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quinta-feira, novembro 02, 2023

A obrigação de ajudar


 Síria 2014

Suponhamos que me apercebo de que uma criança caiu a um lago e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama entre outros inconvenientes; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê lo. […] Se este princípio fosse levado a sério e orientasse as nossas ações, a nossa vida e o nosso mundo sofreriam uma transformação radical. Porque o princípio aplica-se não apenas às raras situações em que alguém pode salvar uma criança de morrer afogada num lago, mas à situação quotidiana em que podemos ajudar quem vive na pobreza absoluta. Ao dizer isto, parto do princípio de que a pobreza absoluta, com fome e subnutrição, falta de abrigo, analfabetismo, doença, mortalidade infantil elevada e curta esperança de vida, é uma coisa má. E parto do princípio de que está ao alcance dos ricos minorar a pobreza absoluta sem sacrificar nada de importância moral comparável. Se estes dois pressupostos e o princípio que discutimos estão corretos, temos a obrigação de ajudar quem vive na pobreza absoluta, obrigação que não é menor que a nossa obrigação de salvar uma criança de se afogar num lago. Não ajudar seria um mal, seja ou não intrinsecamente equivalente a matar. Ajudar não é, como se pensa habitualmente, um ato de caridade digno de elogio, mas que não é um mal omitir; é algo que todos deviam fazer.


Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, pp. 250 -251


quinta-feira, janeiro 03, 2019

Razão e moral: uma ligação não necessária.



René Burri (Suíça, 1933/2014) - S.Paulo Brasil, quatro homens no telhado, 1960

Há uma antiga linha de pensamento filosófico que tenta demonstrar que agir racionalmente é agir eticamente. O argumento está hoje associado a Kant e encontra-se principalmente nos textos dos kantianos modernos, embora remonte no passado pelo menos aos Estóicos. A forma em que este argumento é apresentado varia, mas a estrutura comum é a seguinte: 

1. Para a ética, é essencial uma exigência qualquer de universalidade ou de imparcialidade. 2. A razão é universal ou objetivamente válida. Se, por exemplo, das premissas "Todos os seres humanos são mortais" e "Sócrates é um ser humano" decorre que Sócrates é mortal, então esta inferência tem de ser universalmente válida. Não pode ser válida para uma pessoa e inaceitável para outra. Trata-se de uma questão geral sobre a razão, tanto teórica como prática. 

Logo: 

3. Só um juízo que satisfaça o requisito descrito em 1 como condição necessária de um juízo ético será um juízo objetivamente :, racional de acordo com 2. Pois não posso estar à espera de que outro agente racional aceite como válido um juízo que eu não aceitaria se estivesse no seu lugar; se dois agentes racionais não puderem aceitar os juízos um do outro, esses juízos não podem ser racionais, pela razão dada em 2. Dizer que eu aceitaria o meu juízo mesmo que estivesse no lugar de uma outra pessoa equivale, porém, a dizer simplesmente que o meu juízo se pode prescrever de um ponto de vista universal. Tanto a ética como a razão exigem que nos elevemos acima do nosso ponto de vista pessoal e adotemos uma perspetiva a partir da qual a nossa identidade pessoal -- o papel que por acaso desempenhamos -- não seja importante. Assim, a razão exige que atuemos com base em juízos universais e, nessa medida, eticamente. 

