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terça-feira, agosto 12, 2025

 


As três destruições da Biblioteca de Alexandria podem parecer confortavelmente antigas, mas, infelizmente, a aversão aos livros é uma tradição firmemente enraizada na nossa História. A devastação nunca deixa de ser uma tendência. Como dizia uma vinheta de El Roto: “As civilizações envelhecem, as barbáries renovam-se.”

Na verdade, o século XX foi um século de aterrorizante bibliocastia ( as bibliotecas bombardeadas nas duas guerras mundiais, as fogueiras nazis, , os regimes censores, a revolução Cultural Chinesa, as purgas soviéticas, a Caça às Bruxas…) E o século XXI começou com a pilhagem consentida pelas tropas americanas, a museus e bibliotecas no Iraque, onde a escrita caligrafou o mundo pela primeira vez.

(…) O escritor bósnio Ivan Lovrenovic contou que, na longa noite de verão, Sarajevo brilhou  com o fogo que brotava de Vijecnica, o imponente edifício da Biblioteca nacional ao pé do rio Miljacka. Primeiro, vinte e cinco obuses incendiários atingiram o telhado, apesar das instalações estarem marcadas com bandeiras azuis para indicarem a sua condição de património cultural. Quando o resplendor – diz Ivan – alcançou proporções neronianas, começou um constante bombardeamento maníaco para impedir o acesso à Vijecnica. Desde as colinas que contemplavam a cidade, os atiradores furtivos disparavam contra os habitantes de Sarajevo, magros e esgotados, que saíam dos seus refúgios para tentarem salvar os livros. A intensidade dos ataques não permitiu a aproximação dos bombeiros. Por fim, as colunas mouriscas do edifício cederam, e as janelas explodiram para deixarem sair as chamas. Ao amanhecer tinham ardido centenas de milhares de volumes – livros raros, documentos da cidade, coleções inteiras de publicações, manuscritos, edições únicas. “Aqui não resta nada”, disse Vkekoslav, um bibliotecário.

Irene Vallejo, O infinito num junco, Lisboa, Bertrand, 2021, p.234,236

"Fahrenheit 451" temperatura a que ardem os livros, de Ray Bradbury. A realidade já ultrapassou, a ficção.

quarta-feira, julho 09, 2025

Os homens são supérfluos?

 


Alex Webb CHINA. Chongqing. 2017. Nadadores em Yangtze. 

“A essência do totalitarismo, e talvez da burocracia, é transformar os homens em funcionários, em meras peças da máquina administrativa, ou seja, desumanizá-los. A forma política conhecida pelo nome de burocracia corresponde, em última análise, ao domínio de ninguém.”[1] 

Cf. Arendt, Eichmann em JerusalémEJ, p.371.

 

A questão da banalidade do mal está, segundo Arendt necessariamente associada à “ausência de pensamento”. Esta “ausência de pensamento” não é apenas um problema individual respeitante ao carácter do criminoso (Eichmann repetia slogans e era incapaz de pensar, “pensar” como construção de alternativas, de outras possibilidades),   é também o resultado de um modelo político onde o pensamento seria supérfluo porque as pessoas são supérfluas. A pessoa como alguém capaz de pensamento autónomo, vontade autónoma e livre arbítrio, seria considerada irrelevante, não necessária, pois não haveria nesse mundo espaço onde essa liberdade pudesse ter qualquer forma de expressão, pudesse tornar-se efetiva. Essa determinação de certos modelos políticos como o totalitarismo nazi pode ocorrer mediante a criação de certas condições.

(…) o funcionamento burocrático por células e outros componentes é a forma de tornar o público controlado através de divisões e subdivisões que estabelecem entre si um controle e uma supervisão permanente. Confundindo o público e o privado, retira a qualquer um dos espaços a possibilidade de se constituírem como espaços de liberdade, de escolha e de diferença. Neste sistema o homem não é importante, visto que aquilo que o caracteriza, o seu livre-arbítrio, o seu pensamento ou alma, está alienado de si, representa o pensamento, alma, livre- arbítrio da nação. Em vez de ser uma alienação, este movimento é encarado como a verdade que exige os maiores sacrifícios.

Nesta ordem de ideias, cada um pode ser substituído nas suas funções por um outro sem que a ordem/verdade se altere, visto que esta ordem/verdade é constituída “nas nuvens” por uma vontade e uma inteligência superiores. Esse indivíduo tornado substituível, torna-se, por uma questão de sobrevivência, um cumpridor verdadeiramente zeloso e estará sempre pronto a delatar o outro, seu igual/rival, como um potencial inimigo.[2]

A banalidade do mal instaura-se numa ordem que concebe o homem como supérfluo e, portanto, substituível. Essa ordem revela-se como um sistema eficaz de vigilâncias e de repetições, onde a ação e o discurso a ela associados são substituídos por leis e decretos, cuja autoridade é justificada pelo princípio da máxima eficácia científica, centrada na produção. Neste aspeto, a máquina e não o homem, é o modelo. Por outro lado, a subordinação ideológica do indivíduo ao todo faz deslizar a importância do homem para a Ordem, isto é, para uma ideia organizativa que prevalece subjetivamente sobre a iniciativa, regulando-a e orientando-a para o todo. Neste modelo, cada um tem um quadro previamente limitado e dado da ação que tem de conduzir (isto é, a ação limitada pelo seu lugar na ordem), limita-se a ser uma função com objetivos precisos. É a este quadro de ordens e de procedimentos repetitivos, de imitação e de vigilância de uns sobre outros, onde a ordem está assimilada e todos a representam, que chamamos burocracia. É nesse quadro que o mal pode ocorrer, sem que a ação que o provoque saia do estipulado da função onde o burocrata se sente seguro. Todos são aqui substituíveis porque é exatamente o que os faz não substituíveis que é supérfluo.

 

Helena Serrão, A comédia do mal

[1] Cf. Arendt, EEJ, p.371. Este mecanismo aparentemente administrativo é um mecanismo de redimensionamento dos indivíduos e da sua liberdade de ação. É, portanto, um mecanismo político disfarçado de máquina administrativa eficaz. A burocracia é uma forma de organização política e não apenas uma forma de funcionamento institucional: “A burocracia é a forma de poder onde todos são privados de liberdade política, do poder de agir, já que o governo de Ninguém não é a ausência de governo, onde todos são igualmente destituídos de poder temos uma tirania sem tirano.” Arendt (1969) Da Violência, 2004, p. 51.

[2] Este mecanismo aparentemente administrativo é um mecanismo de redimensionamento dos indivíduos e da sua liberdade de ação. É, portanto, um mecanismo político disfarçado de máquina administrativa eficaz. A burocracia é uma forma de organização política e não apenas uma forma de funcionamento institucional: “A burocracia é a forma de poder onde todos são privados de liberdade política, do poder de agir, já que o governo de Ninguém não é a ausência de governo, onde todos são igualmente destituídos de poder temos uma tirania sem tirano.” Arendt (1969) Da Violência, 2004, p. 51.

