sexta-feira, julho 27, 2018

Sobre a piedade




Ara Guler, Istambul, 1951

A misericórdia pelos animais tem o mesmo princípio da piedade dos homens. Ambos nascem dessa dor quase irrefletida, orgânica, produzida em nós pela visão ou memória do sofrimento de outro ser sensível. Se uma criança está acostumada a ver os animais sofrer com indiferença ou mesmo prazer, o germe da sensibilidade natural, o primeiro princípio ativo de toda a moralidade, é destruído e, mesmo no que diz respeito aos homens, é destruída neles toda virtude,  sem a qual não são mais do que um cálculo de interesses, uma combinação fria da razão. Não vamos sufocar esse sentimento ao nascer; vamos mantê-lo como uma planta fraca ainda, que num instante pode murchar e secar para sempre. Não nos esqueçamos especialmente de que, no homem ocupado com trabalhos grosseiros que entorpecem a sua sensibilidade e o trazem de volta aos sentimentos pessoais, o hábito da dureza produz essa disposição para a ferocidade que é o maior inimigo das virtudes e da liberdade do povo, a única desculpa dos tiranos, o único pretexto ilusório de todas as leis desiguais. Façamos com que as pessoas sejam sensatas e doces, para que não tenham medo de ver o poder residir nas suas mãos; e para que não nos arrependamos de tê-lo restabelecido em todos os seus direitos, vamos dar-lhes aquela humanidade que, sozinha, pode ensiná-los a exercê-lo com uma generosa moderação. O homem compassivo não precisa ser iluminado para ser bom, e a razão mais simples basta para ele ser virtuoso. No homem insensível, pelo contrário, uma bondade fraca supõe uma grande iluminação, e ele não pode tornar-se virtuoso sem o apoio de uma filosofia profunda, ou daquele entusiasmo inspirado por certos preconceitos; um entusiasmo sempre perigoso, porque estabelece como virtude qualquer crime útil aos interesses dos enganadores cujos preconceitos fundaram o poder.

Condorcet, Cinq mémoires sur l’instruction publique (1791)   p. 59
Tradução Helena Serrão

sexta-feira, julho 20, 2018

quinta-feira, julho 19, 2018

As aprendizagens essenciais

Chamam-lhe "As aprendizagens essenciais da Filosofia"  A sociedade Portuguesa de Filosofia organizou e escolheu, penso eu, e os professores que o fizeram penso que são do conhecimento de todos. O que eu acho, é a minha opinião de professora com 30 anos de ensino, é que esses professores têm todos a mesma filiação analítica, não espelham a diversidade pedagógica da Filosofia e estão a confinar a Filosofia a um feudo demasiado restrito e redutor que não é de todo interessante ou formador para os alunos. De facto, a Lógica e a análise das proposições, não são o instrumento essencial e único da Filosofia, nem é correto reduzir os conteúdos a uma forma de teoria/argumento/objeção; a História é tão fundamental como a Lógica, ou a Hermenêutica, a Fenomenologia ou a Filologia. Este programa faz de conta que essas áreas de análise não existem, passa uma esponja e formata, isto é, faz o contrário do que deve ser uma abordagem ao pensamento filosófico. Não estou sozinha neste meu credo, mas não percebo porque não se discute de forma ampla estes assuntos e se apresenta um novo programa deste modo.

Helena Serrão

segunda-feira, julho 16, 2018

Foto Luis Faurer, 1961

Parabéns aos meus alunos que fizeram o exame de Filosofia! Os resultados foram, no geral, bastante satisfatórios!

terça-feira, julho 10, 2018

Radicalismos 5



Instituição dos jogos cénicos. 

Todavia, ficai sabendo, vós que o ignorais e vós também que fingis ignorá-lo; prestai atenção, vós que murmurais contra quem vos libertou de tais senhores: os jogos cénicos, espetáculos de torpeza e desvario de vaidades, foram criados em Roma não por vícios humanos mas por ordem dos vossos deuses. Seria mais tolerável conceder honras divinas a Cipião do que prestar culto a deuses deste jaez. Porque estes não eram melhores que o seu pontífice. Vede se prestais atenção — se é que o vosso espírito, embriagado por erros sorvidos desde há tanto tempo, vos permite tom ar em consideração alguma coisa de são. Os deuses ordenavam exibições de jogos teatrais em sua honra para refrearem a pestilência dos corpos. O pontífice, ao invés, proibia a própria construção do teatro para evitar que as vossas almas se empestassem. Se em vós resta uma centelha de lucidez para dar preferência à alma sobre o corpo — escolhei a qual dos dois deveis prestar culto. E não se acalmou aquela pestilência dos corpos, porque, num povo belicoso como este, até então acostumado apenas aos jogos de circo, se insinuou a insânia refinada das representações teatrais. Mas a astúcia de espíritos nefandos, prevendo que a seu tempo terminaria aquela peste, teve o cuidado de inocular outra muito mais grave e do seu pleno agrado, desta vez não nos corpos mas nos costumes. Esta peste cegou o espírito a estes desgraçados com tão espessas [185] trevas e tornou-os tão disformes, que, agora (a posteridade talvez não acredite se lhe chegar ao ouvido), devastada que foi Roma, os contagiados desta peste que na fuga conseguiram chegar a Cartago, todos os dias e à porfia se encontram nos teatros enlouquecidos pelos histriões.

Santo Agostinho, A cidade de Deus, Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, Livro I, p.185


Tradução Dias Pereira

Ora Agostinho considera o Teatro perverso, ora ele é realizado a pedido e como oferenda a uma divindade, logo, a divindade é perversa. Aqui há um juízo de valor que se fundamenta numa crença prévia. O teatro é perverso porquê? Porque não é uma oferenda ao Deus Único? Porque não tem como fim a sua exaltação?