É que, deve notar-se, em primeiro lugar, que é em
virtude de um só e mesmo apetite que o homem se diz tanto agir como
sofrer. Por exemplo, quando nós demonstramos que a natureza humana é
constituída de tal maneira que cada um deseja que os outros vivam à sua maneira
Este apetite, num homem que não é conduzido pela Razão, é
paixão, que se chama ambição e não difere muito do orgulho; e, ao contrário,
num homem que vive segundo o ditame da Razão, é ação, ou seja, virtude, que se
chama piedade
E, desta maneira, todos os apetites, ou seja, os desejos, só
são paixões, na medida em que nascem de ideias adequadas. Com efeito, todos os
desejos, pelos quais somos determinados a fazer alguma coisa, tanto podem
nascer de ideias adequadas como de ideias inadequadas
E (para voltar ao ponto donde me desviei nesta digressão)
não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa do nosso poder mais
excelente para as afeções do que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento
delas, visto que a alma não tem outro poder que não seja o de pensar e de
formar ideias adequadas, como demonstramos atrás
PROPOSIÇÃO V
A afeção relativa a uma coisa que nós imaginamos
simplesmente e não como necessária, nem como possível, nem como contingente, em
igualdade de circunstâncias, é a maior de todas.
DEMONSTRAÇÃO A afeção para com uma coisa, que
nós imaginamos ser livre, é maior que relativamente a uma coisa necessária e,
consequentemente, é ainda maior do que relativamente àquela coisa que
imaginamos como possível ou contingente.
Ora, imaginarmos alguma coisa como livre não pode ser outra
coisa que imaginarmos a coisa simplesmente, enquanto ignorarmos as causas por
que ela foi determinada a agir
Logo, a afeção relativa a uma coisa que imaginamos
simplesmente em igualdade de circunstâncias é maior que relativamente a uma
coisa necessária, possível, ou contingente e, consequentemente, é a maior.
PROPOSIÇÃO VI
Na medida em que a alma conhece as coisas como
necessárias, tem maior poder sobre as afeções, por outras palavras, sofre
menos por parte delas.
DEMONSTRAÇÃO
A alma compreende que todas as coisas são
necessárias e que são determinadas a existir e a operar por um
encadeamento infinito de causas e, por conseguinte, nessa mesma medida, consegue sofrer
menos por parte das afeções que nascem destas coisas e é menos afetada relativamente
a elas.
ESCÓLIO
Quanto mais este conhecimento, a saber: que as coisas são
necessária s, versa acerca das coisas singulares que nós imaginamos mais
distinta e mais vivamente, tanto maior é este poder da alma sobre as afeções, o
que a própria experiência também atesta. Vemos, com efeito, que a tristeza
proveniente de um bem que pereceu é mitigada no momento em que o homem, que o
perdeu, considera que ele de forma nenhuma podia ser conservado. Da mesma
maneira, ainda, vemos que ninguém tem pena de uma criança por ela não saber
falar, caminhar, raciocinar e, finalmente, por viver tantos anos quase sem
consciência de si. Mas, se a maior parte dos homens nascesse adulta e só um ou
outro criança, então cada um teria pena das crianças. É que, neste caso,
consideraria a infância não como coisa natural e necessária, mas como um vício
ou falta da Natureza. Poderíamos, ainda, fazer várias observações desta espécie.
Bento de Espinosa, Ética, Tradução de Joaquim Carvalho, Lx, Relógio D´Agua, 1992, p.450,451
1 comentário:
Foi um texto interessante!
"Que a liberdade resulta de entender a necessidade das coisas."
Que o mundo é o que é e que tudo ocorre porque deveria ocorrer, creio ser verdadeiro. Todavia a comparação suscita dúvida. Dói porque, desde a infância, sentimos antes de saber. E mesmo sabendo, quando adulto, não queriamos sentir. E saber que até o fato de sofremos, podermos sofrer é necessário alivia pouco. Pensar que deveria ter sido como foi parece como não dar valor àquilo que foi perdido. E isso nos parece errado. Continuamos sofrendo mesmo sabendo. A vida é sofrer.
Enviar um comentário