sexta-feira, maio 29, 2009

Kierkegaard: o problema não está no conhecimento mas na vontade.

Na filosofia das ideias puras, que não considera o indivíduo real, a passagem é de absoluta necessidade (como aliás no hegelianismo, no qual tudo se realiza com necessidade), a passagem de compreender a agir não tropeça em nenhum embaraço. (...) é igualmente esse, no fundo, todo o segredo da filosofia moderna, toda ela contida no cogito ergo sum, na identidade do pensamento e do ser; (ao passo que o cristão, esse pensa: " Que vos seja dado segundo a vossa fé." ou "tal fé tal homem, ou: crer é ser." A filosofia moderna não é, como se vê, senão paganismo. (...) no mundo real em que se trata do indivíduo existente, não se evita essa minúscula passagem do compreender ao agir (...) A vida do espírito não tem paragens (nem tão pouco, afinal, estado: tudo é actual); portanto, se um homem, no próprio segundo em que reconheça o justo não o pratica, eis o que se produz: em primeiro lugar o conhecimento estanca. (...) A vontade é um agente dialéctico, que por sua vez determina toda a natureza interior do homem. Se ela não aceita o produto do conhecimento, nem por isso se põe a fazer o contrário daquilo que o conhecimento apreendeu, tais conflitos são raros; mas deixa passar algum tempo, abre-se um ínterim, e ela diz: ver-se-á até amanhã. Entretanto o conhecimento obscurece-se cada vez mais, as partes inferiores da nossa natureza tomam uma supremacia cada vez maior; ai de nós! porque é preciso fazer o bem imediatamente mal se reconheça (é é por isso que na especulação pura é tão fácil a passagem do pensamento ao ser, porque aí tudo é dado antecipadamente), ao passo que para os nossos instintos inferiores a tendência é para demorar, demoras que a vontade nem por isso detesta e ante as quais semicerra os ollhos. E, quando se obscurece suficientemente, o conhecimento põe-se no mais completo acordo com a vontade; por fim é o acordo perfeito, porque aquele passou para o campo contrário e ratifica tudo o que esta (a vontade) arranja. Assim vivem talvez multidões de pessoas; trabalhando, como que insensivelmente, para obscurecer o seu juízo ético e ético-religioso, (...) desenvolvem em si um conhecimento estético e metafísico, o qual, para a Ética, não é senão divertimento.
Mas ultrapassamos até aqui o socratismo? Não, porque Sócrates diria que, tudo se passa assim, é a prova de que afinal o homem não compreendeu o justo. Por outras palavras, para enunciar que alguém, sabendo-o, pratica o injusto, o helenismo carece de coragem e defende-se dizendo: quando alguém pratica o injusto, ignora o justo.

Sobre isso não existe dúvida; e acrescentarei não ser possível a um homem passar adiante, sozinho e por si próprio dizer o que é o pecado, visto que vive nele; todos os seus discursos sobre o pecado não são, no fundo, senão a sua desculpa, uma atenuação pecadora. É por isso que o Cristianismo começa de outro modo, pondo a necessidade de uma revelação de Deus, que instrua o homem sobre o pecado, mostrando-lhe que ele não está em não compreender o justo, mas em não querer compreender, em não querer o justo.

Sören Kierkegaard. O desespero humano, pag. 160, 161, Livraria Tavares Martins, Porto1979

Tradução do Francês de Adolfo Casais Monteiro

terça-feira, maio 26, 2009

FAZER E FAZER DE CONTA
A escola portuguesa – a cura pior que a doença



A ortodoxia actual parte do princípio que os funcionários públicos só desempenham bem as suas funções se lhes for exigido que mostrem que desempenham bem as suas funções. Mas esta necessidade de mostrar consome tempo, e o tempo que se leva a preparar relatórios anuais e planos colectivos, elaborados para mostrar que uma pessoa está a fazer o seu trabalho, é retirado ao tempo que se tem para fazer esse trabalho... fazendo-se que a instituição seja na verdade menos eficiente do que seria sem tudo isto. (...) E não há instituição pública que não esteja envolvida neste fútil carrossel que só faz perder tempo.

