segunda-feira, março 12, 2012


 LEVIATàDE THOMAS HOBBES

O frontespício do Leviatã de Thomas Hobbes é uma das poucas representações pictóricas de uma ideia filosófica. Um homem de grandes proporções, cujo corpo é composto de milhares de pessoas de tamanho menor, ergue-se sobre uma cidade bem ordenada. O pináculo da igreja apequena-se diante deste gigante que usa uma coroa e segura uma espada numa das mãos e um ceptro na outra. É o grande Leviatã, o ‘deus mortal’ descrito por Hobbes. O Leviatã, que aparece no Antigo Testamento como um monstro marinho, é a imagem de Hobbes do poderoso soberano que representa o povo e que é, num certo sentido, a personificação deste: a multidão unida na forma de um gigante criado artificialmente.
No Leviatã, Hobbes diagnostica as causas gerais dos antagonismos e conflitos e identifica a cura. Os argumentos centrais do livro colocam a questão de se saber por que é que é razoável que as pessoas consintam em ser governadas por um soberano poderoso (que pode ser uma figura individual ou uma assembleia). A paz pode unicamente ser atingida se toda a gente aceitar um contrato social. A discussão que Hobbes faz destas questões é central no Leviatã, embora o livro toque em muitos outros tópicos, da psicologia à religião. De facto, mais de metade do Leviatã é dedicada a uma discussão pormenorizada da religião e das escrituras cristãs: a metade que hoje em dia raramente se lê. Concentro-me aqui no tema principal do livro, o contrato celebrado por indivíduos livres pelo qual estes abdicam de parte da sua liberdade em troca de protecção de cada um relativamente aos outros e dos ataques vindos do exterior. Hobbes começa a sua versão deste contrato por uma análise do que seria a vida no caso de não existirem sociedade e comunidade política.

O estado de natureza
Em vez de descrever sociedades existentes, Hobbes decompõe a sociedade nos seus elementos mais básicos: os indivíduos que lutam pela sua sobrevivência num mundo de recursos limitados. Convida o leitor a imaginar as condições de vida num estado de natureza, a situação em que nos encontraríamos se toda a protecção do estado fosse removida. Neste mundo imaginário não haveria o certo e o errado, uma vez que não haveria leis, pois não haveria um poder supremo para as impor. Não haveria também qualquer tipo de propriedade: toda a gente poderia adquirir o que quisesse e ficar com o que adquirisse. Para Hobbes a moralidade e a justiça são criações da sociedade. Não há valores absolutos que existam independentemente da sociedade. O certo, o errado, a justiça e a injustiça são valores determinados por poderes soberanos dentro de um estado e não algo que lhes preexista. Portanto, no estado de natureza não haveria qualquer espécie de moralidade.
A descrição de Hobbes do estado de natureza é uma experiência conceptual concebida para clarificar os limites da obrigação política. Se não acharmos o estado de natureza atractivo, temos excelentes razões para fazer aquilo que for preciso para evitar cair em algo do género. O estado de natureza é um estado de guerra perpétua de todos contra todos. Uma vez que não existe quem faça leis e quem as faça cumprir, nenhuma cooperação entre indivíduos é possível. Sem um tal poder ninguém tem de cumprir qualquer promessa que faça, pois é sempre do seu interesse faltar ao prometido quando isso convém. Partindo-se do princípio que temos um forte desejo de sobrevivência, é da mais elementar prudência não honrar um acordo no estado de natureza se isso nos beneficiar. Se não nos apoderarmos do que precisamos quando podemos, corremos o risco de um outro nos roubar o pouco que temos. Nesta situação de competição directa pelos escassos recursos essenciais à sobrevivência, fazem sentido os ataques preventivos contra aqueles que pensamos constituir uma ameaça para a nossa segurança. Esta é a mais eficaz estratégia de sobrevivência. Mesmo se não há luta, diz Hobbes, há à mesma um estado de guerra, visto que permanece a ameaça constante de a violência rebentar.
No estado de natureza não podem existir projectos humanos que requeiram cooperação, como a agricultura sustentada ou a arquitectura. Mesmo o mais fraco pode potencialmente matar o mais forte, não estando por isso ninguém a salvo, constituindo cada um uma possível ameaça. Hobbes descreveu a vida no estado de natureza de forma memorável como “solitária, pobre, desagradável, brutal e breve.” Se nos confrontamos com a possibilidade de uma tal existência, desistir de algumas das nossas liberdades não parece um preço muito alto em troca da paz e segurança. Hobbes explica o que os indivíduos no estado de natureza têm de fazer para escapar à pouco atractiva situação desagradável em que se encontram. O medo de uma morte violenta e o desejo dos benefícios da paz fornecem poderosos motivos para o fazer.
No estado de natureza todas as pessoas têm o direito natural da auto-preservação, e continuam a tê-lo mesmo depois de terem desistido de outros direitos com o contrato social. Hobbes contrasta este direito com as leis naturais. Um direito identifica algo que temos liberdade para fazer caso o desejemos, mas a que não estamos obrigados; uma lei compele-nos a seguir aquilo que ordena.