Será este argumento válido? Já indiquei que aceito o primeiro ponto, o de que a ética implica a universalidade. O segundo ponto também é indesmentível. A razão tem de ser universal. Será então que a conclusão se segue? Reside aqui a falha do argumento. A conclusão parece seguir-se diretamente das premissas; mas este passo implica um afastamento do sentido estrito, no qual é verdade que um juízo racional é universalmente válido, para um sentido mais forte de "universalmente válido" que é equivalente à universalidade. A diferença entre estes dois sentidos torna-se manifesta ao considerar um imperativo não universalizável, como o puramente egoísta: "Que todos façam o que é do meu interesse", que difere do imperativo do egoísmo universalizável -- "Que todos façam o que é *do seu próprio* interesse" -- porque contém uma referência não eliminável a uma pessoa em concreto. Não pode por isso ser um imperativo ético. Será que carece da universalidade exigida para constituir uma base racional da ação? Por certo que não. Todo o agente racional poderia aceitar que a atividade puramente egoísta de outros agentes racionais é racionalmente justificável. O egoísmo puro podia ser racionalmente adotado por toda a gente. Vejamos a questão de mais perto. Temos de conceder que há um sentido em que um agente racional puramente egoísta -- chamemos-lhe Jack -- não podia aceitar os juízos práticos de outro agente puramente egoísta -- chamemos-lhe Jill. :, Presumindo que os interesses de Jill diferem dos de Jack, Jill pode estar a agir racionalmente ao pressionar Jack a fazer *_A*, enquanto Jack também age racionalmente ao decidir não fazer *_A*. Contudo, este desacordo é compatível com todos os agentes racionais que aceitam o egoísmo puro. Embora ambos aceitem o egoísmo puro, este leva-os para direções diferentes porque partem de lugares diferentes. Quando Jack adota o egoísmo puro, este leva-o a promover os seus próprios interesses, e quando Jill adota o egoísmo puro, este leva-a a promover os seus próprios interesses. Daqui o desacordo sobre o que fazer. Por outro lado -- e é este o sentido em que o egoísmo puro podia ser aceite como válido por todos os agentes racionais -- se perguntássemos a Jill (em segredo e prometendo nada dizer a Jack) o que ela pensava que seria racional Jack fazer, ela responderia, se fosse honesta, que seria racional Jack fazer o que era do seu próprio interesse, e não o que era do interesse de Jill. Logo, quando os agentes puramente racionais se opõem aos atos uns dos outros, isso não significa desacordo quanto à racionalidade do egoísmo puro. O egoísmo puro, embora não seja um princípio universalizável, podia ser aceite como base racional da ação por todos os agentes racionais. O sentido no qual os juízos racionais têm de ser universalmente aceitáveis é mais fraco do que o sentido no qual os juízos éticos o têm de ser. O facto de uma ação me beneficiar mais a mim que a outra pessoa qualquer podia ser uma razão válida para a fazer, embora não pudesse ser uma razão ética para tal. Uma consequência desta conclusão é a de que um agente racional pode racionalmente tentar evitar que outro faça aquilo que ele próprio admite que o outro tem justificação racional para fazer. Infelizmente, nada há de paradoxal nisto. Dois vendedores que compitam para conseguir efetuar uma determinada venda aceitarão que o comportamento do outro é racional, embora cada um deles pretenda frustrar os intentos do outro. O mesmo se pode dizer de dois soldados que se enfrentam no campo de batalha ou de dois jogadores de futebol que disputam a bola. Assim, esta tentativa de demonstração da existência de uma ligação entre razão e ética fracassa. Pode haver outras formas de forjar esta ligação, mas é difícil vislumbrar uma que seja mais :, promissora. O obstáculo principal a ultrapassar é a natureza da razão prática. Há muito tempo, David Hume argumentou que, na ação, a razão aplica-se apenas a meios, e não a fins. Os fins são dados pelos nossos desejos. Hume apresentou de forma implacável as implicações desta perspetiva.



Peter Singer, Ética Prática, Tradução Álvaro Augusto Fernandes Revisão Científica Cristina Beckert e Desidério Murcho, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Gradiva, 1993

sexta-feira, abril 20, 2018

A visão ética tende a procurar o universal



David Seymour, 1911/1956  Varsóvia
“O que significa emitir um juízo moral, discutir uma questão ética ou viver de acordo com padrões éticos? Como diferem os juízos morais de outros juízos práticos? Por que razão achamos que a decisão de uma mulher de fazer um aborto levanta uma questão ética, o mesmo não acontecendo com a sua decisão de mudar de emprego? Qual é a diferença entre uma pessoa que vive de acordo com padrões éticos e outra que não procede assim?

(…) quem segue convicções éticas não convencionais vive, mesmo assim, de acordo com padrões éticos, *se pensar, por qualquer motivo, que o que faz é um bem*. A condição em itálico dá-nos uma pista para a resposta que procuramos. A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar. Assim, uma pessoa pode fazer todo o tipo de coisas que consideramos um mal e, mesmo assim, continuar a viver de acordo com padrões éticos, se for capaz de defender e justificar o que faz. Podemos achar a justificação pouco adequada e continuar a pensar que as ações são um mal, mas a tentativa de justificação, bem sucedida ou não, é suficiente para trazer o comportamento dessa pessoa para o domínio do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado, uma pessoa não consegue encontrar uma justificação para aquilo que faz, podemos rejeitar a sua pretensão de que vive de acordo com padrões éticos, mesmo que aquilo que faz respeite princípios morais convencionais. Podemos ir mais longe. Se aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. Quando Macbeth, contemplando o assassínio de Duncan, admite que apenas a "ambição desmedida" o leva a cometê-lo, está a admitir que a ação não pode justificar-se eticamente. "Para eu poder ser rei em seu lugar" não é uma tentativa frágil de justificação ética para o assassínio; não é o tipo de razão que conta como justificação ética. É necessário mostrar que as ações motivadas pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base mais ampla para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios que tal comportamento me traz a mim. Tenho de me preocupar com um grupo mais vasto. Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expressado a ideia de que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de alguma forma, universal. A "regra de ouro" atribuída a Moisés, que se encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e "amar o nosso semelhante como a nós mesmos" ou, por outras palavras, atribuir aos interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos. A ideia de nos pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do mandamento, segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles nos fizessem. Os Estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: "Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis universais." A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século __XVIII, apelaram para um "espectador imparcial" imaginário como pedra-de-toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador ideal. Os utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart, consideram axiomático que, ao decidir sobre questões morais, "cada qual vale por um e ninguém por mais de um", enquanto John Rawls, um importante crítico contemporâneo do utilitarismo, incorpora essencialmente o mesmo axioma na sua própria teoria, deduzindo princípios éticos fundamentais de uma escolha imaginária, na qual aqueles que escolhem não sabem se serão beneficiados ou prejudicados pelos princípios que escolhem. Até mesmo filósofos do continente europeu, como o existencialista Jean-Paul Sartre e o especialista em teoria critica Jürgen Habermas, que diferem em muitos aspetos dos seus colegas de expressão inglesa - e também entre si -, concordam que, em certo sentido, a ética é universal.”
Peter Singer, Ética Prática, Prefácio, Gradiva, 1993
Tradução Álvaro Augusto Fernandes

segunda-feira, abril 18, 2016

Será que uma comunidade política tem o direito de excluir os destituídos, os perseguidos e os apátridas só porque são estrangeiros?

