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sexta-feira, dezembro 16, 2022

Agir é modificar a face do mundo,

Mariola Landowska, Meninas II,


" Agir é modificar a face do mundo, é dispor dos meios em vista de um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal modo que, por uma série de encadeamentos e de ligações, a modificação incutida num dos elos produza modificações em toda a série e, por fim, produza um resultado imprevisto. (...) Convém de facto notar que uma ação é, por princípio, intencional. O fumador desastrado que fez explodir inadvertidamente um paiol não agiu. Em contrapartida, o encarregado de dinamitar uma pedreira e que obedeceu às ordens dadas agiu quando provocou a explosão prevista:  sabia na realidade o que fazia ou, se preferirmos,  realizava intencionalmente um projeto consciente. Isto não significa, claro está, que devamos prever todas as consequências dos nossos atos: o imperador Constantino não previa, ao instalar-se em Bizâncio, que iria criar uma cidade de cultura e de língua gregas, cujo aparecimento haveria de provocar um cisma na Igreja cristã e contribuir para enfraquecer o Império romano. No entanto, fez um ato na medida em que realizou o seu projeto de criar uma nova residência no Oriente para os imperadores.

Toda a ação deve ser intencional: ela deve ter um fim e o fim, por seu turno, refere-se a um motivo. Tal é, na realidade, a unidade dos três momentos temporais: o fim ou futuro implica um movimento (ou móbil) que remete ao meu passado e o presente é o surgimento do ato."

Jean - Paul -Sartre, O ser e o nada, São Paulo, Vozes, s.d

sexta-feira, fevereiro 15, 2019

Liberdade como condição de qualquer ação humana.



 Philippe Gras, Maio 1968, Paris

A realidade-humana é livre porque não se basta, porque está perpetuamente desprendida de si mesma, e porque aquilo que foi, está separado por um nada, daquilo que é e daquilo que será. E, por fim, porque o seu próprio ser presente é “nadificação” na forma do "reflexo/refletidor".O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença a si.

O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o nada que é o âmago do homem e obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser. Como vimos, para a realidade humana, ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade de fazer-se ser até ao mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser. Se começássemos por conceber o homem como algo pleno, seria absurdo procurar nele momentos ou regiões psíquicas em que fosse livre: daria no mesmo buscar o vazio em um recipiente que previamente preenchemos até à borda. O homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre livre, ou não o é. Essas observações, se soubermos utilizá-las, podem levar-nos a novas descobertas. Em primeiro lugar, permitirão esclarecer as relações entre a liberdade e o que denominamos "vontade". Uma tendência bastante comum, com efeito, visa assemelhar os atos livres e os atos voluntários, e restringir a explicação determinista ao mundo das paixões. É, em suma, o ponto de vista de Descartes. A vontade cartesiana é livre, mas existem as "paixões da alma". Descartes tentará ainda uma interpretação fisiológica dessas paixões. Mais tarde, buscar-se-á instituir um determinismo puramente psicológico. As análises intelectualistas que um Proust, por exemplo, tentou realizar do ciúme ou do snobismo podem servir de ilustração a esta conceção do "mecanismo" passional. Seria necessário então conceber o homem como simultaneamente livre e determinado; e o problema essencial seria o das relações entre esta liberdade incondicionada e os processos determinados da vida psíquica: de que modo tal liberdade dominará as paixões? Uma sabedoria que vem da Antiguidade, a sabedoria dos estoicos, ensinará a concordar com as próprias paixões para que se possa dominá-las; em suma, irá aconselhar o homem a conduzir-se em relação à afetividade como o faz com respeito à natureza em geral, quando lhe obedece a fim de melhor a controlar. A realidade humana surge, pois, como um livre poder sitiado por um conjunto de processos determinados. Claro está que não poderíamos aceitar semelhante conceção. Mas tentemos compreender melhor as razões da nossa recusa.

