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quinta-feira, novembro 06, 2008

A lógica da descoberta científica

O livro mais importante [de Karl Popper] sobre a filosofia da ciência, A Lógica da Descoberta Científica, faz duas grandes alegações sobre a investigação científica. Primeiro, Popper defende uma certa versão do falsificacionismo, a perspectiva de que a ciência procede, não verificando a verdade das hipóteses científicas, mas pondo de parte hipóteses falsas. O falsificacionismo, argumenta Popper, resolve o (ou pelo menos salva-nos do) terrível problema da indução. Segundo, Popper defende que as proposições científicas são diferentes das proposições pseudo- ou não-científicas, porque são falsificáveis empiricamente. (…)

Os problemas da indução e da demarcação
Recordemos que Hume deu conta de um problema envolvendo o que ele chamou 'raciocínio causal', uma dificuldade lógica respeitante ao nosso pensamento sobre factos para além da nossa experiência sensória do momento. Hume defende que ir para além das nossas experiências correntes requer que pensemos essas experiências como causas ou efeitos de coisas que no momento não nos rodeiam. Vejo pegadas na praia e, sabendo a partir da experiência passada que as pegadas são efeitos de uma pessoa que caminhou pela praia antes de mim, concluo que alguém caminhou pela praia antes de mim. Este tipo de raciocínio parece depender do princípio da indução, algo que liga muitas observações particulares a uma conclusão geral. O princípio pode ser descrito de diversas maneiras: o futuro será como o passado, a natureza é uniforme, as coisas continuarão a ser como sempre foram, e por aí em diante. Quando concluo que uma pessoa a caminhar pela praia foi a causa das pegadas faço uma inferência indutiva do género: 'Aqui há algumas pegadas. Vi muitos exemplos de pegadas no passado. Em cada uma dessas ocasiões passadas, as pegadas foram causadas por uma pessoa a caminhar. Assim, todas as pegadas são causadas por pessoas. Portanto, essas pegadas foram feitas por alguém que caminhou na praia antes de mim.' O princípio da indução, argumenta Hume, suporta a inferência indutiva que parte de muitas observações particulares para uma conclusão geral - neste caso, o raciocínio que parte de se ter encontrado várias pegadas causadas por pessoas a caminhar para a conclusão de que todas essas pegadas são causadas por pessoas a caminhar. É com base na alegação geral sobre todas a pegadas que penso que sei algo sobre a causa das pegadas que vi.
A dificuldade identificada por Hume, para nós o problema da indução, é que não há justificação racional para o próprio princípio da indução. Hume considera que as proposições justificáveis são apenas de dois tipos: matérias de facto e relações de ideias. Podemos determinar se certa matéria de facto alegada é verdadeira olhando para o mundo em nosso redor. As relações de ideias são ou verdades por definição ou verdades que se tornam tal em virtude de convenção simbólica. Hume diz que podemos identificar relações de ideias porque a negação destas resulta em contradição. (…) Hume mostrou que o princípio da indução não pode ser uma relação de ideias, porque a sua negação não envolve contradição; e não pode ser justificado numa base empírica, visto que isto nos levaria a raciocinar em círculo. Com efeito, não há contradição em pensar que o futuro possa não ser como foi o passado e estaremos a argumentar em círculo se dissermos que o futuro será como foi o passado porque os futuros passados sempre foram como os passados passados. Por outras palavras, o princípio da indução não tem uma base racional.
Se pensarmos um pouco neste contexto sobre a investigação científica, podemos ser conduzidos com alguma rapidez à conclusão de que a ciência não é, no fim de contas, racional. À primeira vista, a ciência procede através da experimentação, da recolha de um certo número de observações particulares, concluindo, com base nelas, que alguma afirmação geral é verdadeira. Por outras palavras, a ciência é posta em marcha quando se nota por observação que várias instâncias de um certo tipo de coisa possuem uma dada propriedade. Dado o princípio da indução, uma conclusão geral é atingida quando se diz que todas as coisas daquele tipo possuem a propriedade em questão. Este gás aquece quando a pressão sobre ele aumenta; este outro gás aquece da mesma maneira; também ainda este outro; portanto, a tempertura de todos os gases aumenta com uma intensificação da pressão. Se algo é indutivo, é isto; e se Hume está certo sobre a irracionalidade do princípio da indução, parece que a ciência é, no fundo, irracional. E se a ciência é irracional qual a diferença entre a pesquisa científica e os lunáticos da Nova Era? Se queremos predizer o comportamento dos gases sob pressão, porque não consultar um leitor de entranhas de pombo em vez de um cientista?
Deste modo, os dois problemas de Popper dizem respeito ao papel da indução na ciência e à diferença entre ciência e pseudo-ciência. A sua solução para ambos envolve a ideia de falsificação. Daremos conta de cada um deles à vez.

