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terça-feira, fevereiro 15, 2022

Universalidade e reciprocidade; princípios necessários para o valor moral de uma ação.

 

Fotografia de Vivian Maier, EUA, Chicago, 1926/2009

Imagine que uma equipa de exploradores descobre duas tribos exóticas numa região longínqua. Na primeira, a dos Rigiditos, há uma lista muito precisa daquilo que é permitido e daquilo que é proibido (…). A crença comum é que o bem e o mal são noções imutáveis com referências intangíveis. Aqui, não há questões a colocar: a moral repousa sobre a palavra sagrada do Todo-Poderoso. Neste universo, não há outra opção senão submeter-se a todos os mandamentos. Os Regiditos estão tão seguros da sua moral que a tomam por universal: ela deverá ser aplicada a todas as pessoas de todas as tribos, sem restrição.

Na segunda tribo, a dos Relativitos, as regras de bom comportamento não dependem de princípios superiores, (…) mas mais prosaicamente da boa vontade de cada um. Os membros desta tribo falam mais depressa em ética do que em moral, em bom e mau do que em bem e mal. Não existe qualquer lista pormenorizada daquilo que é permitido e daquilo que é proibido, uma vez que nesta matéria as coisas variam em função das pessoas, das épocas e das circunstâncias (…) Aqui, é opinião comum que o bom e o mau são relativos aos desejos de cada um.(…) Contrariamente aos Regiditos, os Relativitos não têm pretensão de universalidade. Tal como acontece com eles, consideram que outras tribos poderão viver segundo diferentes códigos de boa conduta. (…)

Não há dúvida que a moral é um conjunto de valores convencionais (não pode deixar de ser assim), no entanto, devemos agir como se de um conjunto de valores universais absolutos se tratasse, como fica provado com a declaração universal dos Direitos do Homem. É o princípio da universalidade sobejamente conhecido. Uma conduta que não possa ser generalizada não poderá ser uma conduta moral. É isso que se passa com a mentira: não podemos desejar que ela seja universal, não podendo, portanto, ser moral, jamais poderíamos transformá-la em “lei geral”.(…) Trata-se muito simplesmente de preservar a possibilidade de comunicar comos nossos semelhantes.

Todavia há situações em que a mentira é um ato moral, para não dizermos heroico. Por exemplo, uma pessoa, durante a Segunda Guerra Mundial, que nega abrigar um evadido quando a Gestapo lhe bate à porta. Neste caso, o respeito cego do princípio da universalidade, na medida em que ele conduz à denúncia, constitui um mal maior do que a violação (ocasional) desse princípio. Um outro princípio permite compreender este ponto, é o da reciprocidade: não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti, ou, para utilizar uma fórmula mais técnica e menos utilitarista, trata sempre a Humanidade (na tua pessoa como em qualquer outra) como um fim. Sublinhe-se que este princípio não passa de uma implicação lógica do princípio da universalidade, que o engloba.  Princípios destes fazem com que possamos agir moralmente, ou seja, em virtude da nossa ideia de bem, com conhecimento de causa.

Estes dois princípios, o princípio da universalidade e o princípio da reciprocidade, não são obviamente suficientes para resolver a questão moral e separar sistematicamente o bem do mal. Mas permitem, pelo menos, duas coisas. Por um lado, permitem evitar que a moral se confunda com os interditos caprichosos e risíveis de alguns autocratas (por perversidade essas pessoas interditam tudo o que diz respeito ao prazer e o mesmo é dizer, ao bem). Por outro, permitem constituir uma terceira via entre uma moral absoluta caída do céu (ilusão da transcendência) e uma moral puramente local, ligada aos costumes e usos de uma qualquer tribo humana.

Stéphane Ferret, Aprender com as coisas, Lx, 2007, Ed. ASA, p.97 a 101

sábado, janeiro 12, 2019

Ação





Quando falamos da ação de um ácido sobre um corpo, por exemplo deste sumo de limão sobre este pedaço de açúcar, estamos a utilizar uma metáfora: o sumo de limão não é um ator, o sumo de limão não visa dissolver o açúcar. Se não há dúvidas de que o ser humano é um excelente candidato ao título de agente ou de ator, e que o vento, as cadeiras ou as pedras jamais o poderão ser, que dizer em relação à possibilidade de existirem outros candidatos não humanos credíveis? Contrariamente a uma longa tradição filosófica que reserva a intencionalidade para o homem, parece ser um dado adquirido que também os animais (pelo menos alguns) são entidades capazes de ação. Aos olhos da maioria dos homens, parece não restarem dúvidas de que também os símios, os burros ou as girafas são criaturas agentes. Outras entidades, como os extraterrestres, no caso de existirem, podem ser considerados possíveis candidatos. O critério discriminativo parece repousar sobre a diferença entre a noção de finalidade e a noção de função. Um ator é uma entidade que tem consciência de um objetivo. Um pseudoator é um objeto ou substância que se limita a cumprir uma função, sem que tenha consciência de um objetivo. Tomemos o exemplo de uma torradeira Mitos outros exemplos poderiam ser dados) , é óbvio que este utensílio tem por função torrar o pão. No entanto, não podemos atribuir-lhe o objetivo de torrar o pão. Uma torradeira não é um ator. Esta distinção entre objetivo e função permite reduzir a extensão da noção de ator, assim como excluir um bom número de candidatos ilegítimos, como é o caso das algas e dos termóstatos, e isto sem que se reserve para o homem o título de agente ou ator.  (…) é a intenção que permite estabelecer uma distinção entre o conceito de objetivo, que a pressupõe e o conceito de função, que a exclui. 

Stéphane Ferret, Aprender com as coisas, Lisboa, 2007, Asa, p.85 e 86