(…) a vontade, longe de ser a manifestação única ou pelo menos privilegiada da liberdade, pressupõe, ao contrário, como todo acontecimento do Para-si, o fundamento de uma liberdade originária para poder constituir-se como vontade. A vontade, com efeito, coloca-se como decisão refletida em relação a certos fins. Mas esses fins não são criados por ela. A vontade é sobretudo uma maneira de ser em relação a ela: decreta que a perseguição a esses fins será refletida e deliberada. A paixão pode posicionar os mesmos fins. Por exemplo, frente a uma ameaça, posso fugir correndo, por medo de morrer. Esse fato passional não deixa de posicionar implicitamente como fim supremo o valor da vida. Outra pessoa na mesma situação, ao contrário, achará ser preciso permanecer no mesmo lugar, ainda que a resistência pareça, a princípio, mais perigosa do que a fuga: ele "aguentará firme". Mas o seu objetivo, embora melhor compreendido e explicitamente posicionado, continua o mesmo que no caso da reação emocional. Simplesmente, os meios para alcançá-lo estão mais claramente concebidos, alguns deles são rejeitados como duvidosos ou ineficazes, os demais são organizados com mais solidez. A diferença recai aqui sobre a escolha dos meios e o grau de reflexão e explicação, não sobre o fim. Todavia, aquele que foge é considerado "passional", e reservamos o epíteto de "voluntário" para o homem que resiste. Trata-se, pois, de uma diferença de atitude subjetiva em relação a um fim transcendente. Mas se não quisermos cair no erro que denunciávamos atrás, considerando esses fins transcendentes como pré-humanos e um limite a priori da nossa transcendência, vemo-nos obrigados a reconhecer que são a projeção temporal da nossa liberdade. A realidade humana não poderia receber os seus fins, como vimos, nem de fora nem de uma pretensa "natureza" interior. Ela escolhe-os e, por essa mesma escolha, confere-lhes uma existência transcendente como limite externo dos seus projetos. Desse ponto de vista -e se compreendemos claramente que a existência do ser aqui e agora precede e comanda a sua essência -, a realidade humana, na sua origem , decide definir-se pelos seus fins. Portanto, é o posicionamento dos meus fins últimos que caracteriza o meu ser e este posicionamento dos fins identifica-se como o brotar originário da liberdade que é a minha. E esse brotar é uma existência; nada tem de essência ou propriedade de um ser que fosse engendrado conjuntamente com uma ideia. Assim, a liberdade, sendo assimilável à minha existência, é fundamento dos fins que tentarei alcançar, seja pela vontade, seja por esforços passionais. Não poderia, portanto, limitar-se aos atos voluntários.”


Jean-Paul Sartre, O ser e o nada , p.545,546 e 547, Petrópolis, Vozes 2007 (L’être et le néant, 1943 Gallimard)

quinta-feira, novembro 17, 2016

Estamos condenados a ser livres?

Fotografia: Robert Capa

(…)  o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra "responsabilidade" no sentido corriqueiro de "consciência (de) ser o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto", (...) pois os piores inconvenientes ou as piores ameaças que prometem atingir a minha pessoa só adquirem sentido pelo meu projeto; e elas aparecem sobre o fundo de compromisso que eu sou. Portanto, é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das consequências de nossa liberdade. O que acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia  deixar me afetar por isso, nem  revoltar-me, nem  resignar-me. Além disso, tudo aquilo que me acontece é meu; deve-se entender por isso, em primeiro lugar, que estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um homem por outros homens e por ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais atrozes situações da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano·I não há situação inumanas; é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso a condutas mágicas que irei determinar o inumano, mas esta decisão é humana e tenho de assumir total responsabilidade por ela. Mas, além disso, a situação é minha por ser a imagem da minha livre escolha de mim mesmo, e tudo quanto ela me apresenta é meu, nesse sentido de que me representa e me simboliza. Não serei eu quem determina o coeficiente de adversidade das coisas e até sua imprevisibilidade ao decidir por mim mesmo? Assim, não há acidentes numa vida; uma ocorrência comum que irrompe subitamente e me carrega não provém de fora; se sou mobilizado para a guerra, esta guerra é a minha guerra, é feita à minha imagem e eu mereço-a. Mereço-a, primeiro, porque sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção: esses últimos possíveis são os que devem estar sempre presentes quando se trata de enfrentar uma situação. Por ter deixado. de livrar-me dela eu escolhi-a; pode ser por fraqueza, por covardia frente à opinião pública, porque prefiro certos valores ao valor da própria recusa de entrar na guerra (a estima dos meus parentes, a honra de minha família, etc.). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. Essa escolha será reiterada depois, continuamente, até o fim da guerra; portanto, devemos subscrever as palavras de J. Romains: "Na guerra, não há vítimas inocentes". Portanto, se preferi a guerra à morte ou à desonra, tudo se passa como se eu carreasse inteira responsabilidade por esta guerra. Sem dúvida, outros declararam a guerra, e eu ficaria tentado, talvez, a considerar-me um  simples cúmplice. Mas esta noção de cumplicidade não tem mais do que um sentido jurídico; só que, neste caso, tal sentido não se sustenta, pois de mim dependeu o fato de que esta guerra não viesse a existir para mim e por mim, e eu decidi que ela existisse. Não houve coerção alguma, pois a coerção não poderia ter qualquer domínio sobre uma liberdade; não tenho desculpa alguma, porque, como dissemos e repetimos nesse livro, o próprio da realidade-humana é ser sem desculpa.