Um outro equívoco é necessário a este carrossel, nomeadamente, que tudo é quantificável (...) [e] pode ser avaliado por intermédio de questionários, e assim por diante. Talvez vinte por cento das coisas o seja, e pode ser que vinte por cento destes exercícios indutores de eficiência tenham algum valor ou que valham as horas e horas do nosso tempo e de preenchimento de formulários que requerem. É verdade que é possível medir através de um questionário se o serviço prestado no bar é rápido ou se as casas de banho estão limpas, mas nunca é demais dizer que aquilo que acontece aqui dentro de mais essencial, a experiência de [ensinar e aprender] (...), não pode ser [assim] avaliado e permanece um mistério (...)

Alan Bennett, Untold Stories (New York, 2005, págs. 475-6). Tradução e adaptação de Carlos Marques.


O texto de Alan Bennett é sobre a National Gallery [museu de arte] de Londres e não sobre a escola portuguesa. Porém, basta um corte aqui e ali para assentar que nem uma luva...

domingo, maio 17, 2009

BELEZA E DESEJO SEXUAL

Contemplação e desejo

É (...) verdade que os objectos do juízo estético e do desejo sexual podem ser ambos descritos como belos, mesmo se eles fazem surgir interesses radicalmente diferentes naquele que os descreve como tal. Uma pessoa, ao deparar-se com o rosto de um homem de idade, cheio de interessantes rugas e pregas, mas de olhar distinto e plácido, pode descrevê-lo como belo. No entanto, não entendemos o juízo da mesma maneira na exclamação ‘Ela é uma beleza!’, proferida por um jovem impetuoso ao olhar para uma rapariga. O jovem vai atrás da rapariga, deseja-a, não apenas no sentido de querer olhar para ela, mas porque quer abraçá-la e beijá-la. O acto sexual é descrito como a ‘consumação’ deste tipo de desejo – embora não devamos pensar que seja necessariamente aquilo que à partida se quer, ou que o acto sexual faça desaparecer o desejo, tal como beber um copo de água faz desaparecer o desejo de beber água.

No caso do belo ancião, não há este género de ‘ir atrás’: nenhuma segunda intenção, nenhum desejo de possuir o (ou, de alguma maneira, de retirar algum benefício do) belo objecto. O rosto do homem de idade tem, para nós, significado, e se procuramos alguma satisfação, encontramo-la nesse rosto, na coisa que contemplamos e no acto de contemplação. É seguramente absurdo pensar que este estado de espírito é igual ao do jovem empolgado que procura a conquista. Quando, no meio do desejo sexual, contemplamos a beleza de quem é a nossa companhia, afastamo-nos do nosso desejo, como que o absorvendo numa intenção mais alargada e menos imediatamente sensual. Este é, decerto, o significado metafísico do olhar erótico: ele é uma procura de conhecimento – um pedido para que outra pessoa brilhe diante de nós, na sua forma sensória, dando-se assim a conhecer.

Por outro lado, não há dúvida de que a beleza estimula o desejo no momento de excitação. Significa isto que o nosso desejo é dirigido à beleza de outro? Tem esse desejo a ver com essa beleza? O que se pode fazer com a beleza de outra pessoa? O amante saciado é tão incapaz de possuir a beleza do seu amado, quanto aquele que sem esperança a observa à distância. Esta é uma das ideias que inspirou a teoria de Platão. O que nos instiga, na atracção sexual, é algo que pode ser contemplado, mas nunca possuído. O nosso desejo pode ser consumado e temporariamente extinto, mas ele não é consumado pela posse da coisa que o inspira. Esta permanece sempre para além do nosso alcance - o ser do outro que não pode jamais ser partilhado.


Corpos belos

Ninguém mais do que Platão estava consciente da tentação que jaz emaranhada no coração do desejo – a tentação de separar o nosso interesse da pessoa e ligá-lo apenas ao corpo, pondo de lado a experiência moralmente exigente de possuir o outro como indivíduo livre, tratando-o, em vez disso, como um mero instrumento do nosso prazer localizado. Platão não se referiu a esta ideia exactamente desta maneira, mas ela está subjacente a todos os seus escritos sobre os temas da beleza e do desejo. Platão acreditava que há uma forma básica de desejo, que tem em mira o corpo; e uma forma mais elevada, que tem em mira a alma e – através desta – a esfera eterna da qual os seres racionais descendem em última análise.