Indução e falsificação
Popper resolve o problema da indução substituindo a concepção indutivista da investigação científica por uma coisa diferente, nomeadamente, a falsificação. Os cientistas não precisam de proceder indutivamente inferindo afirmações gerais a partir de várias observações. Em vez disso, a prática científica envolve a proposição e depois o teste de alegações teóricas gerais. Por outras palavras, a ciência não tem de inferir teorias de observações - isto lumps us with o problema da indução. Em vez disso, os cientistas podem inferir dedutivamente consequências observacionais das teorias e então, com base nas suas deduções, sujeitar a teoria a testes rigorosos. Se os testes mostrarem que a teoria prediz falsas declarações observacionais, sabemos que a própria teoria é falsa.
O estratagema de Popper depende de uma assimetria lógica interessante. Uma forma de entender o problema da indução é notar que, independentemente do número de observações que possamos registar a favor da nossa conclusão indutiva, ela pode sempre vir a ser falsa. Isto é apenas dizer que as inferências indutivas não são logicamente válidas. Numa inferência indutiva podemos ter premissas inteiramente verdadeiras e, ainda assim, obter uma conclusão falsa. Suponhamos que esta pegada foi causada por uma pessoa a caminhar ao longo da praia, e esta também e ainda estoutra, e assim por diante por quantas observações quisermos. A minha conclusão indutiva de que todas as pegadas são causadas por pessoas caminhando ao longo da praia pode sempre mostrar-se falsa, mesmo sendo as minhas premissas verdadeiras. Basta para isso que um punhado de crianças criativas faça uma falsa pegada na praia.
Mas notemos o que acontece se voltarmos a lógica da situação de pernas para o ar e pensarmos apenas dedutivamente. Começamos com a teoria de que todas as pegadas são causadas por pessoas que caminham ao longo da praia. Supunhamos que deduzimos disto a consequência observacional que as pegadas observadas amanhã na Costa da Caparica serão causadas por pessoas a caminhar na praia. Vamos à praia dar uma olhadela. Se encontrarmos apenas um exemplo de pegadas falsas feitas por crianças, então sabem com certeza que a nossa teoria é falsa. A indução nunca nos leva a parte nenhuma, a falsificação pode pelo menos dizer-nos quando as nossas teorias são incorrectas.
Falando sem grande rigor, podemos dizer que Popper advoga que se mude de uma argumentação indutiva para uma forma de argumento que os lógicos chamam modus tollens. Estes argumentos têm a seguinte estrutura: se p implica q e q é falso, então p é falso. Traduzindo para o contexto da filosofia da ciência, Popper está a sugerir que a racionalidade científica consiste no mesmo tipo de forma lógica: se a minha teoria conduz a uma certa observação e a experiência contradiz a observação prevista, então a minha teoria é falsa. Se não podemos obter certeza indutiva acerca da verdade das nossas teorias, podemos, no entanto, pelo menos algumas vezes, ter certeza dedutiva da sua falsidade.

