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quarta-feira, abril 30, 2025

Sobre a unidade social




 Elliott Erwitt, Paris, 1949

Ora, as relações sociais entre seres humanos, excepto no caso do senhor e do escravo, são manifestamente impossíveis sobre qualquer outra base que não a da obrigatoriedade de consultar os interesses de todos. A associação entre iguais só pode existir baseada no entendimento de que os interesses de todos têm de ser encarados de modo igual. E uma vez que, em todos os estados de civilização, cada pessoa, com excepção de um monarca absoluto, tem iguais, todos são obrigados a viver com alguém de acordo com estas condições; e em cada época é feito um avanço rumo a um estado no qual será impossível viver permanentemente de acordo com outras condições com quem quer que seja. Desta forma, as pessoas crescem sendo incapazes de conceber como possível para si mesmas um estado de total menosprezo pelos interesses das outras pessoas. (…)

O fortalecimento dos laços sociais, e todo o crescimento saudável da sociedade, não dá apenas a cada indivíduo um interesse pessoal mais forte na consulta efectiva do bem-estar dos outros; leva-o também a identificar cada vez mais os seus sentimentos com o bem deles ou, pelo menos, com um grau ainda maior de consideração prática por esse bem. Como que por instinto, o indivíduo ganha consciência de si próprio como um ser que obviamente se preocupa co os outros. O bem dos outros torna-se para ele uma coisa à qual se tem de dar atenção, natural e necessariamente, como a qualquer dos estados físicos da nossa existência. (…)

Num estado de aperfeiçoamento da mente humana, as influências que tendem a gerar em cada indivíduo um sentimento de unidade com todos os outros estão em aumento permanente; sentimento que, se perfeito, faria o indivíduo nunca pensar em qualquer condição benéfica para si mesmo, ou desejá-la, caso não estivessem todos incluídos nos seus proveitos. Se agora imaginarmos este sentimento de unidade a ser ensinado como uma religião, e toda a força da educação, das instituições e da opinião, dirigidos, como em tempos aconteceu com a religião, no sentido de fazer cada pessoa crescer, desde a infância, rodeada de todos os lados pela afirmação e pela prática desse sentimento de unidade, penso que ninguém capaz de conceber essa ideia sentirá qualquer dúvida quanto à importância da aprovação última para a moral da felicidade.

John Stuart Mill, O Utilitarismo(1871), Lx, Gradiva (2005), pp.84,85,86

quarta-feira, março 26, 2025

Fundamentação da metafísica dos costumes

 


Elliot Hooker

Um homem, vê-se forçado pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não poderá devolvê-lo, mas percebe melhor ainda que ninguém lho emprestará se não se comprometer a saldar a dívida ao fim de um determinado período. Sente-se tentado a fazer essa promessa; mas tem também consciência suficiente para perguntar a si próprio: “ Não será proibido, não será contrário ao dever sair de apuros por este meio? “. Suponhamos que, apesar de tudo, ele opte por esta via; a máxima da sua ação teria este significado: “ Quando estiver com dificuldades de dinheiro peço-o emprestado e prometo devolvê-lo, embora saiba que nunca o farei.” Ora é muito possível que este princípio do amor a si próprio, ou da utilidade pessoal, se concilie com tudo o que venha a ser o meu bem estar futuro; mas de momento a questão está em tentar saber se é um princípio justo. Converto pois a exigência do amor a si mesmo, numa lei universal e ponho-me a questão seguinte: “ Que sucederia se a minha máxima se tornasse uma lei Universal?”.Rapidamente constato que ela nunca poderia ter o valor de uma lei universal da natureza e permanecer em concordância consigo mesma, mas que pelo contrario deveria necessariamente contradizer-se. Pois admitir como uma lei universal que qualquer pessoa que pense esar em dificuldades possa prometer seja lá o que for que lhe ocorra, com a firme intenção de não cumprir essa promessa, seria de facto tornar impossível o prometer, qualquer que fosse a finalidade que nos propuséssemos, visto que ninguém acreditaria no prometido, e que toda a gente riria de tais demonstrações como se de vãos enganos se tratasse."

Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa Editora, p.93

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

É suficiente ter boas razões para agir bem? Não me parece.

 



Fotografia: Vivian Maier, Nova Iorque, 1953

Qual é a natureza dos juízos morais?

Será que está garantida a sua objetividade?

Hume enfatizou que se examinarmos ações más – «assassínio premeditado», por exemplo – não encontraremos «matéria de facto» que corresponda à maldade. O universo, separado das nossas atitudes, não contém tais factos. Esta tomada de consciência tem muitas vezes sido vista como causa de desespero porque as pessoas assumem que isso tem de significar que os valores não possuem um estatuto «objetivo». Mas porque é que a observação de Hume nos surpreende? Os valores não são o tipo de coisas que podem existir do modo como existem estrelas e planetas. (O que é que poderia ser um valor concebido dessa maneira?) Um erro básico, que muitas pessoas cometem quando pensam sobre este assunto, é assumir apenas duas possibilidades:

1. Há factos morais, do mesmo modo que há factos acerca de estrelas e planetas; ou

2. Os nossos valores não são mais do que a expressão dos nossos sentimentos subjetivos.

Isto é um erro porque ignora uma crucial terceira possibilidade. As pessoas não têm apenas sentimentos, mas também têm razão, e isso faz uma grande diferença.

Pode acontecer que:

3. As verdades morais são verdades da razão; isto é, um juízo moral é verdadeiro se apoiado em melhores razões do que os juízos alternativos.