 

 

quarta-feira, abril 23, 2025

O Homem abdicou da política? Ou que política? ou que Homem?


Inge Morath, Cordoba, 1962, no café da vila

" O Homem é um animal político, mais social do que as abelhas e outros animais que vivem em comunidade. A Natureza, que nada faz em vão, só a ele concedeu o dom da palavra, dom que não se pode confundir com emitir sons. (…)

O Estado, ou sociedade política, é mesmo o primeiro objeto que a natureza se propôs. O todo é, necessariamente, anterior à parte. As sociedades domésticas e os indivíduos mais não são que as partes integrantes (…), totalmente subordinadas ao corpo na sua totalidade, totalmente distintas pelas suas capacidade e pelas funções e completamente inúteis se se separam, de forma semelhante às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem qualquer realidade, como acontece a uma mão de pedra. O mesmo se passa com os membros de uma cidade; nenhum se pode bastar a si próprio. Quem quer que seja que não tenha necessidade dos outros homens ou que não seja capaz de viver em comunidade com eles ou é um deus ou um animal. Desta forma, a própria inclinação natural conduz todos os homens a este género de sociedade.

O primeiro que a instituiu trouve-lhe o maior de todos os bens. Mas, assim como o homem civilizado é o melhor de todos os animais, também aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de todos. Sobretudo, não existe algo de mais intolerável do que a injustiça armada. As armas e a força são, por si próprias, indiferentes perante o bem ou o mal: é o princípio que as move que qualifica o seu uso. Servir-se delas sem qualquer direiro, e unicamente para satisfazer as suas paixões gananciosas ou luxuriosas, é atrocidade e malvadez. O seu uso é lícito a favor da justiça. O discernimento e o respeito do direito constituem a base da vida política e os juízes são os seus primeiros órgãos.”

Aristóteles, Política, Lisboa editora a mencionar

 

O direito como arma política e não a força das armas na resolução de conflitos e na manutenção da paz. Será possível que essas evidências passados mais de dois mil anos sejam ainda obscuras fórmulas sem capacidade para guiarem a ação dos líderes políticos? Voltámos à visibilidade dos líderes cujo poder é tão obscuro como as suas ações mas que ignoram a vontade do seu povo. Líderes que ignoram a comunidade que representam e se motivam pela ganância e a inverosimilhança do imperialismo que muitos já julgavam uma ideia ultrapassada. É mesmo caso para perguntar: Que homem é este? Não certamente aquele que Aristóteles refere neste texto como sendo o animal político.

quarta-feira, outubro 02, 2024

A guerra: comércio letal



 


Raymond Departon, Chicago, 1968

Concluímos, portanto, que a guerra não pertence ao domínio das artes nem ao das ciências. Ela é mais precisamente parte da existência social do homem. A guerra é um conflito de grandes interesses, que é resolvido através do derramamento de sangue - que é a única maneira pela qual ela difere de outros conflitos. Em vez de compará-la a uma arte, deveríamos compará-la com maior precisão ao comércio, que também é um conflito de interesses e de atividades humanas e que está ainda mais próximo da política que, por sua vez, pode ser considerada uma espécie de comércio em maior escala. A política é, além do mais, o útero em que se desenvolve a guerra - onde os seus contornos já existem na sua forma rudimentar, como as características de criaturas vivas em seus embriões.

A diferença essencial é que a guerra não é o uso da vontade orientada para um objeto inanimado, como no caso das artes mecânicas, ou para um corpo que seja animado, mas passivo e submisso, como é o caso da mente e das emoções humanas nas belas artes. Na guerra, a vontade é orientada para um corpo animado que reage. Deve ser óbvio que a codificação intelectual utilizada nas artes e nas ciências é inadequada a uma atividade destas. Ao mesmo tempo, é evidente que a luta contínua em busca de leis semelhantes às adequadas aos domínios da matéria inanimada estava fadada a levar a um erro após o outro. Apesar disto, eram exatamente as artes mecânicas que se esperava que a arte da guerra imitasse. Era impossível imitar as belas artes, uma vez que eles mesmas ainda não possuem suficientes leis e regras próprias. Até o momento, todas as tentativas de formular qualquer uma têm sido consideradas excessivamente limitadas e parciais, e têm sido constantemente solapadas e abolidas pelas correntes de opinião, pela emoção e pelos costumes.

(…) Parte do propósito deste livro é verificar se um conflito de forças vivas, como o que se desenvolve e é decidido na guerra, continua sujeito a leis gerais, e se estas leis podem proporcionar um guia útil para a ação. Uma coisa é evidente: esta questão, como qualquer outra que não ultrapasse a capacidade intelectual do homem, pode ser esclarecida através de uma mente investigadora, e a sua estrutura interna pode ser revelada até um certo ponto. Somente isto é suficiente para transformar em realidade o conceito da teoria.

 Quando um ataque de surpresa deixar um exército incapaz de empregar a sua força de uma maneira ordenada e racional, então o efeito da surpresa não poderá ser posto em dúvida. Quando a teoria houver determinado que um ataque envolvente leva a um êxito maior, embora menos certo, teremos que perguntar se o General que utilizou este envolvimento estava primordialmente interessado na magnitude do êxito. Se estivesse, escolheu a maneira correta de agir. Mas se ele o utilizou para tornar o êxito mais certo, baseando a sua ação, não tanto nas circunstâncias do momento, mas na natureza genérica dos ataques envolventes, como já ocorreu inúmeras vezes, então ele interpretou mal a natureza do meio que escolheu e cometeu um erro.

 A tarefa da análise e da prova crítica não é muito difícil em casos deste tipo. Fatalmente será fácil, se nos restringirmos aos propósitos e aos efeitos mais imediatos. Isto pode ser feito de uma maneira bastante arbitrária, se isolarmos a questão do seu cenário e a estudarmos somente sob essas condições.

 Mas na guerra, como na vida de uma maneira geral, todas as partes de um todo estão interligadas e, assim, os efeitos produzidos, por menores que sejam as suas causas, devem influenciar todas as operações militares subsequentes e modificar de algum modo o resultado final, por menor que seja esta modificação. Da mesma maneira, todo meio deve influenciar até mesmo o propósito final.

 Podemos continuar investigando os efeitos produzidos por uma causa até onde isto parecer valer a pena. Da mesma maneira, um meio não deve ser avaliado simplesmente em relação ao seu fim imediato: aquele fim deve ser avaliado como um meio para atingir o próximo e mais elevado e podemos, assim, seguir uma cadeia de propósitos sequenciais até chegarmos a um que não exija qualquer justificação, porque a sua necessidade é evidente por si mesma. Em muitos casos, principalmente naqueles que envolvem ações de vulto e decisivas, a análise deve ser estendida até o propósito final, que é obter a paz.

Da guerra, CARL VON CLAUSEWITZ,

Tradução do inglês Carlos Nascimento

quinta-feira, maio 23, 2024

Robert Nozick: Os mais favorecidos têm direito a queixar-se no sistema de justiça proposto por Rawls.