Refugiados Sírios em Viena, Setembro 2015 
Foto de Josh Zakary

Será que uma comunidade política tem o direito de excluir os destituídos, os perseguidos e os apátridas só porque são estrangeiros? Na perspectiva de Walzer(1), a comunidade encontra-se obrigada por um princípio de ajuda mútua e assinala justamente que este princípio pode ter efeitos mais vastos quando aplicado a uma comunidade do que quando aplicado a um indivíduo, porque muitos actos benevolentes estão ao alcance de uma comunidade, só afectando marginalmente os seus membros. Aceitar um estranho numa família é algo que podemos considerar que está para além das exigências da ajuda mútua; mas aceitar um estranho ou mesmo muitos numa comunidade é muito menos oneroso. Na perspectiva de Walzer, um país com vastas terras desocupadas -- Walzer toma a Austrália como exemplo, embora o faça como uma suposição, e não com base num estudo dos recursos hídricos e do solo australianos -- pode de facto ter uma obrigação decorrente da ajuda mútua de aceitar pessoas de terras densamente povoadas do Sudeste asiático atingidas pela fome. A escolha da comunidade australiana seria então a de desistir da homogeneidade que a sua sociedade possa ter ou de se retirar para a pequena porção do território que ocupa, cedendo o restante àqueles que dele tivessem necessidade. Embora não aceite qualquer obrigação geral das nações abastadas de admitir refugiados, Walzer defende o princípio popular do asilo. De acordo com este princípio, qualquer refugiado que consiga chegar às fronteiras de outro país pode reclamar asilo e não pode ser deportado de volta ao país onde é possível que seja perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade ou :, opinião política. _é interessante que este princípio seja tão amplamente aceite enquanto a obrigação de aceitar refugiados não o é. A distinção traçada pode reflectir alguns dos princípios analisados nos capítulos anteriores deste livro. O princípio da proximidade desempenha claramente um papel -- a pessoa que procura asilo está apenas fisicamente mais próxima de nós do que de outros países. Talvez o nosso maior apoio ao asilo assente em parte na distinção entre um acto (deportar um refugiado que chegou aqui) e uma omissão (não oferecer um lugar a um refugiado que está num campo distante). Poderia constituir também um exemplo da diferença entre fazer algo a um indivíduo identificável e fazer algo que sabemos terá o mesmo efeito em alguém, nunca chegando a saber realmente em quem teve esse efeito. Um factor adicional é provavelmente o pequeno número de pessoas que são capazes de chegar para pedir asilo, em contraste com o número muito maior de refugiados de cuja existência temos conhecimento, embora estejam distantes de nós. Trata-se do argumento da "gota no oceano", que estudámos em relação à ajuda internacional. Talvez possamos corresponder a todos os pedidos de asilo, mas, por muitos refugiados que possamos admitir, o problema continua a existir. 

Como no caso do argumento análogo contra a concessão de auxílio internacional, este argumento ignora o facto de, ao admitirmos refugiados, permitir que certos indivíduos vivam uma vida decente -- e portanto estamos a fazer algo que tem valor, por muitos outros refugiados que continuem a existir e que não somos capazes de ajudar. Os governos moderadamente progressistas, sensíveis pelo menos a alguns sentimentos humanitários, agem mais ou menos da forma preconizada por Walzer. Defendem que as comunidades têm o direito de decidir quem admitem; os pedidos de reunião de famílias vêem em primeiro lugar e, em seguida, as pessoas do exterior que pertencem ao mesmo grupo étnico nacional, quando o estado tem identidade étnica. A admissão daqueles que se encontram em estado de necessidade é um acto "ex gratia". O direito de asilo é normalmente respeitado, desde que os efectivos sejam relativamente pequenos. Os refugiados, a não ser que possam apelar para algum sentido de afinidade política :, não têm qualquer direito de admissão e vêem-se forçados a recorrer à caridade do país de acolhimento. Tudo isto concorda com os termos gerais da política de imigração das democracias ocidentais. No que diz respeito aos refugiados, a abordagem "ex gratia" constitui a ortodoxia actual. A falácia da abordagem actual A ortodoxia actual assenta em pressupostos vagos e normalmente não fundamentados sobre o direito de a comunidade determinar quem são os seus membros.
(1) Michael Walzer.

Peter Singer, Ética Prática, Cap.9