Deste modo, se quisermos compreender a natureza da ética, temos de nos focar em razões. Uma verdade ética é uma conclusão que é apoiada em razões: a resposta correta a uma questão moral é simplesmente aquela resposta que tem o peso da razão do seu lado. Tais verdades são objetivas no sentido em que são verdades independentemente do que nós possamos querer ou pensar. Não podemos fazer com que algo seja bom ou mau apenas porque queremos que assim seja, porque não podemos meramente desejar que o peso da razão esteja de um lado ou do lado contrário. E isto também explica a nossa falibilidade: podemos estar errados acerca do que a razão recomenda. A razão diz o que diz, independentemente das nossas opiniões ou desejos.

James Rachels, Elementos de Uma Filosofia Moral, Gradiva, 2004, p. 41

quarta-feira, fevereiro 28, 2024

Sobre não mentir

 



Foto: Kultur Tava,

Ora a primeira questão é se o homem, nos casos em que não se pode esquivar à resposta com sim ou não, terá a faculdade (o direito) de ser inverídico. A segunda questão é se ele não estará obrigado, numa certa declaração a que o força uma pressão injusta, a ser inverídico a fim de prevenir um crime que o ameaça a si ou a outrem. A veracidade nas declarações, que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação seja a quem for2 , por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se não cometo uma injustiça contra quem me força injustamente a uma declaração, se a falsificar, cometo em geral, mediante tal falsificação, que também se pode chamar mentira (embora não no sentido dos juristas), uma injustiça na parte mais essencial do Direito: isto é, faço, tanto quanto de mim depende, que as declarações não tenham em geral crédito algum, por conseguinte, também que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a sua força – o que é uma injustiça causada à humanidade em geral.

Por conseguinte, a mentira define-se como uma declaração intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não é preciso acrescentar que ela deve prejudicar outrem, como exigem os juristas para a sua definição [mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius] 3 . Efectivamente ela, ao inutilizar a fonte do direito, prejudica sempre outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas a humanidade em geral. Mas a mentira bem intencionada pode também, por um acaso (casus), ser passível de penalidade, segundo as leis civis. Porém, o que apenas por acaso se subtrai à punição pode igualmente julgar-se como injustiça, segundo leis externas. Se, por exemplo, mediante uma mentira, a alguém ainda agora mesmo tomado de fúria assassina, o impediste de agir és responsável, do ponto de vista jurídico, de todas as consequências que daí possam surgir. Mas se te ativeres fortemente à verdade, a justiça pública nada em contrário pode contra ti, por mais imprevistas que sejam as consequências. É, pois, possível que, após teres honestamente respondido com um sim à pergunta do assassino sobre a presença em tua casa da pessoa por ele perseguida, esta se tenha ido embora sem ser notada, furtando-se assim ao golpe do assassino e que, portanto, o crime não tenha ocorrido; mas se tivesses mentido e dito que ela não estava em casa e tivesse realmente saído (embora sem teu conhecimento) e, em seguida, o assassino a encontrasse a fugir e levasse a cabo a sua ação, poderias com razão ser acusado como autor da sua morte, pois se tivesses dito a verdade, tal como bem a conhecias, talvez o assassino, ao procurar em casa o seu inimigo, fosse preso pelos vizinhos que acorreram, e ter-se-ia impedido o crime. Quem, pois, mente, por mais bondosa que possa ser a sua disposição, deve responder pelas consequências, mesmo perante um tribunal civil, e por ela se penitenciar, por mais imprevistas que essas consequências possam também ser; porque a veracidade é um dever que tem de se considerar como a base de todos os deveres a fundar num contrato e cuja lei, quando se lhe permite a mínima excepção, se toma vacilante e inútil. Ser verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento sagrado da razão que ordena incondicionalmente e não é limitado por quaisquer conveniências.

Immanuel Kant, Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade,

Tradução de Artur Morão

 

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Não há falta de normas

 


Diego-Herrera, Igreja destruída em Yasnohorodka perto de Kiev, March-2022,


A diferença entre o âmbito moral, jurídico e religioso

Porque falamos em “normas” para nos referimos à Moralidade, podemos confundir-nos com as normas jurídicas e religiosas. Um código de normas pode-se inscrever nesses três âmbitos. Nós podemos pensar: “Mas todas essas normas não são estabelecidas para que todos as sigam?” Ou ainda: “Não são todas as normas possíveis de transformação em relação ao contexto histórico e social?” Ou então: “Todas essas normas não buscam que todos os indivíduos vivam melhor em sociedade?”

Sim, as normas jurídicas e, algumas normas religiosas, possuem aspetos em comum com as normas morais, como, por exemplo, o aspeto prescritivo. Mas há distinções importantes. Vejamos algumas delas:

a) As normas morais têm o sentido de uma obrigação interna, ou seja, fundada na razão; as jurídicas de uma obrigação externa fundada nas leis; as religiosas têm o sentido de uma obrigação externa fundada na divindade, expressa por algum livro sagrado ou pelas autoridades religiosas;

b) As normas morais são estabelecidas pela consciência pessoal de cada indivíduo; as normas jurídicas são estabelecidas por organismos legislativos do Estado; as normas religiosas são estabelecidas pelos intérpretes da doutrina professada, tendo relação tanto com o livro sagrado (se houver para a determinada religião) quanto com a tradição;

c) As normas morais têm uma condição universalizável, ou seja, abrangem diversos aspetos da vida humana, por isso também não possuem um código formal. As normas jurídicas referem-se a questões específicas e geralmente, pela sua ligação com o Estado, afetam um território delimitado. As normas religiosas referem-se a princípios compartilhados por um grupo de pessoas, que não têm relação ao território, pois pessoas de países diferentes podem professar o mesmo credo. No entanto, as normas morais são independentes da expressão religiosa, sem que isso signifique que sejam opostas.