Ruth Orkin,  GreenwichVillage, Nova Iorque, 1949

Rawls dedica muita atenção a explicar por que os menos favorecidos não devem queixar-se de receber menos. A sua explicação, em termos simples, é que porque a desigualdade age em seu benefício, o indivíduo menos favorecido não deve queixar-se dela: ele recebe mais no sistema desigual do que obteria num sistema igual. (Embora pudesse receber ainda mais num sistema que colocasse alguém mais abaixo dele). Rawls, porém, discute a questão se os mais favorecidos acharão ou não, ou deverão achar, os termos satisfatórios (…) O que Rawls imagina que se diz aos mais favorecidos não demonstra que estes não têm motivos para se queixarem. A condição de que o bem-estar de todos depende da cooperação social, sem a qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, poderia também ser dito aos menos dotados por alguém que propusesse qualquer outro princípio, incluindo o de maximizar a posição dos mais bem dotados. Analogamente, a respeito do facto, só podemos pedir a cooperação voluntária de alguém se os termos do esquema forem razoáveis. A questão é: Que termos seriam razoáveis? (…) Assim quando Rawls continua: “ O princípio da diferença, então, parece ser uma base justa sobre a qual os mais bem dotados, ou mais afortunados nas suas circunstâncias sociais, poderiam esperar que os demais colaborassem com eles, quando o arranjo viável for condição necessária para o bem de todos”, a presença do termo “então” nesse período é enigmática. Uma vez que as orações que o precedem são neutras entre a sua proposta e outra qualquer, a conclusão de que o princípio da diferença oferece uma base justa para a cooperação não pode seguir-se do que a precede neste trecho. Rawls repete que os termos parecem razoáveis, o que seria certamente uma resposta pouco convincente para aqueles para quem eles não são razoáveis. Rawls não demonstrou que o indivíduo mais favorecido A, não tem motivos para se queixar ao ser obrigado a ter menos, para que outro, B, possa ter mais do que teria em outra situação qualquer. E não pode demonstrar isso uma vez que A, de facto, tem motivo de queixa. Ou não tem?

Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia (1974), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1991), p.213, 214

 

quinta-feira, maio 16, 2024

Rawls: Como pensar uma sociedade mais justa.


Luís Pavão, Taberna da Rua de S. Mamede, 1981

"O político visa à próxima eleição, o estadista, à próxima geração. É papel do estudante de filosofia visar às condições permanentes e aos reais interesses de uma sociedade democrática justa e boa”, John Rawls

O filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) costumava dizer que a última coisa de que gostaria era de se tornar assunto de teses académicas. Não podia evitá-lo, porém. O que a frase acima indica é que ele preferia que seu pensamento servisse de inspiração para que outros implementassem, ou levassem adiante, as suas ideias, em vez de se limitar a alimentar teses e doutores. Dedicou boa parte da sua vida académica, se não toda ela, à elaboração de uma teoria da justiça, à qual deu o nome de “Justiça como equidade” (Justice as fairness). A sua teoria foi apresentada de modo mais consistente, em 1971, em Uma Teoria da Justiça, e a partir daí ocupou-se em responder às críticas e corrigir ou alterar alguns aspetos da sua teoria. O conjunto de sua produção converge, de maneira impressionante, para o tema central: como tornar as sociedades mais justas? (...)

Rawls não se limita a descrever uma situação de injustiça social; aliás, raramente o faz. Parte do pressuposto de que a desigualdade é inerente à condição do homem em sociedade, e que o homem é intrinsecamente auto-interessado, um “egoísta racional”. Ainda assim, julga, ele pode superar essa condição ao associar-se a outros para estabelecer os princípios da vida em comum. Para que a escolha dos princípios não seja distorcida por esses interesses, tal escolha efetua-se por trás de um “véu de ignorância”, os agentes ignoram a sua posição atual bem como suas chances futuras na sociedade, tanto as suas como as dos outros. A essa situação chama de “posição original”.

Uma vez escolhidos os princípios para essa sociedade, que são, argumenta, o “princípio da liberdade igual para todos” e o “princípio da diferença”, caberá a cada sociedade, internamente , deliberar sobre a forma de pôr em prática esses princípios

A igualdade de oportunidades só pode ser efetiva se todos se beneficiarem das mesmas condições formais de educação, saúde e alimentação, dentre outros bens primários. Caso todos possuam acesso pelo menos aos bens básicos, a condição inicial será justa. Isso não significa que não haja mais desigualdade, mas essa desigualdade será pelo menos aceitável para os que se encontram na base da pirâmide social; este é, basicamente, o que é enunciado pelo princípio da diferença. Como diz Rawls, a “igualdade de oportunidades é assegurada por um certo conjunto de instituições que asseguram igualmente boa educação e chances de cultura para todos e que mantêm aberta a competição para posições com base em qualidades que podem ser relacionadas com a performance”.

A teoria da justiça como equidade não constitui um igualitarismo rasteiro. Trata-se de mexer na distribuição até ao ponto em que se possa fazê-lo sem afetar a renda da sociedade como um todo, o que é conhecido como o princípio "maximin". Este defende que se pode elevar a renda e as condições de vida dos que têm menos, ao mesmo tempo em que se taxa progressivamente (ou por meio de um imposto de consumo) a renda dos que têm mais, até ao ponto em que uma maior alteração afetaria negativamente as condições económicas da sociedade em geral. Em linguagem mais simples, quer dizer que a desigualdade se justifica se e somente se, aqueles que estão na parte mais baixa da pirâmide são mais beneficiados pela presente repartição (desigual) de bens e oportunidades do que seriam se o sistema fosse mais igualitário.

Luiz Paulo Rouanet



sábado, fevereiro 17, 2024

Quem gosta da liberdade mas prefere servir

 



Andrew Wyeth (1917 – 2009)


Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios? É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez. Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem! Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias? Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade? Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura? Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermo-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios. Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem? Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre. Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil? Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar? Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo. Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna ramo seco e morto.

DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, Étienne de La Boétie,154



quarta-feira, outubro 25, 2023

A política como espaço de humanidade

 


Jim Pringle, Exodo Palestiano, 1948


A época de guerras e revoluções que Lenine predisse para este século e que estamos de facto a viver tornou, a uma escala realmente sem precedentes, o que acontece em política um fator fundamental do destino pessoal de toda a gente. Mas por toda a parte em que este destino se desenrolou na plenitude da sua força, e por toda a parte em que os seres humanos foram colhidos pelo turbilhão dos acontecimentos, esse destino causou calamidades. E não há consolação para a calamidade que a política trouxe às pessoas, nem para a calamidade ainda maior com que hoje ameaça toda a humanidade. As guerras do século XX não são “tempestades de aço” (Jünger) que varrem a atmosfera política, nem “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz): são catástrofes monstruosas que podem transformar o mundo num deserto e a terra em matéria sem vida. Por outro lado, tudo o que estas revoluções -se as considerarmos seriamente, como Marx fazia, “as locomotivas da história” (A luta de classes em França,1848-1850) – demonstraram com certa clareza foi que o comboio da história corre manifestamente em direção a um abismo, e que as revoluções, longe de terem sido capazes de impedir a calamidade, só conseguiram acelerar atrozmente a velocidade do seu desenrolar-se.

