conflito entre esta vontade de unidade e esta multiplicidade quase infinita que ele sente em si.

A existência é a palpitação de uma vida intensa, o agudo extremo da subjectividade.

O pensador subjectivo torna-se um espírito existente infinito, torna-se um mistério por esta relação profunda em relação a si próprio e ao objecto da sua afirmação. (...)A existência é «ir sendo», a existência está sempre voltada para os possíveis e ao mesmo tempo para o que é a sua origem, para o que é originário. (...) O existente é o que se relaciona com si próprio e o que se relaciona com a transcendência.

Jean Wahl, As Filosofias da Existência, 

domingo, março 24, 2013

ou, ou


 
James Nachtwey
 
Que sejam os outros a queixarem-se de que os tempos são maus, queixo-me de que são miseráveis, porque são tempos sem paixão. Os pensamentos dos homens são finos e quebradiços como rendas, eles próprios tão dignos de dó quanto as rendeiras. Os pensamentos que lhes vão no coração são tão miseráveis, que não chegam a ser pecaminosos. Talvez fosse possível para um verme considerar como pecado alimentar tais pensamentos, mas não para um homem, que é criado à imagem de Deus. Os seus desejos voluptuosos são comedidos e indolentes, as suas paixões, sonolentas; estas almas mercantis cumprem os seus deveres, porém, tal como os judeus, dão-se todavia o direito de desbastar uma migalhinha da moeda; em sua opinião, embora Nosso Senhor mantenha as contas bastante em ordem, também é certamente possível escapar aldrabando-o um pouco. Desavergonhados! Por isso a minha alma regressa sempre ao Antigo Testamento e a Shakespeare. Sente-se deveras que são homens que falam; e que aí, odeia-se, e aí, ama-se, mata-se o inimigo, amaldiçoa-se a descendência por todas as gerações, aí, peca-se.

 

Soren Kierkegaard, Ou-Ou. Um Fragmento de vida


Tradução do Dinamarquês de Elisabete M. de Sousa

 Relógio D’Água, 2013 Pág.57

 
Não percebo dinamarquês de modo a confrontar este texto traduzido, com o original, se assim fosse poderia esclarecer as dúvidas sobre certas expressões cujo sentido é enigmático.  As outras traduções não são fidedignas, ou melhor, enfermam do mesmo problema, não há como ter uma referência se não se conhece o original.  Por exemplo, a expressão: "desbastar uma migalhinha da moeda" quererá significar que gastam pouco mas mesmo assim gastam; gastam mais do que têm direito apesar de parecer que não? Mais à frente : " embora Nosso Senhor mantenha as contas em ordem, é certamente possível escapar aldrabando-o um pouco". Aldraba-se? Como? Resta saber se é o autor que utiliza estas expressões metafóricas, se são expressões idiomáticas, seja como for, o significado é vago, fica-se com uma impressão de incompletude, uma irritação enfim!!
 
Helena Serrão

sexta-feira, maio 29, 2009

Kierkegaard: o problema não está no conhecimento mas na vontade.

Na filosofia das ideias puras, que não considera o indivíduo real, a passagem é de absoluta necessidade (como aliás no hegelianismo, no qual tudo se realiza com necessidade), a passagem de compreender a agir não tropeça em nenhum embaraço. (...) é igualmente esse, no fundo, todo o segredo da filosofia moderna, toda ela contida no cogito ergo sum, na identidade do pensamento e do ser; (ao passo que o cristão, esse pensa: " Que vos seja dado segundo a vossa fé." ou "tal fé tal homem, ou: crer é ser." A filosofia moderna não é, como se vê, senão paganismo. (...) no mundo real em que se trata do indivíduo existente, não se evita essa minúscula passagem do compreender ao agir (...) A vida do espírito não tem paragens (nem tão pouco, afinal, estado: tudo é actual); portanto, se um homem, no próprio segundo em que reconheça o justo não o pratica, eis o que se produz: em primeiro lugar o conhecimento estanca. (...) A vontade é um agente dialéctico, que por sua vez determina toda a natureza interior do homem. Se ela não aceita o produto do conhecimento, nem por isso se põe a fazer o contrário daquilo que o conhecimento apreendeu, tais conflitos são raros; mas deixa passar algum tempo, abre-se um ínterim, e ela diz: ver-se-á até amanhã. Entretanto o conhecimento obscurece-se cada vez mais, as partes inferiores da nossa natureza tomam uma supremacia cada vez maior; ai de nós! porque é preciso fazer o bem imediatamente mal se reconheça (é é por isso que na especulação pura é tão fácil a passagem do pensamento ao ser, porque aí tudo é dado antecipadamente), ao passo que para os nossos instintos inferiores a tendência é para demorar, demoras que a vontade nem por isso detesta e ante as quais semicerra os ollhos. E, quando se obscurece suficientemente, o conhecimento põe-se no mais completo acordo com a vontade; por fim é o acordo perfeito, porque aquele passou para o campo contrário e ratifica tudo o que esta (a vontade) arranja. Assim vivem talvez multidões de pessoas; trabalhando, como que insensivelmente, para obscurecer o seu juízo ético e ético-religioso, (...) desenvolvem em si um conhecimento estético e metafísico, o qual, para a Ética, não é senão divertimento.
Mas ultrapassamos até aqui o socratismo? Não, porque Sócrates diria que, tudo se passa assim, é a prova de que afinal o homem não compreendeu o justo. Por outras palavras, para enunciar que alguém, sabendo-o, pratica o injusto, o helenismo carece de coragem e defende-se dizendo: quando alguém pratica o injusto, ignora o justo.