Leis da natureza
Mesmo no estado de natureza há leis da natureza: leis que se seguem do uso da razão. Não são como a lei que proíbe a condução sob o efeito do álcool: Hobbes usa a expressão ‘lei civil’ para se referir a este tipo de prescrição (o conteúdo das leis civis é determinado pelo soberano ou pelas pessoas que agem em seu nome). As leis da natureza, pelo contrário, são princípios a que qualquer pessoa racional deve obediência. No estado de natureza todos têm direito a tudo. A consequência inevitável disto é, como já vimos, a falta de segurança e um estado de guerra constante. A lei da natureza que nestas circunstâncias a razão transmite é ‘Procura a paz sempre que possível’. Uma segunda lei da natureza é ‘Quando os outros estão disponíveis para fazer o mesmo, abdica dos direitos que tens no estado de natureza e satisfaz-te com a liberdade que gostarias que os outros tivessem’ (isto é uma variante da prescrição religiosa ‘Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti’). Hobbes enuncia uma longa lista de leis da natureza cuja função é mostrar que no estado de natureza, desde que os outros estejam dispostos a agir da mesma maneira, é racional que todos abdiquem da sua liberdade ilimitada em troca de segurança.

O contrato social
A conduta racional a seguir é celebrar um contrato social, submetendo as liberdades a um soberano poderoso. O soberano tem de ter a capacidade de fazer cumprir todas as promessas com que as pessoas se comprometem, pois, como assinala Hobbes, “pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém”. O poder do soberano garante que as pessoas farão aquilo com que se comprometeram. A paz é o resultado.
É verdade que alguns animais, como as abelhas e as formigas, parecem viver em sociedades que funcionam bem sem necessidade de um poder coercivo superior. Hobbes nota que a situação dos humanos é muito diferente da das abelhas e formigas. Os seres humanos estão sempre a competir por honras e dignidade, o que leva à inveja e ao ódio e, por fim, à guerra; as formigas e abelhas não têm o sentido da honra e da dignidade. Os seres humanos têm o poder da razão, o que os torna capazes de detectar falhas no modo como são governados, o que provoca agitação social; as formigas e as abelhas não possuem esse poder da razão. Os seres humanos só formam sociedades através de pactos; as formigas e abelhas chegam a acordo naturalmente. Consequentemente, os seres humanos precisam da ameaça de força para terem garantia de que ninguém falta à sua palavra, as formigas e abelhas não.
Para Hobbes, o contrato social é um contrato celebrado com outros indivíduos no estado de natureza pelo qual todos abdicam dos seus direitos naturais em troca de protecção. Este contrato não tem de ser historicamente real: Hobbes não afirma que a certa altura da história de cada estado toda a gente concorda subitamente que lutar com os outros é uma perda de energias e que faria muito mais sentido a cooperação. Em vez disso, apresenta um modo de compreender, justificar e mudar os sistemas políticos. (...)

O dilema do prisioneiro
Alguns comentadores actuais da obra de Hobbes destacam a semelhança entre a sua discussão do estado de natureza e aquilo que é conhecido como o dilema do prisioneiro, uma situação imaginária concebida para ilustrar certos problemas relativos à colaboração entre pessoas. Imagine-se que você e o seu companheiro de crime foram apanhados, mas não em flagrante. Você é interrogado numa cela separada e não sabe se o seu companheiro confessa ou não.
A situação é a seguinte: se nenhum confessar, ambos sairão em liberdade, pois a polícia não tem provas suficientes para que possam ser declarados culpados. À primeira vista este parece ser o melhor curso de acção, mas o problema é que se você ficar em silêncio e o seu companheiro confessar, e desse modo o incriminar, ele será recompensado pela sua colaboração e será libertado na mesma, ao passo que você apanhará uma longa pena de prisão. Você também pode obter uma recompensa se confessar, no caso de ele não o fazer. Mas se porventura ambos confessarem, apanharão ambos uma pena reduzida. Nesta situação, seja o que for que o seu companheiro de crime faça, o que faz sentido é que você confesse (supondo que quer maximizar o que é para si conveniente). Isto porque se ele não confessar, você será recompensado e sairá em liberdade; e caso ele confesse, será muito melhor ir para a prisão por um período curto do que lá cair por muito tempo caso ele o incrimine. Portanto, se ambos querem maximizar as suas recompensas e minimizar as penas, irão ambos confessar. Infelizmente, isto produz um resultado pior do que se ambos ficassem em silêncio.
O estado de natureza de Hobbes é semelhante porque nele faz sempre sentido para nós (e para os outros) violar um contrato quando ganhamos com isso. Honrar um contrato é arriscado: o pior cenário ocorre quando honramos um contrato e um outro o rompe. Se o outro o honra, nós, em princípio, beneficiamos se o rompermos. Se a outra pessoa o rompe, devemos limitar as nossas perdas, rompendo-o também. Portanto, de uma maneira ou de outra, não devemos honrar os contratos. Não há, nestas circunstâncias, qualquer incentivo para um ser racional honrar contratos caso queira alcançar o melhor para si . É por isso que Hobbes introduz a noção de soberano, pois sem essa poderosa garantia de que os contratos serão cumpridos, ninguém terá incentivo para manter qualquer promessa que faça. O contrato celebrado com os outros para transferir os nossos direitos para o soberano difere dos outros contratos, porque se o violarmos seremos punidos, porventura severamente. Por isso, neste caso, temos um forte incentivo para cumprir o contrato social básico.


Nigel Warburton, Philosophy: The Classics (London & New York, 2001, pp. 61-66). Trad. Carlos Marques.