Foram as guerras e as revoluções, e não o funcionamento dos governos parlamentares e dos aparelhos dos partidos democráticos, que moldaram as experiências políticas fundamentais do século XX. Ignorá-las equivale a não vivermos no mundo em que de facto vivemos. (…) O que as guerras e as revoluções têm em comum é o facto de estarem sob o signo da força bruta. Se as guerras e as revoluções são as experiências políticas fundamentais do nosso tempo, tal significa que estamos a mover-nos essencialmente sobre um terreno de experiência violenta que nos impele a equacionarmos violentamente a ação política. Este modo de equacionar as coisas pode revelar-se fatal, porque nas condições presentes a única conclusão possível é que a ação política se torna sem sentido, o que não deixa de ser bem compreensível dado o enorme papel que a violência desempenhou efetivamente na história de todos os povos. (…) Se uma ação política que não se coloca sob o signo da força bruta não alcança os seus fins – como na realidade acontece sempre -, isso não torna a ação política nem infundada nem sem sentido. Não passa a ser infundada porque nunca visou um fundo, quer dizer um fim, mas se orientou apenas para objetivos, com maior ou menor sucesso; e não passa a ser sem sentido porque no vaivém do discurso que se troca entre indivíduos e povos, entre Estados e nações, começa por ser criado um espaço em que tudo o mais tem lugar. Aquilo que em linguagem política se chama “um corte de relações” é o abandono desse espaço-entre, que toda a ação violenta começa por destruir antes de empreender a aniquilação daqueles que vivem nas suas margens.

Hannah Arendt, A promessa da política, retirado de “The Literary Trust of Hannah Arendt and Jerome Kohn” (2005), Relógio D’Água, Lx, 2007,  p.159, 160 e 161


Este é o século XXI e a sensação é a mesma. A história caminha para o abismo. A força bruta cresce na proporção direta da descrença no diálogo, nesse espaço político comum entre nações; a política. A política pode negociar situações pacíficas porque se gera,  alimenta e respira no espaço comum, o espaço humano, onde toda a diversidade humana está incluída, independentemente da etnia ou religião ou partido, esse espaço-entre. O seu reconhecimento por parte das nações/Estados que se digladiam e a necessidade marcante de renovação e de verdadeira ação, poderiam ser uma luz ao fundo do túnel. Guterres ontem tentou dizer que a força bruta surge da desesperança, pela falta de reconhecimento da humanidade do outro, perpetrando sobre ele toda a espécie de humilhações (Israel sobre a Palestina). Como representante das Nações Unidas, deve ter um olhar sobre a história, reconhecer essas humilhações sistemáticas e consentidas pelo Ocidente.HS

quarta-feira, outubro 18, 2023

Apologia do bom selvagem?

 


Newsha Tavokolian, Portrait of Esmaiel and his brother Gholamreza. Bakhtiari Province, Iran, 2018

Uma tarde, próxima do fim do primeiro verão, indo eu buscar ao povoado um sapato que havia mandado consertar, fui apanhado e metido na cadeia, porque, (…) não pagara impostos ao Estado, deixando assim de reconhecer a autoridade de uma instituição que, à porta do Senado, compra e vende homens, mulheres e crianças como se fossem reses. Tinha-me retirado nos bosques com outros objetivos. Mas, onde quer que um homem vá o grupo há de segui-lo e agarrá-lo com as suas sórdidas instituições e, se possível, constrange-lo a tomar parte na desesperada sociedade de Odd Fellows   (Sociedade de auxílio mútuo com fins educacionais e piedosos, fundada na Inglaterra do século XVIII). É bem verdade que eu podia ter resistido à força, com maior ou menor resultado, podia ter-me enfurecido contra a sociedade; mas preferi que a sociedade se enfurecesse contra mim, por ser ela a parte desesperada. Entretanto, fui libertado no dia seguinte, apanhei o sapato já consertado e regressei aos bosques a tempo de colher o meu jantar de mirtilos na colina de Fair Haven. Nunca fui aborrecido por ninguém a não ser por pessoas que representam o Estado. Não tinha fechadura nem ferrolho, salvo na gaveta onde guardava os meus papéis, nem sequer dispunha de um prego para pôr no trinco ou nas janelas. Nunca fechei a porta de dia ou de noite, ainda que fosse ausentar-me durante vários dias, nem mesmo quando no Outono seguinte fui passar duas semanas aos bosques do Maine. E, contudo, a minha casa era mais respeitada do que se tivesse sido cercada por um pelotão de soldados. O andarilho fatigado podia repousar e aquecer-se à minha lareira, o literato entreter-se com os pucos livros em cima da mesa, e o curioso, ao abrir a porta do armário na parede, ver o que havia sobrado do almoço e o que eu pretendia cear. No entanto, embora muita gente de todas as classes seguisse por este caminho rumo ao lago, não sofri, por isso, nenhum inconveniente sério e nunca perdi nada, exceto um pequeno livro, um volume de Homero talvez impropriamente dourado, que espero tenha entretanto sido encontrado por um soldado do nosso acampamento. Se todos os homens vivessem tão simplesmente como eu naquele tempo, estou convencido de que não haveria roubos e assaltos. Estes só ocorrem nas comunidades em que alguns têm mais do que é suficiente enquanto outros não têm o necessário. Os Homeros de Pope (Pope, poeta do século XVIII tradutor de Homero) logo se distribuiriam de maneira equitativa:

“Aos homens nem molestaram as guerras

Quando estavam em jogo apenas as gamelas.”

Vós que governais os assuntos públicos, que necessidade tendes de aplicar castigos? Amai a virtude, e o povo será virtuoso. As virtudes de um homem superior são como o vento; as do homem comum como o capim; e quando sobre ele o vento passa, o capim verga-se.

Henry David Thoreau, Walden, ou a vida nos bosques, Lx, 2018, Antígona, p.193, 194, 195


A desconfiança em relação aos assuntos públicos, por parte dos que defendem ferozmente a sua individualidade como sinónimo de liberdade, não me parece alternativa. A visão da pobreza como panaceia para eliminar os males do mundo e  esta visão de uma corrupção endémica do Estado e dos assuntos públicos terá, como consequência, o afastamento dos indivíduos da participação no espaço público. Sem esta participação envolvida nenhuma espécie de liberdade poderá ser garantida, pois a liberdade é, sem dúvida uma conquista de certas sociedades que abriram, ou foram forçadas a abrir o espaço público a todos os indivíduos. Mas, por inércia ou abastança ou desconfiança, afastamo-nos progressivamente desse espaço, preferimos aderir a fórmulas milagrosas, a palavras salvadoras que assentem como luva nas nossas frustrações ou mal estares, está bom de ver que o resultado não pode ser brilhante, e é arriscado.  HS

sexta-feira, junho 02, 2023

Crítica ao princípio da diferença de Rawls.