Sobre isso não existe dúvida; e acrescentarei não ser possível a um homem passar adiante, sozinho e por si próprio dizer o que é o pecado, visto que vive nele; todos os seus discursos sobre o pecado não são, no fundo, senão a sua desculpa, uma atenuação pecadora. É por isso que o Cristianismo começa de outro modo, pondo a necessidade de uma revelação de Deus, que instrua o homem sobre o pecado, mostrando-lhe que ele não está em não compreender o justo, mas em não querer compreender, em não querer o justo.

Sören Kierkegaard. O desespero humano, pag. 160, 161, Livraria Tavares Martins, Porto1979

Tradução do Francês de Adolfo Casais Monteiro

quinta-feira, abril 24, 2008

Um paradoxo: o pensamento como pecado


É realmente surpreendente que Nietzsche tenha sabido não só adivinhar em Sócrates um decadente, quer dizer, um homem caído, como também (como se estivesse comprometido a ilustrar com o exemplo de Sócrates a narrativa bíblica) tivesse compreendido que um homem caído é incapaz de salvar-se com as suas próprias forças. Tudo o que o decadente empreende para salvar-se, diz Nietzsche, não faz mais que aumentar a sua perdição. Poderá lutar e vencer-se a si mesmo tudo o que puder; os seus intentos de salvação não são mais que a expressão da sua queda. Tudo o que faz, fá-lo como homem caído, quer dizer como um homem que perdeu a liberdade de escolha e foi condenado por força hostil a ver a sua salvação precisamente no mesmo lugar onde está a causa da sua perda.

Quando Kierkegaard disse que o maior génio é também o maior pecador, não nomeia Sócrates, mas evidentemente teve que pensar nele. Sócrates personificava para ele, essa tentação de que a Bíblia fala. E, com efeito, pode haver máxima mais tentadora do que a do oráculo de Delfos - "Conhece-te a ti mesmo" - ou que o prudente conselho de Sócrates - discorrer o dia inteiro sobre a virtude? Mas é justamente nisto que consiste a tentação da serpente bíblica. E tentou tão bem o primeiro homem, que hoje todavia vemos ali mesmo a verdade onde se oculta um fatal engano. Todos os homens, os místicos inclusivé, aspiram ao conhecimento. No que toca a Kierkegaard, põe simplesmente de parte a serpente, e isto por razões, que como todo o mundo, lhe parecem surgir das profundezas do espírito que despertou da "modorra da ignorância". Há que buscar aqui, provavelmente, a origem dessa convicção Socrática segundo a qual o homem que "sabe" não pode fazer o mal e, por consequência, também a origem da nossa segurança de que o pecado não pode proceder da árvore da Ciência. Se queremos prosseguir utilizando imagens bíblicas teremos que dizer, ao contrário, que o pecado procede da árvore da vida e que, em suma, todo o mal que existe sobre a terra procede da mesma árvore.
Leon Chestov, Kierkegaard y la filosofia existencial, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1951
Título original em francês: Kierkegaard et la Philosophie Existentielle
Tradução para o espanhol de José Ferrater Mora
Tradução do espanhol: Helena Serrão
Gravura: Masaccio, A expulsão de Adão e Eva do Paraíso,1401, 1428