Jean- Paul Sartre, O ser e o nada, Ed.Vozes, p.678,679
Tradução de Paulo Perdigão

sexta-feira, abril 04, 2014

Como andei à procura de texto alegre para o início das férias mas, na Filosofia, nada!


(...) Volto a caminhar. O vento traz-me o grito de uma sirene. Estou inteiramente sozinho, mas caminho como a tropa que irrompe numa cidade. Neste momento, há navios ressonantes de música sobre o mar; luzes acendem em todas as cidades da Europa; comunistas e nazis trocam tiros nas ruas de Berlim; desempregados deambulam pelas ruas de Nova York; num quarto aquecido, diante do toucador, mulheres colocam rímel nas pestanas. E eu estou aqui, nessa rua deserta, e cada tiro disparado de uma janela de Neukölln, cada soluço sangrento dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e diminuto das mulheres que se enfeitam corresponde a cada um de meus passos, a cada batida de meu coração (...)

Jean-Paul Sarte, A Náusea

Foto: Marilyn Silverstone, 1929

BOAS FÉRIAS

quinta-feira, dezembro 05, 2013

Sartre:a liberdade

A existência humana é irredutível a qualquer tentativa de explicação objectiva, porque o homem não é uma coisa, não é um objecto, mas um sujeito, uma subjectividade que é constantemente
desafiada a determinar-se livremente.
 É por isso que Sartre defende a liberdade do homem, ou seja, a sua transcendência, em filosofia,
"Transcendência" opõe-se a "imanência"; Isto significa que a lei do objeto é imanente, uma vez que não é nada mais  do que um conjunto de leis físicas que o explicam.
O homem, pelo contrário, não é nada por si só, mas ao contrário, é  movimento de se transcender constantemente a si mesmo, de se  projectar para fora de si, (…)O que significa em francês o Verbo "ex-sister" "existir; sair de si.
 Dizer que o homem é livre, é afirmar que ele não nada "em si" (só a coisa é em si), mas que se define pela forma como existe. A existência é assim o movimento de ultrapassagem, de
negação do dado imediato e do momento presente.


A coisa é o que ela é, enquanto o homem, diz Sartre, não é nada, o que não significa que não existe, mas que existe de um certo modo que consiste em  mover-se sempre para a frente, nunca se contentar com o que tem ou o que é. O homem é projecto,  negação ininterrupta de tudo, a começar por si mesmo (o homem é desejo, isto é,  insatisfação permanente, uma vez que o desejo,
ao contrário da necessidade, nunca encontra objecto à sua medida).


 Conférence-débat avec Philippe FONTAINE,Sèvres, 2008

Tradução de Helena Serrão

Foto: Bruce Gilden

segunda-feira, fevereiro 25, 2013

A Existência é inexplicável.

André kertész, Vert galant ao cair da tarde, 1963

A palavra Absurdidade acabou-me de nascer na caneta; ainda agora, no jardim, não a consegui encontrar, mas também não a procurava, é verdade, não era preciso: pensava sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. A Absurdidade não era uma ideia na minha cabeça, não era um sussurro, mas esta longa serpente morta aos meus pés, esta serpente de madeira. Serpente ou garra ou raiz ou estufa de abutre, não é importante. E sem nada formular com clareza, encontrei a chave da existência, a chave das minhas náuseas, da minha própria vida. De facto tudo o que, em seguida, pudesse apreender conduzia-me de volta a esta absurdidade fundamental.