Dennis Sock, Casal com criança, EUA, 1952

“Pensa-se normalmente – é isso que pensa Rawls, por exemplo – que o princípio da diferença autoriza um argumento a favor da desigualdade baseado em incentivos materiais. A ideia é que as pessoas talentosas serão mais produtivas do que seriam de outra forma se, e apenas se, ganharem mais que o salário comum – e alguma da sua produção adicional pode ser usada para benefício dos mais desfavorecidos. Alega-se que a desigualdade resultante dos incentivos materiais diferenciados, justifica-se pelo princípio da diferença, pois, diz-se, esta desigualdade beneficia os mais desfavorecidos.

Contudo, pelas razões que se seguem, creio que o argumento dos incentivos a favor da desigualdade representa uma aplicação distorcida do princípio da diferença (…). Ou as pessoas acreditam que as desigualdades são injustas se não são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, ou não acreditam que isso é uma exigência da justiça.  Se não acreditam no princípio da diferença, então a sua sociedade não é justa no sentido rawlsiano apropriado, pois uma sociedade é justa, segundo Rawls, só se os seus membros afirmam e aceitam os princípios da justiça corretos. (…)

Passemos então à outra possibilidade -as pessoas talentosas afirmam o princípio da diferença (…). Podemos perguntar por que razão, à luz da sua crença no princípio, exigem ganhar mais que os não talentosos por um trabalho que, de facto, pode requerer um talento especial, mas que não é especialmente desagradável (…).  Podemos perguntar aos talentosos se o dinheiro que ganham a mais é necessário para melhorar a posição dos mais desfavorecidos -essa é a única justificação que, segundo o princípio da diferença, poderá haver para ganharem mais. Será isso simplesmente necessário? Ou será necessário apenas na medida em que os talentosos decidiriam produzir menos, ou não aceitar os lugares para os quais estão habilitados, se a desigualdade fosse eliminada (por exemplo através de impostos que redistribuíssem os rendimentos de forma a se obter um resultado perfeitamente igualitário? (…)

As pessoas talentosos não poderiam afirmar, para se justificarem (…) que as suas recompensas superiores são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, dado que são elas próprias que tornam essas recompensas necessárias, recusando-se a trabalhar por recompensas normais tão produtivamente como o fazem por recompensas excecionalmente  altas.  As recompensas altas, portanto, são necessárias apenas porque as escolhas das pessoas talentosas não obedecem propriamente ao princípio da diferença (…)

Deste modo, o princípio da diferença pode justificar a desigualdade apenas numa sociedade em que nem todos o aceitem. Não pode, portanto, justificar a desigualdade de uma forma apropriadamente rawlsiana.”

Se és igualitarista, como ficaste tão rico? G.A. Cohen pp.124-127


 

sexta-feira, maio 26, 2023

Uma aproximação do pensamento de Nozick a Rawls.


Fotografia de Chien-Chi Chang -Bar no centro de Lviv. Não é servido álcool devido a uma proibição do Estado. Lviv, Ukraine, March 22, 2022 

 Em 1971, um até então obscuro professor de filosofia de Harvard, John Rawls, publicou um livro que acabou por aclamá-lo como “o maior filósofo político da América”. No livro “ Teoria da Justiça”, Rawls apresentou uma descrição da justiça na forma de dois princípios, ordenando respetivamente que as “liberdades básicas iguais” das pessoas – direitos como liberdade de expressão, liberdade de consciência e o direito de voto — devem ser maximizados, e que as desigualdades em bens sociais e económicos, que não sejam a liberdade, são aceitáveis apenas se promoverem o bem-estar dos membros “menos favorecidos” da sociedade. (Chamou este último de “princípio da diferença”).

Três anos após o aparecimento de “Teoria”, um colega do seu departamento, Robert Nozick, publicou uma resposta libertária, “Anarquia, Estado e Utopia”, que argumentava que só um "estado mínimo", dedicado a proteger as pessoas contra crimes como assalto, roubo e fraude pode ser moralmente justificado.

O livro de Nozick era muito mais conciso do que a “Teoria” de Rawls  e não passou despercebido; ganhou o National Book Award de 1975 e mais tarde foi listado pelo Times Literary Supplement como um dos 100 livros mais influentes do século XX. “Anarquia” continua a ser um elemento imprescindível do currículo dos cursos de teoria política, onde geralmente é o contraponto à teoria de Rawls, para sugerir que o liberalismo do estado de bem-estar social de Rawls e o libertarismo de Nozick representam todo o espectro de possibilidades que se colocam às democracias liberais contemporâneas.

No entanto, a reputação e a influência de Nozick na academia - para não falar do reconhecimento de seu nome no mundo mais amplo do direito e da política - nunca rivalizaram com as do seu colega. (Embora 15 anos mais novo que Rawls, Nozick morreu no mesmo ano, 2002, após uma longa luta contra o cancro.) Sem dúvida, parte da explicação é que o “liberalismo de esquerda” de Rawls (como ele mais tarde descreveu a sua posição) se harmoniza muito melhor com a orientação típica do ensino contemporâneo. Além disso, ao contrário de Rawls, Nozick nunca fez do desenvolvimento de uma determinada doutrina política, a preocupação unificadora de sua carreira académica. Em vez disso, o seu intelecto abrangente levou-o a continuar “Anarchy” (seu primeiro livro) com outras obras abordando uma variedade considerável de tópicos filosóficos, do livre arbítrio à teoria da decisão (no seu livro de 1989 “The Examined Life”) amor , morte, fé e o sentido da vida.

Mais importante, no entanto, “Anarquia” nunca constituiu uma verdadeira alternativa à doutrina de Rawls, uma vez que, em todas as questões substantivas, exceto na legitimidade da redistribuição governamental da riqueza, Nozick e Rawls concordaram. (E mesmo nessa questão, numa passagem normalmente ignorada pelos seus admiradores, o próprio Nozick foi evasivo.

Como a “Teoria” de Rawls, “Anarquia” começa com uma declaração abrangente da primazia da justiça – entendida, neste último livro, como direitos individuais, definidos como liberdades, isto é, a ausência de restrições externas sobre as nossas ações – sobre todos os outros critérios para avaliar políticas sociais e instituições. Em outras palavras, Nozick reteve mais ou menos o primeiro princípio de Rawls (liberdade) enquanto eliminou o segundo (diferença).

Sugerindo que “a questão fundamental da filosofia política” não é como o governo deve ser organizado, mas “se deve haver algum estado”, Nozick oferece uma adaptação da doutrina de John Locke de que o governo é legítimo apenas na medida em que oferece maior segurança pela vida, liberdade e propriedade do que existiria num “estado de natureza” caótico e pré-político. Mais enfaticamente do que Locke, no entanto, Nozick conclui que a necessidade de segurança justifica apenas um estado mínimo, ou “vigia noturno”, uma vez que não pode ser demonstrado, acredita, que todos os indivíduos racionais achariam necessário um governo mais extenso para garantir a segurança dos seus direitos.