O critério da demarcação
Também podemos ver, novamente sem grande rigor, como a ideia de falsificação leva à solução de Popper para o segundo problema e encontrar uma distinção entre ciência e pseudo-ciência. Caracterizar esta distinção - mostrar 'o critério de demarcação', como Popper o designa - ajudar-nos-á a compreender o que é a ciência. Conduzir-nos-á também a pôr sob dúvida práticas a que se dá por vezes demasiada atenção, em particular, aquelas que se confundem com a ciência. Popper trabalhou por uns tempos com o freudiano Alfred Adler e é esclarecedor, neste contexto, dizer algumas palavras sobre o freudianismo.
Supunhamos que eu o incomodo a si com a minha teoria freudiana de que o desejo sexual inconsciente por figuras maternas está na base do comportamento masculino. Eu exijo-lhe provas e dirigimo-nos a um bar para observar o modo como os clientes interagem com o homem e com a mulher que estão ao balcão. Um cliente homem escolhe a mulher quando decide pedir uma bebida e eu exclamo 'Ah ah! O seu desejo inconsciente pela mãe levou-o a interagir primeiro com ela! Isto prova a minha teoria.' Mas se as coisas tivessem acontecido de maneira diferente e o cliente se tivesse dirigido ao homem atrás do balcão, eu poderia dizer também sem dificuldade 'Ah ah! Ele está a tentar ultrapassar o seu desejo pela mãe evitando a mulher do bar! Isto prova a minha teoria.'
O problema em Freud e até certo ponto, na óptica de Popper, em Marx, é que as perspectivas destes não são falsificáveis. Uma hipótese freudiana não tem consequências empíricas e é por isso que devemos hesitar em considerá-las científica. O que distingue a ciência da mera pseudo-ciência como o freudianismo é precisamente a testabilidade das hipóteses científicas. As teorias científicas têm consequências que podemos inspeccionar através da observação. (…)

Dificuldades da perspectiva de Popper
Há todo um conjunto de preocupações associadas à concepção da ciência de Popper, apesar de ele ter contornado o problema da indução e de ter conseguido distinguir a ciência dos pretensos candidatos a esse estatuto. Podemos perceber as dificuldades ao pensar como é que a perspectiva falsificacionista funciona supostamente na prática. Por exemplo, devemos pensar nos cientistas como alguém que tenta genuinamente falsificar, e não provar, as suas teorias? (…)
deve esperar-se que acreditemos que os cientistas devam ser ou sejam falsificacionistas? Dão eles saltos de alegria quando descobrem que a teoria sobre a qual trabalham, porventura à décadas, é falsa? Devia ser assim? Não é descabido pensar que os esforços de Popper para evitar o problema da indução o fizeram cair em algo que não se parece com a ciência tal como é praticada ou mesmo tal como deve ser praticada. Uma olhadela à história da ciência chega para sugerir que os próprios cientistas não pensam que o seu trabalho consiste em remover falsidades, mas em encontrar verdades. Seja como for, a perspectiva de Popper parece ignorar a dimensão social da ciência tal como esta é praticada, um facto explorado por filósofos posteriores como Thomas Khun e Paul Feyerabend.
James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books (London, 2006). Trad. Carlos Marques.
Imagem: tradução inglesa da obra A Lógica da Descoberta Científica.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

O método de Descartes.

[No seu livro Meditações de Filosofia Primeira, Descartes] começa com (…) [a regra]: não aceites nada que não se apresente à mente tão clara e distintamente que não haja razão para disso duvidar. Descartes não está aqui a falar apenas de uma ‘dúvida razoável’. A exigência, no fim de contas, é alta, e o objectivo é encontrar a certeza absoluta, um fundamento sobre o qual se construa todo o sistema da ciência. Qualquer razão para duvidar, não importa quão bizarra, servirá para tornar suspeita uma crença. Portanto, o método de Descartes é o método da dúvida. Se uma crença sobrevive ao teste de Descartes, ela terá de estar até acima da mais pequena sombra de dúvida. Examinar cuidadosamente todas as nossas crenças individualmente seria uma tarefa sem fim, por isso, Descartes começa por procurar a certeza lançando a dúvida sobre uma classe de crenças no seu todo.