CORTINA, Adela; MARTINEZ, Emílio. Ética. Ediciones Akal. Espanha, 2001.

quinta-feira, novembro 02, 2023

A obrigação de ajudar


 Síria 2014

Suponhamos que me apercebo de que uma criança caiu a um lago e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama entre outros inconvenientes; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê lo. […] Se este princípio fosse levado a sério e orientasse as nossas ações, a nossa vida e o nosso mundo sofreriam uma transformação radical. Porque o princípio aplica-se não apenas às raras situações em que alguém pode salvar uma criança de morrer afogada num lago, mas à situação quotidiana em que podemos ajudar quem vive na pobreza absoluta. Ao dizer isto, parto do princípio de que a pobreza absoluta, com fome e subnutrição, falta de abrigo, analfabetismo, doença, mortalidade infantil elevada e curta esperança de vida, é uma coisa má. E parto do princípio de que está ao alcance dos ricos minorar a pobreza absoluta sem sacrificar nada de importância moral comparável. Se estes dois pressupostos e o princípio que discutimos estão corretos, temos a obrigação de ajudar quem vive na pobreza absoluta, obrigação que não é menor que a nossa obrigação de salvar uma criança de se afogar num lago. Não ajudar seria um mal, seja ou não intrinsecamente equivalente a matar. Ajudar não é, como se pensa habitualmente, um ato de caridade digno de elogio, mas que não é um mal omitir; é algo que todos deviam fazer.


Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, pp. 250 -251


sexta-feira, fevereiro 24, 2023

A refexão moral exige um interlocutor

 


Pierre-Auguste Renoir, O almoço dos barqueiros (1881), França


“Podemos começar por observar como a reflexão moral surge naturalmente de um encontro com uma questão moral difícil. Podemos partir de uma opinião ou convicção sobre o que é certo fazer: “Desviar o elétrico para outra linha.” Depois refletimos na razão da nossa convicção e procuramos o princípio em que se baseia: “É melhor sacrificar uma vida para evitar que muitos morram”. De seguida, confrontados com uma situação que ameaça o princípio, somos atirados para a confusão: “Pensei que era sempre certo salvar o maior número de vidas possível, mas parece-me errado empurrar o homem da ponte (…)”. Sentir a força desta confusão, bem como a pressão para resolvê-la, é o impulso para a filosofia.

Confrontados com esta tensão, podemos rever o nosso juízo sobre o que é certo fazer ou repensar o princípio que propusemos inicialmente. À medida que vamos encontrando novas situações, movimentamo-nos entre os nossos juízos e os nossos princípios, revendo os primeiros à luz dos segundos e vice-versa. A reflexão moral consiste neste movimento do pensamento: ir do mundo da ação para a esfera das razões, e depois regressar ao primeiro.

Esta forma de conceber a argumentação moral, como uma dialética entre os nossos juízos sobre situações particulares, e os princípios que afirmamos refletidamente, tem uma grande tradição. Recua aos diálogos de Sócrates e à filosofia moral de Aristóteles. Mas, apesar da sua longa linhagem, está sujeita à seguinte objeção: Se a reflexão moral consiste em procurar um ajuste entre os juízos que fazemos e os princípios que afirmamos, como poderá levar-nos à justiça ou à verdade moral? Mesmo que, ao longo da vida, consigamos por as nossas intuições morais de acordo com os princípios que aceitamos, como poderemos confiar que o resultado seja mais que um emaranhado consistente de preconceitos?

A resposta é que a reflexão moral é uma atividade pública, não uma ocupação solitária. Exige um interlocutor: um amigo, um vizinho, um colega, um concidadão. Por vezes o interlocutor pode ser imaginário, como quando discutimos connosco mesmos. Mas não podemos descobrir o significado da justiça ou a melhor forma de viver apenas por introspeção.

Michael J. Sandel, Justiça: o que será certo fazer? Lisboa, Presença, pp. 28-29

domingo, janeiro 08, 2023

Como a perspetiva anula a hierarquia

 


Estátua de Púchkin em Moscovo (1880)


 “ Ao monumento a Púchkin estava ligado um jogo, o meu jogo: encostar ao seu pedestal um boneco de porcelana branca, do tamanho de um mindinho infantil - vendiam-se nas lojas de loiça, quem cresceu em Moscovo no fim do século passado, sabe: havia anões debaixo dos cogumelos, havia crianças sob os guarda-chuvas - , encostar portanto ao pedestal do gigante esta figurinha e, passando o olhar, pouco a pouco, por toda a altura do monumento até que a cabeça ficasse lançada para trás ao máximo, comparar a estatura, (…) O monumento de Púchkin comigo debaixo dele e a figurinha debaixo de mim era a minha primeira lição prática de hierarquia: eu sou um gigante perante a figurinha, mas perante o Púchkin sou eu própria, ou seja uma menina pequena. Mas que crescerá. Para a figurinha, sou a mesma coisa que o monumento de Púchkin para mim. Mas o que será, então, o monumento de Púchkin para a figurinha? E, depois de reflexões dolorosas, surgiu uma repentina luz: é para ela tão grande que, simplesmente, não o vê. Pensa que é uma casa. Ou um trovão. Ora, ela para ele é tão pequena que também não a vê, acabou-se. Pensa ele: é uma pulga. Mas a mim ele vê. Porque sou grande e gorda. E crescerei ainda mais.”

