sábado, julho 16, 2011

o sonho e as descontinuidades

O tempo cura as dores e as querelas porque nós mudamos. Não somos os mesmos; nem o ofendido nem o ofensor são as mesmas pessoas. É como um povo que tivéssemos irritado, e que reencontrássemos duas gerações depois. Seriam ainda Franceses, mas não os mesmos Franceses.
Se sonharmos todas as noites a mesma coisa, ela irá afectar-nos tanto como os objectos que vemos todos os dias. E se um artesão tivesse a certeza de poder sonhar todas as noites, durante doze horas, que era Rei, creio que seria tão feliz como um Rei que sonhasse doze horas, todos os dias, que era um artesão.
Se sonharmos todas as noites que somos perseguidos por inimigos e sobressaltados pelos seus dolorosos fantasmas e se passarmos os dias inteiros em ocupações diversas como se fizéssemos uma viagem, sofreremos quase tanto como se isso fosse verdade, e ficaríamos apreensivos com o sono como ficamos apreensivos com o sonho, temendo entrar no sofrimento real. Com efeito far-nos-iam mais ou menos o mesmo mal que a realidade nos faz.
Mas porque os sonhos são todos diferentes, e até um só sonho se vai diversificando, aquilo que aí vemos afecta-nos menos do que o que vemos na vigília por causa da continuidade, não é no entanto, o que vemos na vigília, tão contínuo e igual que não mude, só não muda tão bruscamente, mas não é raro, quando viajamos, dizer: " Parece-me que sonho". Porque a vida é um sonho um pouco menos inconstante.

Blaise Pascal, Pensées, Fragmento 662, Gallimard, 1977, Paris, pp.406

Tradução de Helena Serrão

Foto de Annie Leibovitz