No lugar do “princípio da diferença” de Rawls, Nozick propõe uma “teoria do direito” da justiça, segundo a qual as propriedades individuais são justificadas apenas se derivarem de aquisições justas ou transferências (voluntárias). Notavelmente, Nozick nunca especifica os critérios de aquisição justa. No entanto, em vez de visões de “corte de tempo atual” da justiça distributiva, como a de Rawls, que avalia as participações atuais de acordo com um padrão externo de equidade, Nozick afirma um padrão “histórico”, que determina a legitimidade de uma distribuição apenas porque teve origem num procedimento justo.

Nozick oferece uma crítica espirituosa e incisiva da lógica de Rawls para o seu princípio da diferença, refutando a alegação implausível de que apenas porque os membros de uma sociedade beneficiam da cooperação social, os membros menos favorecidos têm automaticamente direito a uma participação nos ganhos de seus pares mais bem-sucedidos.

O libertarismo de Nozick, que compara a tributação da renda ao trabalho forçado, sofre, no entanto, de um defeito correspondente. Nozick nunca reconhece a necessidade de um regime liberal para garantir  um certo nível de segurança social e benefícios educacionais a todos os cidadãos, na medida em que suas circunstâncias permitirem, nem que seja para garantir a lealdade contínua dos pobres a esse regime. Como Rawls, Nozick procurou impor uma visão abstrata de justiça na vida política, relegando considerações de viabilidade (isto é, de conformidade com as prováveis demandas de seres humanos reais) para serem resolvidas por outros, no espírito da máxima de Immanuel Kant, “que a justiça triunfe, ainda que, por ela, pereça o mundo”.

 Ironicamente, no entanto, o próprio Nozick finalmente reconhece que sua teoria do direito é insuficiente para refutar a necessidade de um estado redistributivo, uma vez que nunca pode ser demonstrado se as propriedades existentes derivam de uma série ininterrupta de transferências voluntárias ou se derivam de algum ato original de conquista injusta. Assim, surpreendentemente, ele acaba sugerindo que algo como o princípio da diferença de Rawls é moralmente exigido afinal, em nome da “retificação”, na duvidosa premissa de que aqueles atualmente menos favorecidos têm a maior probabilidade de serem descendentes de vítimas anteriores de injustiça.

 Esta não é a única área de acordo entre Nozick e Rawls. Como Rawls, Nozick insiste que a justiça de uma sociedade seja avaliada apenas por causa da correspondência dos seus procedimentos com as noções preferidas de justiça, e não por realmente recompensar modos de vida moralmente dignos. Também como Rawls, Nozick termina seu livro representando a sociedade justa como moralmente libertária ao extremo, negando implicitamente a legitimidade de leis que proíbem práticas como a prostituição e a venda de drogas viciantes.

 Embora tenha reparado a sua crítica às falhas que descobriu na teoria de Rawls, com uma notável homenagem à sua ostensiva “beleza”, Nozick era muito mais brilhante e um escritor muito melhor e mais instigante do que o seu colega. Infelizmente, compartilhava com Rawls uma visão restrita da filosofia política como um empreendimento dedicado à produção de teorias abstratas, com pouca ou nenhuma consideração pela fundamentação da justiça na natureza humana. Aqueles que buscam uma alternativa ao igualitarismo superficial e ao libertarismo moral de nosso tempo fariam muito melhor em retornar ao pensamento dos maiores estadistas da América, como Lincoln e os autores de “The Federalist”; aos filósofos liberais que os guiaram, nomeadamente Locke e Montesquieu, e finalmente aos maiores filósofos clássicos, para os quais a teorização política era inseparável da busca por uma séria compreensão empírica da condição humana e do bem humano.

 David Lewis Schaefer, "Robert Nozick and the Coast of Utopia," New York Sun, April 30, 2008.

 

sexta-feira, maio 19, 2023

Será que um contrato social hipotético dá alguma garantia de justiça?


 

David Seymour (Polónia, 1911/1956), 1º dia de escola, Vila de Pilis,


Analisemos agora uma experiência mental: suponhamos que, ao reunir-nos para definir os princípios, não saibamos a qual categoria pertencemos na sociedade. Imaginemo-nos cobertos por um “véu de ignorância” que temporariamente nos impeça de saber quem realmente somos. Não sabemos a que classe social ou género pertencemos e desconhecemos a nossa raça ou etnia, as nossas opiniões políticas ou crenças religiosas. Tampouco conhecemos as nossas vantagens ou desvantagens — se somos saudáveis ou frágeis, se temos alto grau de escolaridade ou se abandonámos a escola, se nascemos numa família estruturada ou numa família desestruturada. Se não possuíssemos essas informações, poderíamos realmente fazer uma escolha a partir de uma posição original de equidade. Já que ninguém estaria numa posição de negociação superior, os princípios escolhidos seriam justos. É assim que Rawls entende um contrato social — um acordo hipotético numa posição original de equidade. Rawls convida-nos a raciocinar sobre os princípios que nós — como pessoas racionais e com interesses próprios — escolheríamos caso estivéssemos nessa posição. Ele não parte do pressuposto de que todos sejamos motivados, na vida real, apenas pelo interesse egoísta; pede apenas que deixemos de lado as nossas convicções morais e religiosas para realizar essa experiência mental. Que princípios escolheríamos?

Primeiramente, raciocina, não optaríamos pelo utilitarismo. Sob o véu de ignorância, cada um de nós ponderaria: “Pensando bem, posso vir a ser membro de uma minoria oprimida.” E ninguém arriscaria ser o cristão que é atirado aos leões para o divertimento da multidão. Nem escolheríamos o simples laissez-faire, o princípio libertário que daria às pessoas o direito de ficar com todo o dinheiro que ganhassem numa economia de mercado. “Posso acabar por ser o Bill Gates”, alguém raciocinaria, “mas também posso, por outro lado, ser um sem-abrigo. Portanto, é melhor evitar um sistema que me deixe desamparado e na penúria. “

Rawls acredita que dois princípios de justiça, poderiam emergir do contrato hipotético. O primeiro oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de expressão e religião. Esse princípio sobrepõe-se a considerações sobre utilidade social e bem-estar geral. O segundo princípio refere-se à equidade social e económica. Embora não requeira uma distribuição igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e económicas que beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade. Os filósofos questionam se os participantes do contrato social hipotético de Rawls escolheriam os princípios que ele afirma que escolheriam. Mais à frente veremos por que Rawls acha que esses dois princípios seriam escolhidos. Mas, antes de abordar os princípios, analisemos uma questão anterior a essa: A experiência hipotética de Rawls é a maneira correta de abordar a questão da justiça? Como podem princípios da justiça resultar de um acordo que jamais aconteceu de fato?