Marina Tsvetaeva, Moscovo 1892/1941

Citada por Maria Stepánova in Memória da memória, Relógio d’Água, 2022, p.79

Este texto causou-me uma forte impressão, talvez por ter duas informações prévias: que a estátua de Púchkin em Moscovo é um monumento gigantesco de 1880, visitado por turistas, imagem de marca de uma certa cultura do esmagamento soviética e, que Tsvetaeva morreu na miséria, porque nem um emprego de lavadora de pratos lhe deram, condenada e excomungada pela ditadura estalinista (uma das filhas morreu de fome, o marido foi fuzilado).  Depois disto, compreendo como não faz sentido a perspetiva do poder, como ela aniquila e branqueia a realidade de modo a retirar-lhe cor e espessura. A surpresa do jogo das hierarquias é mesmo a invisibilidade do pequeno e do grande e, deste modo, a  destruição da verdade da hierarquia. 

terça-feira, março 01, 2022

A moral como respeito pela lei


(…) O dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei. Para o objeto concebido como efeito da ação que me proponho, posso verdadeiramente sentir inclinação, nunca porém respeito, precisamente porque ele é simples efeito, e não a atividade de uma vontade. Do mesmo modo, não posso ter respeito por uma inclinação em geral, seja ela minha ou de outrem; quando muito, posso aprová-la no primeiro caso, no segundo caso talvez até amá-la, isto é, considerá-la como favorável ao meu interesse. Só o que está ligado à minha vontade unicamente como princípio, e nunca como efeito, o que não serve a minha inclinação mas a domina, e ao menos a exclui totalmente da avaliação no ato de decidir, por conseguinte a simples lei por si mesma é que pode ser objeto de respeito, e, portanto, ordem, para mim. Ora, se uma ação cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação e, com ela, todo objeto da vontade," nada resta capaz de determinar a mesma vontade, a não ser objetivamente a lei e subjetivamente um puro respeito a esta lei prática, portanto a máxima (*) de obedecer a essa lei, embora com dano de todas as minhas inclinações". Portanto, o valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera,  nem em qualquer princípio da ação que precise de tirar seu motivo deste efeito esperado. Com efeito, todos estes resultados (contentamento, e até mesmo contribuição para a felicidade alheia) poderiam provir de outras causas; não é necessário para isso a vontade de um ser racional, muito embora somente nesta se possa encontrar o supremo bem, o bem incondicionado. Por isso, a representação da lei em si mesma, que seguramente só tem lugar num ser racional, com a condição de ser esta representação, e não o resultado esperado, o princípio determinado da vontade, eis o que só é capaz de constituir o bem tão excelente que denominamos moral, o qual já se encontra presente na pessoa que age segundo essa ideia, mas que não deve ser esperado somente do efeito da sua ação(**).

 

(*) Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é, o princípio capaz de servir também subjetivamente' de princípio pratico para todos os seres racionais, se a razão tivesse pleno poder sobre a faculdade apetitiva) é a lei prática.

(**) Poderiam objetar-me que, servindo-me do termo respeito, tento apenas refugiar-me num sentimento obscuro, em vez de aclarar a questão por meio de um conceito da razão. Mas, conquanto o respeito seja um sentimento, não é, todavia, sentimento proveniente de influência estranha, mas, sim, pelo contrário, sentimento espontaneamente produzido por um conceito da razão, e por isso mesmo especificamente distinto dos sentimentos da primeira espécie, referentes à inclinação ou ao temor. O que reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito que exprime simplesmente a consciência que tenho da subordinação de minha vontade a uma lei, sem intromissão de outras influências em minha sensibilidade. A determinação imediata da vontade pela lei, e a consciência que tenho dessa determinação, chama-se respeito, de sorte que este deve ser considerado, não como causa da lei, mas como efeito, da mesma sobre o sujeito. Em rigor de expressão o respeito é a representação— de um valor que vai de encontro ao meu amor próprio. Conseguintemente é alguma coisa que não é considerada nem como objeto de inclinação, nem como de temor, se bem que apresente alguma analogia com ambos ao mesmo tempo. O objeto do respeito é pois simplesmente, a lei, lei que nos impomos a nós mesmos, mas que no entanto é necessária em si. Enquanto lei, estamos-lhes sujeitos, sem consultar nosso amor próprio; enquanto imposta por nós a nós mesmos, é consequência de nossa vontade. Do primeiro ponto de vista oferece analogia com o temor; do segundo ponto de vista, tem analogia com a inclinação. O respeito que se sente para com uma pessoa, na realidade não 6 mais do que* o respeito da lei (da honestidade, etc.) de que essa pessoa nos dá exemplo. Do mesmo modo que consideramos um dever cultivar nossos talentos, assim também vemos numa pessoa prendada de talentos como que o exemplo de. uma lei (que ordena que nos exercitemos cm nos assemelhar-nos nela nisto): eis o que constitui o nosso respeito. Tudo quanto se designa interesse moral consiste unicamente no respeito da lei.

 

Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes,(1785), Companhia Editora Nacional, p.9

Tradução de António Pinto de Carvalho, 


terça-feira, fevereiro 15, 2022

Universalidade e reciprocidade; princípios necessários para o valor moral de uma ação.

 

Fotografia de Vivian Maier, EUA, Chicago, 1926/2009

Imagine que uma equipa de exploradores descobre duas tribos exóticas numa região longínqua. Na primeira, a dos Rigiditos, há uma lista muito precisa daquilo que é permitido e daquilo que é proibido (…). A crença comum é que o bem e o mal são noções imutáveis com referências intangíveis. Aqui, não há questões a colocar: a moral repousa sobre a palavra sagrada do Todo-Poderoso. Neste universo, não há outra opção senão submeter-se a todos os mandamentos. Os Regiditos estão tão seguros da sua moral que a tomam por universal: ela deverá ser aplicada a todas as pessoas de todas as tribos, sem restrição.

