quarta-feira, julho 14, 2021

Autoridade

 


Fotograma do filme "L'enfant sauvage"

Sobre a base de um esclarecido conceito de razão e liberdade, o conceito de autoridade pôde converter-se simplesmente no contrário de razão e liberdade, ou seja, no conceito da obediência cega. Este é o significado que conhecemos a partir do uso linguístico da crítica às modernas ditaduras. Todavia, não é essa a essência da autoridade. Na verdade, a autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem o seu fundamento último num ato de submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspetiva e que, por consequência, o seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso juízo. Acrescentando o facto de que a autoridade não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspetiva mais acertada. Este sentido retamente entendido de autoridade não tem nada a ver com obediência cega de comando. Na realidade, autoridade não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento. (…)

Sem dúvida que poder dar ordens e encontrar obediência é parte integrante da autoridade. Mas isso somente provém da autoridade que alguém tem. Inclusive a autoridade anónima e impessoal do superior, que deriva das ordens, não procede, em última instância, dessas ordens, mas torna-as possíveis. O seu verdadeiro fundamento é, também aqui, um ato da liberdade e da razão, que concede autoridade ao superior basicamente porque possui uma visão mais ampla ou é mais consagrado, ou seja, porque sabe melhor. É assim que o reconhecimento da autoridade está sempre ligado à ideia de que o que a autoridade diz não é uma arbitrariedade irracional, mas algo que pode, preponderantemente, ser inspecionado. É nisso que consiste a essência da autoridade que se exige ao educador, ao superior, ao especialista.

Sem dúvida que os preconceitos implantados se encontram legitimados pela pessoa. A sua validez requer uma predisposição para com a pessoa que os representa. Mas é exatamente assim que se convertem em preconceitos objetivos, pois operam a mesma predisposição para com uma coisa, que pode ser produzida por outros caminhos, por exemplo, por bons motivos que a razão torna válidos. Nesse sentido a essência da autoridade pertence ao contexto de uma teoria de preconceitos que tem de ser libertada dos extremismos do Aufklarung. Para isso podemos nos apoiar na crítica romântica ao Aufklarung.

 Pois existe uma forma de autoridade que foi particularmente defendida pelo romantismo: a tradição. O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anónima, e o nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base, e, mesmo no caso em que, na educação, a "tutela" perde a sua função com o amadurecimento da maioridade, momento em que as próprias perspetivas e decisões assumem finalmente a posição que detinha a autoridade do educador, esta chegada da maturidade vital-histórica não implica, de modo algum, que nos tornemos senhores de nós mesmos no sentido de nos havermos libertado de toda herança histórica e de toda tradição. A realidade dos costumes, p. ex., é e continua sendo, em vastos âmbitos, algo válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente, mas não criados por livre inspiração nem a sua validade nela se fundamenta. É isso, precisamente, que denominamos tradição: o fundamento da sua validade. E a nossa dívida para com o romantismo é justamente essa correção do Aufklarung, no sentido de reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradição conserva algum direito e determina amplamente as nossas instituições e comportamentos.”

Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Petropolis,1999, Editora Vozes, p.419, 420, 421