Absurdidade: uma palavra ainda; debato-me contra as palavras; ali em baixo, toquei a coisa. Mas quero fixar aqui o carácter absoluto desta absurdidade. Um gesto, um acontecimento, no pequeno mundo colorido dos homens, só é absurdo relativamente: em relação às circunstâncias que o acompanham.  Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação em que se encontra mas não em relação ao seu delírio.. Mas eu, ainda há pouco tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo.Esta raíz não há nada em relação ao qual ela não seja absurda. Oh! Como posso eu fixar isto em palavras?

Absurdo: em relação aos calhaus, aos tufos de erva amarela, à boca seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurdo, irredutível; nada – nem mesmo um delírio profundo e secreto da natureza –o pode explicar. Eu não sabia tudo, evidentemente, não vi o germe desenvolver-se nem a árvore brotar. Mas diante essa pata gorda e rugosa, nem o saber nem a ignorância têm importância: o mundo das explicações e das razões não é o mesmo da existência. Um círculo não é absurdo, explica-se muito bem pela rotação de um segmento de recta à volta de uma das suas extremidades. Mas também um círculo não existe. Esta raiz, ao contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la. Nodular, inerte, sem nome, fascinava-me, enchia-me os olhos,  reconduzia-me incessantemente à sua própria existência. Poderia repetir: “ É uma raíz” – não tinha efeito. Via bem que não podia passar da sua função de raiz, de bomba aspirante, a isto, a esta pele dura e compacta de foca. A este aspecto oleoso, calejado e entretelado. A função não explicava nada: permitia compreender grosseiramente o que era uma raiz, mas não esta. Esta raiz, com esta cor, esta forma, o seu movimento de fisga, estava…para lá de toda a explicação.”

 
Tradução helena serrão
 
Jean-Paul Sartre “ La Nausée” gallimard, Barcelona 2009, pp.184, 185
1ª edição 1938

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Radicalismos 6


Jaques Henri Lartigue, Jogo de Ténis, 1921, Paris

Percorro a sala dos olhos. Que farsa! Toda essa gente sentada com um ar sério; comem. Não, não comem: reparam forças para levar a bom termo a tarefa que lhes foi atribuída. Cada um deles tem o seu pequeno entretenimento pessoal que os impede de se aperceberem que existem; não há nem um que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. Não era o Autodidacta que me dizia outro dia: “ Ninguém era mais qualificado que Nouçapié para empreender esta vasta síntese?" Cada um faz a sua pequena coisa e ninguém é mais qualificado do que ele para a fazer. Ninguém mais qualificado que o caixeiro viajante para usar a pasta Swan. Ninguém  mais qualificado do que esse interessante rapaz, para espreitar por debaixo das saias da sua vizinha. E eu, eu estou entre eles, se repararem em mim pensarão que ninguém é mais qualificado que eu para fazer o que faço. Mas eu sei. Não tenho ar de nada, mas sei que existo e eles também existem. Se conhecesse a Arte de persuadir, iria sentar-me perto de um destes senhores de cabelos brancos e explicar-lhe-ia o que é a existência. Ao imaginar a cara que faria, desatei a rir. O Autodidacta olhava-me surpreendido. Gostaria de parar; mas não podia: ri até às lágrimas.
- Está muito feliz, senhor, disse-me o Autodidacta com ar circunspecto.



-É porque penso, disse-lhe a rir, que aqui estamos, iguais ao que somos, a comer e a beber para manter a nossa preciosa existência e, que não há nada, nada, nenhuma razão de existir.