Na segunda tribo, a dos Relativitos, as regras de bom comportamento não dependem de princípios superiores, (…) mas mais prosaicamente da boa vontade de cada um. Os membros desta tribo falam mais depressa em ética do que em moral, em bom e mau do que em bem e mal. Não existe qualquer lista pormenorizada daquilo que é permitido e daquilo que é proibido, uma vez que nesta matéria as coisas variam em função das pessoas, das épocas e das circunstâncias (…) Aqui, é opinião comum que o bom e o mau são relativos aos desejos de cada um.(…) Contrariamente aos Regiditos, os Relativitos não têm pretensão de universalidade. Tal como acontece com eles, consideram que outras tribos poderão viver segundo diferentes códigos de boa conduta. (…)

Não há dúvida que a moral é um conjunto de valores convencionais (não pode deixar de ser assim), no entanto, devemos agir como se de um conjunto de valores universais absolutos se tratasse, como fica provado com a declaração universal dos Direitos do Homem. É o princípio da universalidade sobejamente conhecido. Uma conduta que não possa ser generalizada não poderá ser uma conduta moral. É isso que se passa com a mentira: não podemos desejar que ela seja universal, não podendo, portanto, ser moral, jamais poderíamos transformá-la em “lei geral”.(…) Trata-se muito simplesmente de preservar a possibilidade de comunicar comos nossos semelhantes.

Todavia há situações em que a mentira é um ato moral, para não dizermos heroico. Por exemplo, uma pessoa, durante a Segunda Guerra Mundial, que nega abrigar um evadido quando a Gestapo lhe bate à porta. Neste caso, o respeito cego do princípio da universalidade, na medida em que ele conduz à denúncia, constitui um mal maior do que a violação (ocasional) desse princípio. Um outro princípio permite compreender este ponto, é o da reciprocidade: não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti, ou, para utilizar uma fórmula mais técnica e menos utilitarista, trata sempre a Humanidade (na tua pessoa como em qualquer outra) como um fim. Sublinhe-se que este princípio não passa de uma implicação lógica do princípio da universalidade, que o engloba.  Princípios destes fazem com que possamos agir moralmente, ou seja, em virtude da nossa ideia de bem, com conhecimento de causa.

Estes dois princípios, o princípio da universalidade e o princípio da reciprocidade, não são obviamente suficientes para resolver a questão moral e separar sistematicamente o bem do mal. Mas permitem, pelo menos, duas coisas. Por um lado, permitem evitar que a moral se confunda com os interditos caprichosos e risíveis de alguns autocratas (por perversidade essas pessoas interditam tudo o que diz respeito ao prazer e o mesmo é dizer, ao bem). Por outro, permitem constituir uma terceira via entre uma moral absoluta caída do céu (ilusão da transcendência) e uma moral puramente local, ligada aos costumes e usos de uma qualquer tribo humana.

Stéphane Ferret, Aprender com as coisas, Lx, 2007, Ed. ASA, p.97 a 101

domingo, setembro 19, 2021

A civilidade ou como começar o novo ano.




A civilidade é uma questão de costumes, etiqueta, urbanidade, ritos informais que facilitam as nossas interacções e, dessa forma, nos fornecem modos de nos tratarmos mutuamente com consideração.Cria espaço social e psicológico para as pessoas viverem as suas vidas e fazerem as suas escolhas. Os jovens que cospem para o passeio e praguejam nos autocarros revelam sintomas meramente superficiais de incivilidade. Mais grave é a violação da privacidade por parte dos jornais sensacionalistas e as incursões em áreas da vida pessoal irrelevantes para as questões públicas - por exemplo, revelações acerca da vida sexual dos políticos. A nossa época é, efectivamente, moralista. Nauseantemente moralista. E isso constitui grande parte do problema, uma vez que as atitudes moralistas são intolerantes, e a intolerância é uma das piores descortesias. Exigir a cortesia é, de certa forma, exigir muito pouco: "Devemos ser corteses com um homem da mesma forma  como o somos com um quadro, ao qual estamos dispostos a conceder o benefício de uma boa luz", dizia Emerson.
A perda de civilidade significa que o sentimento social foi substituído pela defensiva, com os grupos a reunir-se em torno de conceitos de identidade nacionalista, étnica e religiosa, erigindo barreiras contra os outros e, assim protegendo-se a si mesmos. A sociedade fragmenta-se em subgrupos cujos membros esperam assim escudar-se do egoísmo e desconsideração cáusticos dos outros.
"Há uma cortesia do coração que possui um carácter semelhante ao amor. Dela nasce a cortesia mais pura, no comportamento exterior", disse Goethe (...) a civilidade promove uma sociedade que se comporta bem em relação a si mesma, cujos membros respeitam o valor intrínseco do indivíduo e os direitos das pessoas diferentes de si.

