Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e
Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na
memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas
batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro,
donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se
oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para
desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam
soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de
comandantes desses navios? É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses
dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da
liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez. Quantos prodígios temos
ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a
defendem! Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens,
todos os dias? Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um
único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade? Se
casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem,
quem não diria que era tudo invenção e impostura? Ora o mais espantoso é
sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso
defendermo-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a
servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa
alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio,
basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam
oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em
que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que,
podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de
liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos
os meios. Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria
mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à
sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser
homem? Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir
que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre. Que mais é preciso para
possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um ato de vontade,
se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil? Como pode
alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de
sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida
aborrecida e a morte salutar? Veja-se como, ateado por pequena fagulha,
acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta
mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer
lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo.
Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais
arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem,
mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se
nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou
combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz,
sem humidade e alimento, se torna ramo seco e morto.
DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, Étienne de La Boétie,154
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