Jean-Paul Sartre, La nausée, Gallimard, 1938,Barcelona, 2009, pp160,161


Tradução Helena Serrão

terça-feira, abril 01, 2008

O existencialismo



A maior parte das pessoas que utilizam este termo ficariam bem embaraçadas se o quisessem justificar [...]
O que torna o caso complicado é que há duas espécies de existencialistas: de um lado há os que são cristãos, e entre eles incluirei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica; e de outro lado, os existencialistas ateus, entre os quais há que incluir Heidegger, os existencialistas franceses e a mim próprio. O que têm de comum é simplesmente o facto de admitirem que a existência precede a essência, ou, se se quiser, que temos de partir da subjectividade.
Que é que em rigor se deve entender por isso?
Consideremos um objecto fabricado, como por exemplo um livro ou um corta-papel: tal objecto foi fabricado por um artífice que se inspirou de um conceito; ele reportou-se ao conceito do corta-papel, e igualmente a uma técnica prévia de produção que faz parte do conceito, e que é no fundo uma receita.
Assim, o corta-papel é ao mesmo tempo um objecto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há-de servir tal objecto. Diremos pois que, para o corta-papel, a essência - quer dizer, o conjunto de receitas e de características que permitem produzi-lo e defini-lo - precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel ou de tal livro está bem determinada. Temos, pois, uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência.
Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre como um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, trate-se duma doutrina como a de Descartes ou a de Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Assim o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exactamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Assim o homem individual realiza um certo conceito que está na inteligência divina.
No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus mas não a ideia de que a essência precede a existência. Tal ideia encontramo-la nós um pouco em todo o lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant. O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal - o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim pois, ainda aí, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define.
O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.
O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjectividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem antes de mais nada é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projectar no futuro.
O homem é antes de mais nada um projecto que se vive subjectivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projecto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de mais o que tiver projectado ser. Não o que ele quiser ser. Porque o que entendemos vulgarmente por querer, é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea do que o que se chama vontade.
Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. [...]
Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos actos um sequer que ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo, é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade. [...]
Antes de mais, que é que se entende por angústia? O existencialista não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. Decerto, há muita gente que não vive em ansiedade; mas é nossa convicção que esses tais disfarçam a sua angústia, que a evitam [...]
E quando se fala de desamparo, expressão querida a Heidegger, queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências. O existencialista opõe-se muito a um certo tipo de moral laica que gostaria de suprimir Deus com o menor dispêndio possível.
Quando à volta de 1880 alguns professores franceses tentaram construir uma moral laica, disseram mais ou menos isto: Deus é uma hipótese inútil e dispendiosa, vamos pois suprimi-la, mas torna-se necessário, para que haja uma moral, uma sociedade, um mundo policiado, que certos valores sejam tomados a sério e considerados como existindo a priori: é preciso que seja obrigado, a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, ter filhos, etc., etc... Vamos pois aplicar-nos a uma pequena tarefa que permita mostrar que estes valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora, no fim de contas, Deus não exista.
Por outras palavras, e é essa, creio eu, a tendência de tudo o que se chama em França o radicalismo - nada será alterado, ainda que Deus não exista; reencontraremos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e, quanto a Deus, teremos feito dele uma hipótese caduca que morrerá em sossego e por si própria. O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens.
Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. [...]
Jean- Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo,

quarta-feira, novembro 21, 2007

Liberdade e humanidade.


Rosângela Rennó, Cicatriz

Descobrimo-nos, pois, num mundo carregado de exigências, no seio de projectos em curso de realização: escrevo, vou fumar, tenho encontro marcado esta noite com o Pedro, não posso esquecer-me de responder a Simão, não tenho o direito de esconder por mais tempo a verdade a Cláudio. Todas estas pequenas expectativas passivas do real, todos estes valores banais e quotidianos tiram o seu sentido, a bem dizer, de um primeiro projecto de mim mesmo que é como que a minha escolha de mim mesmo no mundo.

O homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto modo de ser (...) A responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das consequências da nossa liberdade. O que acontece comigo acontece por mim (...) Além disso, tudo aquilo que me acontece é meu; deve entender-se, por isso, em primeiro lugar, que estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um homem por causa de outros homens e por ele mesmo não pode ser senão humano. As mais atrozes situações de guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano; não há situação inumana (...) A situação é minha por ser a imagem da minha livre escolha de mim mesmo.

Jean Paul Sartre, O ser e o nada (Vozes, S. Paulo,s.d.).

sexta-feira, março 23, 2007

O outro - mediador

Jean Paul Sartre, 1905-1980, França
“ Acabo de fazer um gesto desastrado ou ordinário: (…) Apercebo-me de súbito, de toda a baixeza do meu gesto e tenho vergonha. Claro que a minha vergonha não é reflexiva, pois a presença de outrem à minha consciência, nem que seja à maneira de um catalisador, é incompatível com a atitude reflexiva: no campo da minha reflexão não posso nunca encontrar senão a minha própria consciência. Ora, o outro é o mediador indispensável entre mim e eu próprio: tenho vergonha de mim tal como apareço ao outro. E, pela própria aparição do outro, tenho a possibilidade de fazer um juízo sobre mim como sobre um objecto, pois é como objecto que apareço ao outro. (…) A vergonha é por natureza reconhecimento. Reconheço que sou como o outro me vê.”

Jean Paul Sartre, O ser e o nada