A.C. Grayling, O Significado das coisas, Gradiva,Lx, 2002, pp.28,29

sábado, maio 09, 2020

Antígona, um conflito não superável




Benjamin-Constant,1845/1902, Antígona

" CORO: Há coisas prodígiosas, mas nenhuma como o homem. Ele, que ajudado pelo tempestuoso vento sul, chega ao outro extremo do espumante mar, atravessando-o, apesar das ondas que rugem descomunais; ele, que fatiga a sublime, divina e inesgotável terra, com o vaivém do arado puxado por mulas e, ano atrás de ano, a vai sulcando; ele, que com armadilhas, captura os inocentes pássaros e aprisiona os animais selvagens, e, com as malhas de entrelaçadas redes, colhe os peixes que vivem no mar; o engenhoso homem que, com a habilidade, domina o selvagem animal montês; que sabe subjugar o cavalo de abundantes crinas e o infatigável touro da serra; o homem que, por si próprio, aprendeu a falar e tem pensamentos rápidos como o vento, e criou em si um carácter que regula a vida em sociedade, e aprendeu a fugir das implacáveis intempéries, com seus dardos de chuva e de neve; o homem que possui recursos para todos os males, pois, sem recursos, não se aventuraria a encarar o futuro; apesar de tudo isto, não conseguiu evitar a morte, embora arranjasse formas de combater as enfermidades inevitáveis. Quanto ao seu poder inventivo, logrou conhecimentos técnicos que superam o inesperado; mas algumas vezes os encaminha para o mal e, outras vezes, para o bem.
Se respeita os usos e costumes locais e a justiça confirmada por divinos juramentos, consegue chegar ao cimo da cidadania;  mas o que ousadamente se deleita no erro, perde os direitos de cidadão; esse não poderá sentar-se à minha mesa, pois, quem assim procede, não pensa como eu. (...)

CREONTE: -Mas tu, dize-me sem rodeios; sabias que te era vedado, por um édito, fazer o que fizeste?
ANTÍGONA - Sim, sabia-o bem. Como poderia ignorá-lo se toda a gente o sabe?
CREONTE - E, apesar disso,atraveste-te a passar por cima da lei?
ANTÍGONA - Não foi Zeus que ditou esse decreto; nem Dice companheira dos deuses subterrâneos, estabeleceu tais leis para os homens. E não creio que os teus decretos tenham tanto poder que permitam a alguém saltar por cima das leis, não escritas mas imutáveis, dos deuses; a sua vigência não é nem de hoje nem de ontem, mas de sempre e ninguém sabe como e quando apareceram. Não iria atrair o castigo dos deuses, por medo das determinações dos mortais; só via na minha frente o morto, sem cuidar do que decretaste. E, se morrer agora, lucrarei com isso, pois quem, como eu, vive entre tantos males, ganha com a morte. Só encaro como desgraça ficar insepulto um filho de minha mãe e eu consentir: isso sim! é que me seria doloroso. Pode parecer-te que procedi como uma louca, mas é quase a um louco que dou conta da minha loucura."

Terá o homem, considerado nos seus direitos indivíduais  enquanto ser ético, ter razão quando transgride a lei do estado? Poderemos confiar na resposta política que ANTÍGONA usa como recurso forte contra CREONTE, que não são os humanos que podem decidir o que é justo ou injusto mas há uma lei ancestral que está acima da lei humana? Teremos de obedecer à lei do estado quando este é governado por um tirano? Quando a lei dos homensnão reconhece a lei ancestral e a pisa?  A questão continua a ser actual e reporta-nos para a questão deontológica. A qual lei deve ater-se a ação? Poderá a atitude de ANTÍGONA ter valor moral? Nada na personagem evoca a moral, evoca leis antigas, leis divinas, leis familiares, leis de sangue. Antígona resume-as na célebre resposta a CREONTE: "Não nasci para odiar mas para amar". O conflito de ANTÍGONA não é um conflito moral é uma questão de fidelidade aos que ama, poderemos modernizá-lo como um dilema moral que a personagem não tem, nenhuma das personagens tem conflito com a sua consciência moral, não estão psicologicamente divididos, a peça representa a condição do homem e a inevitabilidade trágica dessa condição. Neste aspeto, não há dilemas morais, embora nós o possamos entender como tal ao avaliarmos a situação para lhe tentar encontrar uma solução que ela não tem, nem terá. HS

Sófocles, Antígona, Tradução,António Manuel Couto Viana, pág.21,Verbo,s.d

domingo, abril 21, 2019

Que a liberdade resulta de entender a necessidade das coisas.



Théodore Géricault (1791–1824). Jangada de Medusa

ESCÓLIO
É que, deve notar-se, em primeiro lugar, que é em  virtude de um só e mesmo apetite que o homem se diz tanto agir como sofrer. Por exemplo, quando nós demonstramos que a natureza humana é constituída de tal maneira que cada um deseja que os outros vivam à sua maneira
Este apetite, num homem que não é conduzido pela Razão, é paixão, que se chama ambição e não difere muito do orgulho; e, ao contrário, num homem que vive segundo o ditame da Razão, é ação, ou seja, virtude, que se chama piedade
E, desta maneira, todos os apetites, ou seja, os desejos, só são paixões, na medida em que nascem de ideias adequadas. Com efeito, todos os desejos, pelos quais somos determinados a fazer alguma coisa, tanto podem nascer de ideias adequadas como de ideias inadequadas
E (para voltar ao ponto donde me desviei nesta digressão) não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa do nosso poder mais excelente para as afeções do que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento delas, visto que a alma não tem outro poder que não seja o de pensar e de formar ideias adequadas, como demonstramos atrás

PROPOSIÇÃO V

 A afeção relativa a uma coisa que nós imaginamos simplesmente e não como necessária, nem como possível, nem como contingente, em igualdade de circunstâncias, é a maior de todas.