Michael Sandel, Justiça, Lx, Presença, pp.150, 151


sábado, maio 06, 2023

Considere-se a cooperação social...



Susan Meiselas, prisão e documentação de um rapaz de 12 anos, fronteira do México, 1989, USA



Considere-se de novo a ideia de cooperação social. Como se irão determinar os justos termos da cooperação? Serão, simplesmente, estabelecidos por uma autoridade externa, distinta das pessoas que cooperam entre si? Serão, por exemplo, estabelecidos por uma lei divina? Ou serão esses termos reconhecidos como justos pelas pessoas que cooperam, tomando como referência o seu conhecimento de uma ordem moral independente? Por exemplo, serão reconhecidos como termos exigidos pela lei natural ou pela esfera de valores conhecida por intuição racional? Ou serão esses termos estabelecidos através de uma aceitação por parte das próprias pessoas á luz daquilo que consideram a sua vantagem recíproca? (…)

A justiça como equidade reformula o contrato social e adota a última das hipóteses consideradas os justos termos da cooperação social são concebidos entre aqueles que nela se envolvem, isto é, por cidadãos livres e iguais que nascem na sociedade em que passam toda a sua vida. Mas o seu acordo, como qualquer outro acordo válido, deve ser firmado em condições apropriadas.

John Rawls, O liberalismo político, p.49 (adaptado).


sexta-feira, abril 21, 2023

Nós, os Refugiados



Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados “refugiados”. Chamamo-nos uns aos outros “recém-chegados” ou “imigrantes”. Os nossos jornais são jornais para “americanos de língua alemã”; e, tanto quanto sei, não há e nunca houve qualquer clube fundado pelos perseguidos por Hitler cujo nome indicasse que os seus membros são refugiados.
Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a procurar refúgio devido a algum ato cometido ou por tomar alguma opinião política.
Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos nenhum ato e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radical. O sentido do termo “refugiado” mudou connosco. Agora “refugiados” são aqueles de nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comités de refugiados.
Antes desta guerra começar éramos ainda mais sensíveis quanto ao sermos chamados refugiados. Demos o nosso melhor para provar aos outros que éramos apenas imigrantes comuns. Afirmávamos que tínhamos partido pela nossa própria vontade para países da nossa escolha e negávamos que a nossa situação tivesse algo a ver com “supostos problemas judaicos”. Sim, éramos “imigrantes” ou “recém-chegados” que tínhamos deixado o nosso país porque, num belo dia, não nos convinha mais ficar, ou puramente por razões económicas. Queríamos reconstruir as nossas vidas, isso era tudo. De modo a reconstruir a vida tem que se ser forte e otimista. Portanto, éramos bastante otimistas.

Com efeito, o nosso otimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a dizê-lo. A história da nossa luta finalmente tornou-se conhecida. Perdemos a nossa casa o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos a nossa ocupação o que significa a confiança de que tínhamos algum uso neste mundo. Perdemos a nossa língua o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos, a expressão impassível dos sentimentos. Deixámos os nossos familiares nos guetos polacos e os nossos melhores amigos foram mortos em campos de concentração e tal significa a rutura das nossas vidas privadas.
Não obstante, logo que fomos salvos – e a maioria de nós teve que ser salvo várias vezes – começámos a nossas novas vidas e tentávamos seguir tão próximo quanto possível todos os bons conselhos que os nossos salvadores nos transmitiram. Foi-nos dito; e esquecemos mais rápido do que alguém poderia imaginar. De um modo amigável foi-nos lembrado que o novo país tornar-se-ia uma nova casa; e depois de quatro semanas em França ou seis semanas na América, fingiríamos ser franceses ou americanos. Os mais otimistas entre nós teriam mesmo acrescentado que toda a sua vida anterior teria sido passada numa espécie de exílio inconsciente e apenas o seu novo país lhes ensinaria agora com o que se parece uma casa. É verdade que por vezes levantámos objeções quando nos disseram para esquecer o nosso trabalho anterior; e, logo que o nosso estatuto social está em jogo é-nos extremamente difícil desembaraçarmo-nos dos nossos ideais. Com a língua, contudo, não encontramos dificuldades: depois de um único ano os otimistas estavam convencidos que falavam inglês tão bem quanto a sua língua materna; e depois de dois anos juravam solenemente que falavam inglês melhor do que qualquer outra língua – o seu alemão é uma língua que dificilmente lembram.
De modo a esquecer mais eficientemente preferíamos evitar qualquer alusão aos campos de concentração ou de internamento que experienciámos em quase todos os países europeus – poderia ser interpretado como pessimismo ou falta de confiança na nossa nova pátria.
Além disso, quão frequentemente nos foi dito o que ninguém gosta de ouvir de todo; o inferno não é mais uma crença religiosa ou uma fantasia, mas algo tão real quanto as casas, as árvores e as pedras. Aparentemente ninguém quer saber que a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo dos que são postos em campos de concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus amigos.

Hannah Arendt, Nós, os refugiados, 
Tradutor: Ricardo Santos, Lusosofia

terça-feira, março 29, 2022

Não pensar no outro, não se pôr no lugar do outro. A incapacidade de pensar, em certas circunstâncias, pode provocar o maior dos males. A propósito do julgamento de Adolfo Eichmann

 


Fotografia do julgamento do coronel das SS Adolf Eichmann, Jerusalém, 1960

Eichmann trabalhava na organização e transporte de milhares de homens, mulheres e crianças judeus para os campos de concentração na Polónia. Foi julgado por um tribunal israelita depois de ter sido raptado na Argentina para onde fugiu depois da guerra ter acabado. Foi condenado à morte e enforcado. No relato do seu julgamento Hannah Arendt faz o retrato de um homem que está longe de ser uma encarnação do mal, embora seja responsável ou coresponsável ou activo cooperante no crime de extermínio em massa de milhares ( milhões?) de pessoas. 


O texto alemão do interrogatório policial gravado, realizado de 29 de maio de 1960 a 17 de

Janeiro de 1961, com cada página corrigida e aprovada por Eichmann, constitui uma verdadeira mina de ouro para um psicólogo — contanto que ele tenha a sabedoria de entender que o horrível pode ser não só ridículo como rematadamente engraçado. Parte do humor não pode ser transmitido noutra língua, porque está justamente na luta heróica que Eichmann trava com a língua alemã, que invariavelmente o derrota. É engraçado quando ele usa o termo “palavras aladas” (geflügelte Worte, um coloquialismo alemão para designar citações famosas dos clássicos) querendo dizer frases feitas, Redensarten, ou slogans, Schlagworte. Era engraçado quando, durante a inquirição sobre os

documentos Sassen, feita em alemão pelo juiz presidente, ele usou a frase “kontra geben” (pagar na mesma moeda), para indicar que havia resistido aos esforços de Sassen para melhorar suas histórias; o juiz Landau, desconhecendo evidentemente os mistérios dos jogos de cartas (de onde provém a expressão), não entendeu, e Eichmann não conseguiu achar nenhuma outra maneira de se expressar.