Não temos de aceitar esta concepção metafísica para reconhecer o elemento de verdade presente no argumento de Platão. Há uma distinção, familiar a todos, entre um interesse na carne de uma pessoa e um interesse na pessoa enquanto incorporada. Um corpo é um conjunto de realidades corpóreas; uma pessoa incorporada é um ser livre revelado pela carne. Quando falamos de um belo corpo referimo-nos à bela incorporação de uma pessoa e não ao corpo considerado meramente como tal.

Isto torna-se evidente se centrarmos a nossa atenção numa pequena parte do corpo, digamos, no olho ou na boca. Podemos ver a boca apenas como uma abertura, um buraco na carne, pelo qual se engolem coisas e do qual coisas emergem. Um cirurgião pode ver a boca desse modo, durante o tratamento de uma doença. Não é essa a maneira pela qual nós vemos a boca quando estamos face a face com outra pessoa. A boca não é, para nós, uma abertura através da qual emergem sons, mas uma coisa que fala, uma continuidade do ‘eu’, do qual é porta-voz. Beijar essa boca não é colocar uma parte do corpo contra outra, mas tocar a outra pessoa no seu próprio ser. Por isso, o beijo compromete – é um movimento de um eu para outro eu e o chamar do outro à superfície do seu ser.

As maneiras à mesa ajudam a manter a percepção da boca como uma das janelas da alma, a despeito do acto de comer. É por isto que as pessoas procuram não falar com a boca cheia ou deitar comida da boca para o prato. É por isto que os garfos e os pauzinhos foram inventados e que os africanos, quando comem com as mãos, dão uma forma graciosa às suas mãos para que a comida passe pela boca sem ser notada. Assim, ao ingerir-se a comida, a boca retém a sua dimensão sociável.

Estes são fenómenos familiares, embora descrevê-los não seja fácil. Recorde-se a náusea que se sente quando – por qualquer razão – vemos de repente um pedaço de carne onde até esse momento viramos uma pessoa encarnada. É como se nesse instante o corpo se tornasse opaco. O ser livre desapareceu por detrás da sua própria carne, carne essa que já não é a pessoa, mas um simples objecto, um instrumento. Quando este eclipse da pessoa pelo seu corpo é propositadamente produzido, falamos de obscenidade. O gesto obsceno é o gesto que exibe o corpo como puro corpo, destruindo assim a experiência da incorporação. Repugna-nos a obscenidade pela mesma razão que repugnava a Platão a lascívia física que envolve, por assim dizer, o eclipse da alma pelo corpo.

Estes pensamentos sugerem algo de importante acerca da beleza física. A beleza distintiva do corpo humano deriva da sua natureza enquanto incorporação. A sua beleza não é a beleza de uma boneca e é mais do que uma questão de forma ou proporção. Quando encontramos beleza humana numa estátua, como o Apolo Belvedere ou a Daphne de Bernini, o que está representado é a beleza humana – carne animada pela alma individual, expressando individualidade em todas as suas partes. Quando o herói do conto de Hoffmann se apaixona pela boneca, Olímpia, o efeito tragicómico deve-se inteiramente ao facto de a beleza de Olímpia ser meramente imaginada, desaparecendo à medida que o mecanismo perde a corda.

Tudo isto tem enorme significado, como mostrarei mais à frente, na discussão sobre a arte erótica. Mas chamo desde já a atenção para uma observação importante. Quer suscite contemplação, quer induza o desejo, a beleza humana é vista em termos pessoais. Ela reside especialmente naqueles traços – a face, os olhos, os lábios, as mãos – que atraem o nosso olhar no curso das relações pessoais, através das quais nos relacionamos entre nós, eu a eu. Apesar das modas no que toca à beleza humana, e apesar de o corpo ser embelezado de diferentes maneiras em diferentes culturas, os olhos, a boca e as mãos têm um poder de atracção universal, pois é por estes traços que a alma do outro brilha para nós e se deixa conhecer.

Roger Scruton, Beauty (Oxford, 2009, pp. 42-3 e 47-48). Tradução de Carlos Marques.

ESTA OBRA ESTARÁ BREVEMENTE À DISPOSIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA NESTA TRADUÇÃO, NUMA EDIÇÃO DA "Guerra & Paz".