 DEMONSTRAÇÃO  A afeção para com uma coisa, que nós imaginamos ser livre, é maior que relativamente a uma coisa necessária e, consequentemente, é ainda maior do que relativamente àquela coisa que imaginamos como possível ou contingente.
Ora, imaginarmos alguma coisa como livre não pode ser outra coisa que imaginarmos a coisa simplesmente, enquanto ignorarmos as causas por que ela foi determinada a agir
Logo, a afeção relativa a uma coisa que imaginamos simplesmente em igualdade de circunstâncias é maior que relativamente a uma coisa necessária, possível, ou contingente e, consequentemente, é a maior.

PROPOSIÇÃO VI

 Na medida em que a alma conhece as coisas como necessárias, tem maior poder sobre as afeções, por outras  palavras, sofre menos por parte delas.

DEMONSTRAÇÃO
A alma compreende que todas as coisas são necessárias e que são determinadas a existir e a operar por um encadeamento infinito de causas e, por conseguinte, nessa mesma medida, consegue sofrer menos por parte das afeções que nascem destas coisas e é menos afetada relativamente a elas.

ESCÓLIO

Quanto mais este conhecimento, a saber: que as coisas são necessária s, versa acerca das coisas singulares que nós imaginamos mais distinta e mais vivamente, tanto maior é este poder da alma sobre as afeções, o que a própria experiência também atesta. Vemos, com efeito, que a tristeza proveniente de um bem que pereceu é mitigada no momento em que o homem, que o perdeu, considera que ele de forma nenhuma podia ser conservado. Da mesma maneira, ainda, vemos que ninguém tem pena de uma criança por ela não saber falar, caminhar, raciocinar e, finalmente, por viver tantos anos quase sem consciência de si. Mas, se a maior parte dos homens nascesse adulta e só um ou outro criança, então cada um teria pena das crianças. É que, neste caso, consideraria a infância não como coisa natural e necessária, mas como um vício ou falta da Natureza. Poderíamos, ainda, fazer várias observações desta espécie.


 
Bento de Espinosa, Ética, Tradução de Joaquim Carvalho, Lx, Relógio D´Agua,  1992, p.450,451

sexta-feira, julho 27, 2018

Sobre a piedade




Ara Guler, Istambul, 1951

A misericórdia pelos animais tem o mesmo princípio da piedade dos homens. Ambos nascem dessa dor quase irrefletida, orgânica, produzida em nós pela visão ou memória do sofrimento de outro ser sensível. Se uma criança está acostumada a ver os animais sofrer com indiferença ou mesmo prazer, o germe da sensibilidade natural, o primeiro princípio ativo de toda a moralidade, é destruído e, mesmo no que diz respeito aos homens, é destruída neles toda virtude,  sem a qual não são mais do que um cálculo de interesses, uma combinação fria da razão. Não vamos sufocar esse sentimento ao nascer; vamos mantê-lo como uma planta fraca ainda, que num instante pode murchar e secar para sempre. Não nos esqueçamos especialmente de que, no homem ocupado com trabalhos grosseiros que entorpecem a sua sensibilidade e o trazem de volta aos sentimentos pessoais, o hábito da dureza produz essa disposição para a ferocidade que é o maior inimigo das virtudes e da liberdade do povo, a única desculpa dos tiranos, o único pretexto ilusório de todas as leis desiguais. Façamos com que as pessoas sejam sensatas e doces, para que não tenham medo de ver o poder residir nas suas mãos; e para que não nos arrependamos de tê-lo restabelecido em todos os seus direitos, vamos dar-lhes aquela humanidade que, sozinha, pode ensiná-los a exercê-lo com uma generosa moderação. O homem compassivo não precisa ser iluminado para ser bom, e a razão mais simples basta para ele ser virtuoso. No homem insensível, pelo contrário, uma bondade fraca supõe uma grande iluminação, e ele não pode tornar-se virtuoso sem o apoio de uma filosofia profunda, ou daquele entusiasmo inspirado por certos preconceitos; um entusiasmo sempre perigoso, porque estabelece como virtude qualquer crime útil aos interesses dos enganadores cujos preconceitos fundaram o poder.

Condorcet, Cinq mémoires sur l’instruction publique (1791)   p. 59
Tradução Helena Serrão

terça-feira, maio 01, 2018

A questão de saber que normas morais devem reger as sociedades multiculturais.


Paul D'Amato, EUA, 1989

Durante muito tempo os EUA foram conhecidos como um Melting Pot, querendo com isso dizer-se que havia lugar para todos viessem donde viessem, que todos eram bem recebidos e que a pouco e pouco as diferenças culturais se iriam esbatendo a favor da «nova realidade cultural». Muitos americanos ainda acarinham essa ideia mas para muitos outros ela é uma ilusão e até um insulto. (…) Hodiernamente, mesmo entrea queles que pertencem à cultura dominante existe a consciência de que esta situação causa danos ao conceito de cultura americana. A questão é o que fazer para a resolver. Alguns defensores do multiculturalismo (teoria que advoga a necessidade de assegurar representação no espaço público – universidades, meios de comunicação, política – aos diversos grupos culturais) propõem que devemos começar por nos ouvir uns aos outros. A esta versão do multiculturalismo chamarei multiculturalismo inclusivo.

Mais tolerância e compreensão entre os vários grupos culturais é o que  parece pretender-se, maior igualdade de oportunidades e um trabalho conjunto que combata a ideia de que uma tradição cultural domina o país e aqueles que não a partilham deve ser marginalizados. Este trabalho deve começar nas escolas onde as crianças devem aprender o máximo possível sobre as heranças culturais do maior número possível de grupos étnicos e sociais. (…)Muitos dos proponentes do multiculturalismo adotam o relativismo moral. Contudo, para surpresa de alguns, o relativismo não garante necessariamente o multiculturalismo.