Vagamente consciente de uma incapacidade que deve tê-lo perseguido ainda na escola — chegava a ser um caso brando de afasia — ele pediu desculpas, dizendo: “A minha única língua é o “oficialês” [Amtssprache]”. Mas a questão é que o “oficialês” transformou-se na sua única língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê. (Será que foram esses “clichés” que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann demonstrar esse lado positivo de seu carácter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico lhe deu um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” — “Das ist aber ein sehr unerfreuliches Buch” — disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia” — só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar da sua má memória, repetia palavra por palavra as

mesmas frases feitas e clichés semi-inventados (quando conseguia fazer uma frase própria, ele

repetia-a até transformá-la em cliché) sempre que se referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse a escrever as suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer estivesse a falar com o interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.

Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal, Companhia das letras, pp.33

Tradução José Siqueira

segunda-feira, junho 01, 2020

O direito natural corresponde ao que a vontade geral deseja


Eugène Delacroix, A liberdade guiando o povo (1830)

Se, pois, meditardes atentamente em tudo o que antes foi dito, ficareis convencidos de que: 1º o homem que escuta tão-só a vontade particular é inimigo do género humano; 2º a vontade geral é, em cada indivíduo, um acto puro do entendimento que, no silêncio das paixões, raciocina sobre o que o homem pode exigir do seu semelhante, e sobre o que o seu semelhante tem o direito de dele exigir; 3º esta consideração da vontade geral da espécie e do desejo comum é a regra da conduta relativa à reciprocidade entre particulares na mesma sociedade, de um particular para com a sociedade de que é membro, e da sociedade, de que é membro, para com todas as outras sociedades; 4º a submissão à vontade geral é o laço que une todas as sociedades, sem dele exceptuar as que são formadas pelo crime. Ah! A virtude é tão bela que até os ladrões respeitam a sua imagem no fundo das suas cavernas. 5º as leis devem ser feitas para todos e não apenas para um; caso contrário, este ser solitário seria semelhante ao argumentador violento, que remetemos ao silêncio no parágrafo 5;  6º uma vez que, das duas vontades, uma geral e outra particular, a vontade geral nunca erra, não é difícil ver a qual delas, para a felicidade do género humano, deverá pertencer o poder legislativo, e que veneração se há-de prestar aos mortais respeitáveis cuja vontade particular coincide com a autoridade e a infalibilidade da vontade geral; 7º mesmo que imaginássemos a noção das espécies num fluxo perpétuo, a natureza do direito natural não mudaria, porque diria sempre respeito à vontade geral e ao  desejo comum de toda a espécie; 8º a equidade está para a justiça como a causa para o efeito, ou seja, a justiça só pode ser a equidade explícita; 9º por fim, todas estas consequências são evidentes para quem raciocina, e quem não o quiser fazer, renunciando à qualidade de homem, deve ser tratado como um ser desnaturado.

Diderot, Direito natural, Artigo da Enciclopédia (1751-1765)

segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Actual, apesar de ter mais de trezentos anos


John Locke (1632-1704)


Prezado Senhor:

Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância entre os cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero como o sinal principal e distintivo de uma verdadeira igreja. Porquanto, seja o que for que certas pessoas alardeiem da antiguidade de lugares e de nomes, ou do esplendor de seu ritual; outras, da reforma de sua doutrina, e todas da ortodoxia de sua fé (pois toda a gente é ortodoxa para si mesma); tais alegações, e outras semelhantes, revelam mais propriamente a luta de homens para alcançar o poder e o domínio do que sinais da igreja de Cristo. Se um homem possui todas aquelas coisas, mas se lhe faltar caridade, brandura e boa vontade para com todos os homens, mesmo para com os que não forem cristãos, ele não corresponde ao que é um cristão. "Os reis dos gentios exercem domínio sobre eles ", disse nosso Salvador aos seus discípulos, "mas vós assim não sereis "(Lucas, 22, 25). O papel da verdadeira religião consiste em algo completamente diverso. Não se instituiu em vista da pompa exterior, nem a favor do domínio eclesiástico e nem para se exercitar através da força, mas para regular a vida dos homens segundo a virtude e a piedade. Quem quer que se aliste sob a bandeira de Cristo deve, antes de tudo, combater seus próprios vícios, seu próprio orgulho e luxúria; por outro lado, sem santidade da vida, pureza de conduta, benignidade e brandura do espírito, será em vão que almejará a denominação de cristão. "Tu, quando te converteres, revigora teus irmãos"; disse nosso Senhor a Pedro (Lucas, 22, 32). 

 Quem for descuidado com sua própria salvação dificilmente persuadirá o público de que está extremamente preocupado com a de outrem. Ninguém pode sinceramente lutar com toda a sua força para tornar outras pessoas cristãs, se não tiver realmente abraçado a religião cristã em seu próprio coração. Se se acredita no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor. Assim sendo, apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens em nome da religião, se o fazem por amizade e bondade. E, então, certamente, e unicamente então, acreditarei que o fazem, quando vir tais fanáticos castigarem de modo semelhante seus amigos e familiares, que claramente pecaram contra preceitos do Evangelho; quando os vir perseguir a ferro e fogo membros de sua comunidade religiosa, que estão corrompidos pelos vícios e se não se emendarem estão indubitavelmente condenados; e quando os vir manifestar a ânsia e o amor de salvarem suas próprias almas mediante a inflição de todos os tipos de tormentos e crueldades. Visto que é por caridade, como pretendem, e zelo pelas almas humanas, que os despojam de sua propriedade, mutilam seus corpos, os torturam em prisões infectas e afinal até os matam, afim de convertê-los em crentes e obterem sua salvação; por que permitem que a fornicação, a fraude, a malícia e outros vícios, os quais, segundo o Apóstolo (Rom, 1), cheiram obviamente a paganismo, grassem desordenadamente entre sua própria gente? Estas, e artimanhas semelhantes, são mais opostas à glória de Deus, à pureza da Igreja e à salvação das almas, do que qualquer dissidência consciente, por mais errônea que seja, das decisões eclesiásticas, ou do afastamento do culto público, embora acompanhados de uma existência pura. Por que, então, este zelo abrasador por Deus, pela Igreja e pela salvação das almas - realmente abrasador, na fogueira - ignora, sem qualquer castigo ou censura, tais fraquezas e vícios morais, reconhecidos por todos como diametralmente opostos à confissão do cristianismo, e devota-se inteiramente na aplicação de todas as suas energias para introduzir cerimónias, ou para a correção das opiniões, as quais em grande parte dizem respeito a temas sutis que transbordam a compreensão ordinária dos homens?
J. Locke, CARTA ACERCA DA TOLERÂNCIA , 


Coleção “Os Pensadores” – Abril Cultural – pág. 03-6 

 Tradução de Anoar Aiex