sexta-feira, janeiro 26, 2024

A nova nomenclatura da ciência química

 


Foto: Seymor
Tendo reunido aliados, Lavoisier empenha-se numa ação em profundidade: a reforma da linguagem. Já desde há várias dezenas de anos que os químicos se queixavam da imperfeição da sua nomenclatura. Os nomes das substâncias químicas, forjados ao longo de séculos, sancionadas pelo uso, perpetuavam a memória de uma tradição, mas transmitiam por vezes ideias falsas. Além disso, as descobertas de substâncias novas no decurso do século XVIII impunham a criação de novas palavras. Levados pela preocupação de racionalizar a química, Torbern Bergman e Guyton de Morveaub tinham avançado, mas sem sucesso, com projetos de reforma para introduzir denominações sistemáticas, um pouco com base no modelo de nomenclatura concebido por Lineu, na Botânica. Lavoisier, convencido da importância das palavras na formação das ideias, (…) agarrou a ocasião para realizar o seu desígnio em química. Banir os nomes em uso é construir uma língua artificial, unicamente forjada com base na teoria Lavoisieriana; é acabar com o passado. Melhor; é renascer pelo batismo. (…)

É preciso dizer que ela (a nova nomenclatura) responde verdadeiramente a uma necessidade urgente de escapar ao caos das denominações múltiplas (…) Mesmo se os autores se mostram cuidadosos em assegurar uma continuidade ao conservarem os nomes do passado que não veiculam ideias falsas, a reforma é uma verdadeira revolução porque introduz um novo espírito. É mais um “método para nomear” que uma nomenclatura. O princípio de base é uma lógica da composição: constituir um alfabeto de palavras simples para designar as substâncias simples, depois designar as substâncias compostas por palavras compostas, formadas pela justaposição de palavras simples (…)

O método mostrou o seu valor: dois séculos mais tarde, com alguns arranjos de permeio, continua em vigor. A nomenclatura é o elemento essencial que metamorfoseia a revolução química em formação. Não é apenas o manifesto de uma escola, é uma nova teoria química. Ela esvazia a tradição por um duplo efeito de rutura. Rutura irreversível com o passado: numa geração, os químicos esquecem a sua língua natural forjada por séculos de uso. Os textos pré-lavoisierianos, tornam-se ilegíveis, são mergulhados numa obscura pré-história. Rutura também no espaço social entre a química académica que se desenvolve no quadro da nova nomenclatura e a química artesanal dos droguistas e perfumistas que continuam a falar de espírito de sal, de vitríolo…Acabou-se o tempo da Enciclopédia onde um químico como Venel podia dizer com orgulho que “a química tem o seu próprio corpo e dupla língua, a popular e a científica”.

Michel Serres, Lavoisier: Uma revolução científica in História das Ciências, Lisboa (1989) Terramar, p.p208,209

quarta-feira, janeiro 17, 2024

Escolher um filme para a aula

 




Andei algumas semanas entusiasmada com a escolha de um filme para mostrar aos alunos. Tantos filmes vistos, mas poucos se enquadravam nas minhas exigências. Queria um filme bom, e pus-me a magicar na qualidade dos filmes, O que é um filme bom? Teria de reunir quatro condições: Eu ter gostado muito, era a primeira; a segunda era comunicar bons valores. Fiquei meio envergonhada por pensar de uma forma um tanto arcaica, bons filmes, bons valores...penso que isto só de o escrever parece algo muito discutível, mas para mim é claro o que são bons valores; são valores que não se limitam a ser materiais ou utilitários, são valores como a lealdade, a confiança, a honestidade.  Em terceiro lugar teria de focar problemas da adolescência ou, de algum modo, estar relacionado com a adolescência. Por fim, a quarta condição era mesmo um filtro poderoso, o filme não podia exceder  (muito)o tempo de uma aula -90m-. A escolha recaiu sobre apenas dois filmes " O céu de Outubro" e "Eduardo mãos de tesoura".  

O primeiro filme era sobre um grupo de rapazes, numa vila de província mineira. Todos com o estigma de terem de ser, mais tarde ou mais cedo, mineiros.  Um dia, nas aulas de Física e Química a professora lança um repto, porque não concorrer a uma feira de de invenções que iria ocorrer, daí a pouco tempo, na cidade mais perto? Os rapazes aceitam o desafio e lançam-se á descoberta das leis da física através da construção de um foguete. Ganham o concurso e uma porta de saída da vila se abre. Trata da lealdade, do espírito de equipa, da perseverança.  

O outro filme "Eduardo, mãos de tesoura", acabou por ser o eleito. Bravo e arrojado, inventivo e, laçado pela poesia. Há uma estrada sinuosa que leva a um castelo onde vive um rapaz inacabado, todo normal, menos nas mãos que são tesouras. Abaixo do castelo uma comunidade onde tudo é normal, isto é, as casas parecem-se, os automóveis, os hábitos, e nada acontece senão rotina. Como irá esta comunidade aceitar o rapaz disforme? Primeiro encantada e depois, quando ele exige para si alguma dignidade, feroz a negá-lo, feroz a afastar o disforme. 

O curioso deste Eduardo é que, embora inacabado (atenção que o Deep é bonito, este disforme, é mais, um pouco esquisito) é excelentemente acabado no carácter, ele é mais humano, no bom sentido do termo, que os outros cujo corpo é normal. O desejo de normalidade é a mãe de todos os vícios. Ponto. Encanta-me.

 



quarta-feira, janeiro 10, 2024

Os filmes

 


Filme “Dias perfeitos” de Wim Wenders

Filme com um homem cujo corpo é máxima expressão, os seus gestos configuram o que faz, faz com majestosa atenção em equilíbrio perfeito entre a sua vontade e a sua ação. O que faz é um conjunto de gestos envoltos numa singularidade única na sua precisão. Cada gesto perfaz a ação e cada ação é um conjunto de gestos rigorosamente medidos como se comunicassem mais sobre o que é um homem do que descrevessem aquilo que faz. Os gestos são assim sacralizados, atingindo um patamar de comunicação que transcende o gesto e nos aproxima do símbolo, numa experiência da essência da vida como um ritual cujo sentido nos escapa, cujo sentido não está ao nosso alcance; nessa condição a ação não se explica na sua finalidade útil, ela não aliena o seu agente, não o escraviza por causa do fim que exige mas antes o liberta em virtude de reverter a favor da rigorosa aplicação de um talento, da rigorosa aplicação de um carácter singular que vive mas, não se esgota no que faz antes o recria de acordo com o seu desejo e sensibilidade de modo a transformar o gesto mais humilhante em estético ou lúdico. Ou é isso que o cinema faz, o cinema transforma essa matéria concreta em comando invisível e força transformadora.

Talvez seja por isso que o filme me parece feliz, permite-me pensar a felicidade enquanto autenticidade de um ser que permanece na sombra, indizível, supremo, sem nunca poder ser catalogado ou mesmo entendido. Percurso lento estimulado pela própria aventura do acontecimento, a vida como oportunidade renovada de começar algo de novo, mesmo que pareça tudo repetido. HS

A banda sonora:

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