O relativismo ético afirma que não há um código moral universal –que cada cultura escolhe o que é correto para si e nenhuma outra cultura tem o direito de interferir. Esta ideia,  ainda que com várias limitações, pode funcionar quando as culturas estão separadas e isoladas porque nesse caso o código moral é definido como o código da população dominante. Porém, numa sociedade pluralista como a americana, é difícil funcionar porque a cultura dominante (a sociedade branca) é cada vez mais acusada de insensibilidade à diversidade cultural. Pode o relativismo moral funcionar num país em que nos deparamos frequentemente com valores opostos (Roubar é errado e Roubar é moralmente correto para os desfavorecidos) no mesmo bairro? Dado que o relativismo exige que rejeitemos a ideia de um padrão cultural dominante, alguns poderão optar por uma atitude de niilismo moral: nenhum valor é melhor do que outro dado que nenhum valor é objetivamente correcto. Tal niilismo pode conduzir à desagregação do todo social e, possivelmente, a uma maior coesão no interior de cada grupo cultural, acentuando-se o conflito entre eles. Podemos descrever este conflito como balkanização: os grupos culturais têm pouco ou nada em comum exceto o ódio pelo que outros grupos representam. Parece que o relativismo moral não é a resposta aos novos problemas do multiculturalismo.



 E se procurarmos a resposta no universalismo moderado? Se formos universalistas moderados o que podemos esperar? O acordo com os outros grupos acerca de certas questões, mas não em todas as questões. No caso do multiculturalismo podemos concordar com a promoção da igualdade, da tolerância e da coesão da nação. Se não chegarmos a um cordo nisto, o multiculturalismo (inclusivo) é uma causa perdida, assim como a ideia de Estados Unidos. Segundo o universalismo moderado – proposto entre outros por Rachels não podemos permitir uma diferença acentuada nos valores e princípios que regem a convivência social. Não podemos admitir que matar membros de uma família por uma questão de honra seja inaceitável num bairro e aceitável noutro. O problema da possibilidade de um núcleo de valores comuns no interior de uma sociedade multicultural é particularmente urgente e escaldante. Sem valores comuns muito simplesmente não há sociedade.



Nina Rosenstand, The Moral of the Story – An introduction to questions of ethics and human nature,(1993),

Mayfield,pp 80-81(Traduzido e adaptado por Joana Inês Pontes)


sexta-feira, abril 20, 2018

A visão ética tende a procurar o universal



David Seymour, 1911/1956  Varsóvia
“O que significa emitir um juízo moral, discutir uma questão ética ou viver de acordo com padrões éticos? Como diferem os juízos morais de outros juízos práticos? Por que razão achamos que a decisão de uma mulher de fazer um aborto levanta uma questão ética, o mesmo não acontecendo com a sua decisão de mudar de emprego? Qual é a diferença entre uma pessoa que vive de acordo com padrões éticos e outra que não procede assim?

(…) quem segue convicções éticas não convencionais vive, mesmo assim, de acordo com padrões éticos, *se pensar, por qualquer motivo, que o que faz é um bem*. A condição em itálico dá-nos uma pista para a resposta que procuramos. A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar. Assim, uma pessoa pode fazer todo o tipo de coisas que consideramos um mal e, mesmo assim, continuar a viver de acordo com padrões éticos, se for capaz de defender e justificar o que faz. Podemos achar a justificação pouco adequada e continuar a pensar que as ações são um mal, mas a tentativa de justificação, bem sucedida ou não, é suficiente para trazer o comportamento dessa pessoa para o domínio do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado, uma pessoa não consegue encontrar uma justificação para aquilo que faz, podemos rejeitar a sua pretensão de que vive de acordo com padrões éticos, mesmo que aquilo que faz respeite princípios morais convencionais. Podemos ir mais longe. Se aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. Quando Macbeth, contemplando o assassínio de Duncan, admite que apenas a "ambição desmedida" o leva a cometê-lo, está a admitir que a ação não pode justificar-se eticamente. "Para eu poder ser rei em seu lugar" não é uma tentativa frágil de justificação ética para o assassínio; não é o tipo de razão que conta como justificação ética. É necessário mostrar que as ações motivadas pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base mais ampla para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios que tal comportamento me traz a mim. Tenho de me preocupar com um grupo mais vasto. Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expressado a ideia de que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de alguma forma, universal. A "regra de ouro" atribuída a Moisés, que se encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e "amar o nosso semelhante como a nós mesmos" ou, por outras palavras, atribuir aos interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos. A ideia de nos pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do mandamento, segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles nos fizessem. Os Estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: "Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis universais." A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século __XVIII, apelaram para um "espectador imparcial" imaginário como pedra-de-toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador ideal. Os utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart, consideram axiomático que, ao decidir sobre questões morais, "cada qual vale por um e ninguém por mais de um", enquanto John Rawls, um importante crítico contemporâneo do utilitarismo, incorpora essencialmente o mesmo axioma na sua própria teoria, deduzindo princípios éticos fundamentais de uma escolha imaginária, na qual aqueles que escolhem não sabem se serão beneficiados ou prejudicados pelos princípios que escolhem. Até mesmo filósofos do continente europeu, como o existencialista Jean-Paul Sartre e o especialista em teoria critica Jürgen Habermas, que diferem em muitos aspetos dos seus colegas de expressão inglesa - e também entre si -, concordam que, em certo sentido, a ética é universal.”
Peter Singer, Ética Prática, Prefácio, Gradiva, 1993
Tradução Álvaro Augusto Fernandes