A destruição das crenças

Descartes começa com crenças baseadas na percepção dos sentidos. A maior parte das coisas que ele conhece são crenças baseadas no uso dos sentidos, mas os sentidos são por vezes enganadores. Olhemos para um remo imerso na água pela metade e ele parecerá torto. Pensemos em truques luminosos, miragens no deserto ou na ilusão de água tremeluzente no alcatrão quente à distância. Se os sentidos às vezes nos enganam, argumenta Descartes, é um sinal de prudência nunca neles confiar completamente. Devemos então concluir que não é certa nenhuma das nossas crenças baseadas na nossa evidência sensorial? Baseando-se nestas reflexões, pode o leitor duvidar que está a segurar este livro nas suas mãos?
Ele pensa que o argumento não pode provar tanto. As ilusões que foram consideradas parecem depender de condições sensoriais não óptimas. Quando a iluminação é boa e um objecto está mesmo diante de si, é difícil pensar que truques luminosos possam dar-lhe uma razão para duvidar do que está a ver. De qualquer modo, apenas compreendemos que existe ilusão apoiando-nos nos nossos sentidos. Apesar da minha experiência visual, sei que o remo não está na realidade torto ao apalpá-lo ou trazendo-o para fora da água, sujeitando-o a uma inspecção mais cuidada. Sabemos das ilusões sensoriais precisamente porque confiamos algumas vezes nos nossos sentidos. Portanto, o argumento da ilusão não pode lançar a dúvida sobre todas as sensações. Ele depende à partida da veracidade da percepção sensível.
Descartes chega a dizer que teria de ser um pouco doido para pensar que as mãos que via não eram as suas mãos segurando um papel, enquanto fazia estas meditações ao calor da lareira. O leitor pode até sorrir maliciosamente com Descartes olhando com a confiança restabelecida para as suas mãos, ao ler o livro em que ele assim fala. Porém, o sorriso desvanece-se rapidamente.
Quantas vezes, pergunta Descartes, sonhou ele que estava sentado à lareira, escrevendo ou lendo, vendo inocentemente o que ele julgava serem as suas mãos, quando de facto estava a dormir profundamente sem estar a olhar para nada? Os sonhos podem parecer, para aquele que está no momento a sonhar, tão real como a experiência de estar acordado. Pode o leitor estar certo que são as suas mãos que estão a segurar no livro ou estarão as suas mãos enfiadas por debaixo da sua almofada? Dizer a si mesmo que os sentidos são fiáveis quando as condições são boas não reassegura, uma vez que compreendemos que se pode estar a sonhar com essas boas condições. A situação fica bem pior se não se puder divisar uma maneira que distinga entre as experiências da vigília e do sonho. Sem isso, sem qualquer critério que possa ser usado para estabelecer a diferença entre os dois estados, podemos simplesmente ter sonhado que é verdadeira qualquer crença que tenhamos.
Antes de o leitor ir demasiado longe nos seus pensamentos na busca de provas conclusivas de que está acordado, vale a pena notar que o céptico tem resposta pronta para qualquer delas. Ele pode dizer que os sonhos seguem uma ordem, são claros, vívidos e assim por diante.
(…)
Descartes julga que o argumento do sonho prova muita coisa. No entanto, pensa que as imagens que experimentamos ao sonhar são como pinturas que podem ser formadas apenas com base em algo real. Quando, por exemplo, um pintor pinta um unicórnio, ele tem em mente algo real, nomeadamente, cavalos e cornos, e combina-os. Experiências oníricas têm de vir também de algo real. Porém, Descartes usa aqui das cautelas exigidas pelo método da dúvida. Talvez coisas gerais como mãos e lareiras não existam, mas pode ser que existam entidades mais simples e universais. Conclui que aspectos da natureza corpórea em si mesma – figura, quantidade, tamanho, número, lugar e tempo em geral – existem realmente, mas que crenças acerca de coisas particulares são agora suspeitas. Ele [com base no argumento do sonho] rejeita, portanto, as crenças a que se dedicam o estudo da Física, Astronomia e Medicina – numa palavra, quaisquer crenças que dependem de entidades compósitas. Só as crenças que não dependem da existência real de coisas particulares, como as da Matemática e Lógica, permanecem.
Descartes lança a dúvida sobre estas ao considerar a sua própria origem. Ou foi criado por um Deus todo-poderoso ou por um mecanismo menor, porventura uma série de acidentes ao acaso. Se foi Deus que o fez, é possível que tal ser o tenha construído de tal modo que mesmo as suas crenças sobre a Matemática e a Lógica sejam falsas. Podia ter sido construído a pensar que os triângulos tivessem quatro lados. Se deve a sua origem a algo menor, a uma série fortuita de acidentes, então é ainda mais provável que tenha defeitos de concepção. Seja como for, tem razão para duvidar da sua capacidade de formar crenças acerca de coisas simples e universais.
Ao concluir o seu argumento, ele escreve: ‘Nada tenho certamente a dizer em resposta a estes raciocínios, e sou constrangido a admitir que, de todas as opiniões que no passado aceitei como verdadeiras, não há nenhuma que não seja agora legitimamente posta em dúvida’. Para manter esta conclusão desconfortável em destaque, emprega um artifício psicológico, o chamado ‘Demónio Maligno’. Descartes diz que tem dificuldade em pensar que Deus o pode enganar. Portanto, imagina antes um demónio malicioso, tão poderoso e astucioso, como traiçoeiro, ocupado inteiramente em enganá-lo. Isto, em conjunção com os três argumentos acima, parece ter deixado Descartes com dúvidas acerca de todas as suas crenças.

