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terça-feira, janeiro 19, 2010

Guerra na Argélia
Não julgo que as culturas tenham tentado, sistemática ou metodicamente, diferenciar-se umas das outras. A verdade é que durante centenas de milhares de anos a Humanidade não era numerosa na terra e os pequenos grupos existentes viviam isolados, de modo que nada espanta que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características, tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade sentida pelos grupos. Foi apenas o mero resultado das condições que prevaleceram durante um período bastante dilatado.

Chegados a este ponto, não queria que pensassem que isto é um perigo ou que estas diferenças deviam ser eliminadas. Na realidade as diferenças são extremamente fecundas. O progresso só se verificou a partir das diferenças. Actualmente, o desafio reside naquilo que poderíamos chamar supercomunicação -ou seja a tendência para saber exactamente, num determinado ponto do mundo, o que se passa nas restantes partes do Globo. Para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa medida, da sua superioridade sobre os outros; é somente em condições de subcomunicação que ela pode produzir algo. Hoje em dia estamos ameaçados pela perspectiva de sermos apenas consumidores, indivíduos capazes de consumir seja o que for que venha de qualquer ponto do mundo e de qualquer cultura, mas desprovidos de qualquer grau de originalidade.


Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, Ed.70,Viseu, 1985 ,pp.34



Este é um texto retirado de uma obra muito divulgada, quiça a mais lida de Lévi-Srauss, Myth and Meaning publicada pela primeira vez em 1978 e responsável por uma vaga de curiosidade e admiração pelo exotismo das chamadas civilizações selvagens. Os povos ocidentais descobriam assim uma outra forma de se olharem a si próprios através da diferença cultural encarada não como um sinal de primitivismo torpe mas como uma certa atitude original capaz de nos ensinar o que perdemos com o pensamento científico e a cultura tecnológica. Curiosamente esta antropologia estruturalista está hoje um pouco em desuso e isso, julgo, deve-se, ao facto das civilizações ocidentais se confrontarem com fenómenos de compreensão e integração de outras culturas, fenómeno forçado pela globalização crescente. Assim quando a diferença se quer impôr como uma igual, desenraízada do seu espaço por razões económicas e sociais, deixa de ser uma outra cultura que observamos pacificamente para ser uma interferência relutante nos nossos hábitos e geradora de conflito. Daí que Lévi-Strauss tenha morrido de forma mais ou menos apagada, e o seu pensamento mais ou menos esquecido porque hoje o exotismo transformou-se em resistência e isso não é de modo nenhum agradável.


Helena Serrão

terça-feira, janeiro 12, 2010

Os Tupinambás


Dança dos Tupinambás
Cena canibalista

A ideia de uma filial terrena do Éden bíblico, onde ninguém precisaria de ler leis escritas para ser feliz para sempre, existia muito antes de 1500 (1502 era a data da carta de Américo Vespúcio ao banqueiro Lourenço de Medici , relatando a descoberta na baía de Guanabara, de um grupo de índios, os Tupinambás. Esta carta segundo teses citadas pelo autor serviria de inspiração à obra de Thomas More Utopia) O problema era que não se sabia onde ficava esse Éden e quais eram as horas de visita.Mas, com as grandes navegações, vieram os descobrimentos e os primeiros contactos com as populações dos trópicos. Finalmente se tinha um Éden para mostrar, melhor ainda que o do Génesis - e, pelo que se depreendeu do relato de Vespúcio, ele ficava no Rio. Por quê?
Porque, aqui, em meio da natureza mais exuberante que se pudesse imaginar, vivia um povo doce e inocente, sem noção de governo,moeda, bens materiais ou propriedade privada, desprovido de cobiça, inveja e egoísmo, e alheio a qualquer noção de "bem" e de "mal". Sem culpa também, porque, no perene verão da Guanabara,os homens, mulheres, crianças e velhos circulavam nus dia e noite, sem que isso levantasse sobrolhos entre eles. E, ao contrário do que se poderia pensar, não se tratava de feras com o corpo coberto de pêlos e um terceiro olho na testa, mas de uma gente simpática, de grande beleza física e com uma saúde de fazer inveja a qualquer europeu. O "homem natural", filho directo de Adão, existia de verdade, e que isto servisse de lição para o homem europeu, subitamente esmagado pelo surgimento das grandes potências, pela emergência do capitalismo e pelo individualismo que começava a grassar - eis o recado da Utopia de sir Thomas More.
Tudo isso era confirmado pelos piratas franceses, normandos e bretões que começaram a aportar na Guanabara em 1504, apenas dois anos depois de Vespúcio, e que voltavam para contar a história. Diziam eles que, ao se aproximar do Rio, assim que as suas naus despontavam na barra, eram cercados pelas canoas dos tupinambás e recebidos com tratamento VIP. Os indígenas subiam a bordo, faziam-lhes festinhas, ofereciam-lhes frutas e presentes e ainda lhes entregavam as mulheres. (...)
Supreendentemente, uma outra especialidade dos Tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. Talvez porque o seu hábito de comer carne humana fosse movido apenas por vingança (nada a ver com escassez de alimento na praça) e obedecesse a rígidas regras de etiqueta. Primeiro, só comiam os seus prisioneiros de guerra e, mesmo assim, só os fortes e corajosos - de preferência os temiminós, uma tribo com quem mantinham uma guerra quase esportiva havia quinhentos anos. Segundo, nada era feito às pressas: o prisioneiro tinha uma série de direitos e deveres antes de morrer.


 
Ruy Castro, Carnaval no Fogo, Companhia das letras, S. Paulo, 2003, pp 27, 28, 30

Curioso é o modo como no livro é descrito o canibalismo, uma forma de cerimónia onde se prestava o culto ao inimigo comendo o seu corpo para assim assimilar as suas virtudes.Esta visão contrasta com o modo como as gravuras cristãs retratam a mesma cena: uma forma terrífica onde sobressai o demoníaco do acto. Resta acrescentar que, segundo descrição, o inimigo canibalizado era morto de forma indolor com uma pancada seca na cabeça e que antes tinha todas as suas exigências satisfeitas. As perspectivas alteram o significado do acto.
O texto está escrito em português do Brasil e mantém as expressões tal como as utiliza o autor.
Helena Serrão