O Cogito

Mas há uma crença, uma proposição resistente, da qual ele não pode absolutamente duvidar. Mesmo que ele seja enganado pelos seus sentidos, que esteja perdido num sonho, que a sua origem seja tal que ele seja um pensador imperfeito, até que um demónio vicioso esteja determinado a lançar sobre ele a confusão, permanece acima de qualquer dúvida que ele existe. Como Descartes diz: ‘ Penso, existo, é necessariamente verdadeiro, de cada vez que eu o expresso ou concebo na minha mente.’ Temos não só um dos mais famosos slogans filosóficos jamais escritos, mas também a primeira verdade, o fundamento sobre o qual Descartes reconstrói o seu sistema de conhecimento. A primeira verdade é por vezes designada ‘o Cogito’, abreviatura da expressão latina ‘Cogito, ergo sum’, ‘Penso, logo existo’.
O estatuto do Cogito tem ocupado os filósofos desde então. Numerosas questões se levantam quase instantaneamente. Trata-se da conclusão de um argumento? Não é claro como possa ser isso, visto que Descartes admitiu não ter crenças, quaisquer premissas com que construir um argumento. Além do mais, ele disse também não ter fé na sua capacidade de construir argumentos, não ter confiança na Lógica. Alguns vêem no Cogito não a conclusão de um argumento, mas uma espécie de descoberta epistémica: uma verdade indubitável na qual ele tropeça. Outros preocupam-se em saber se Descartes pode ter direito ao ‘Eu’ presente no Cogito. Não terá ele de direito apenas a qualquer coisa de menos, a dizer somente que o pensamento ocorre e não que quem o pensa é o próprio Descartes?

O círculo cartesiano

No entanto, Descartes tenta ir para a frente, olhando para novas verdades dentro da sua mente. Pensa um pouco acerca da natureza da dúvida e conclui que a dúvida é uma forma de imperfeição, em comparação com o conhecimento. A reflexão sobre a própria ideia de perfeição condu-lo a uma das várias provas da existência de Deus. Dada a natureza das suas várias dúvidas, Descartes sabe que não é um ser perfeito. Não obstante, tem a ideia de perfeição e essa ideia não lhe pode ter vindo de si mesmo ou de qualquer ser imperfeito. Pode apenas vir de um ser perfeito, nomeadamente, de Deus. Esta linha de pensamento conduz a uma versão do argumento ontológico de Anselmo. A ideia que Descartes tem de Deus é a de um ser com todas as perfeições. A existência é uma forma de perfeição; portanto, Deus tem de existir. Pensar em Deus como não existindo é como pensar num triângulo sem três lados. Assim como possuir três lados está no conceito de triangularidade, existência está no conceito de Deus. Se compreendemos bem a ideia de Deus, temos de aceitar que Deus existe.
O engano, nota Descartes, é uma forma de imperfeição e, por isso, conclui que Deus não pode ser enganador. Logo, podemos confiar nas nossas percepções claras e distintas; não somos sistematicamente enganados e a verdade tem de estar ao alcance das nossas capacidades. Reconstruir um sistema de crenças enraízado na percepção clara e distinta é a tarefa [seguinte].
Muitos notaram nesta linha de argumento um círculo demasiado fechado. Chegamos ao conhecimento de que Deus existe e não é enganador apenas porque aceitámos uma série de percepções claras e distintas. Sabemos que as nossas percepções claras e distintas são fiáveis porque Deus existe e não é enganador. Mas não depende a nossa fé nas percepções claras e distintas da prova de que Deus existe e não pressupõe essa prova a veracidade das nossas percepções claras e distintas?
O problema (…) é o de que o conhecimento parece ser uma coisa frágil. Descartes tem certamente sucesso na parte negativa do seu projecto, arrasando os fundamentos do conhecimento com os argumentos cépticos (…). No entanto, o seu esforço para erguer tudo a partir do nada constitui uma espécie de falhanço. Mas o seu objectivo principal, o de mostrar que uma compreensão científica do mundo é possível é algo que nós, modernos, tomamos como adquirido demasiado facilmente.

James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books. London & New York: Continuum, 2006.
Trad. Carlos Marques.