sábado, outubro 29, 2016

Intencionalidade

Annie Leibovitz, Carl Lewis

Para explicar a estrutura do comportamento humano, preciso de introduzir um ou dois termos técnicos. A noção nuclear da estrutura do comportamento é a noção de intencionalidade. Dizer que temos intencionalidade significa que esperamos que uma coisa aconteça (temos essa crença), ou pretendemos que uma coisa aconteça, (temos um desejo). Um estado intencional pode ser querer, desejar, esperar ou ter uma intenção. Assim podemos ter o mesmo resultado para diversos estados intencionais: posso querer sair da sala, julgar que irei sair da sala ou tencionar sair da sala.Em cada caso temos o mesmo conteúdo para diferentes modos psicológicos: crença, deseja e intenção, respectivamente.




Por comportamento (...) entendo o comportamento humano voluntário e intencional. Entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor, votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar. Mas, mesmo restringindo-nos ao comportamento intencional, as actividades humanas apresentam-nos uma desconcertante variedade de tipos. Precisaremos distinguir entre comportamento individual e comportamento social; entre comportamento social colectivo e comportamento individual dentro de um colectivo social; entre fazer alguma coisa por mor de outra coisa e fazer alguma coisa por mor de si mesma. E, talvez o mais difícil de tudo, precisamos de explicar as consequências melódicas do comportamento ao longo da passagem do tempo. As actividades humanas, ao fim e ao cabo, não se assemelham a uma série de instantâneos parados, mas sim ao filme da nossa vida.




John Searle, Mente , cérebro e Ciência, Edições 70

quarta-feira, outubro 12, 2016

Da existência do livre- arbítrio - Santo Agostinho




Robert Frank, NY,1947

Mas, também ainda, embora dissesse e acreditasse firmemente que és incontaminável e inalterável e sob nenhum aspecto mutável, tu, nosso Deus, Deus verdadeiro, que criaste não só as nossas almas, mas também os nossos corpos, e não apenas as nossas almas e os nossos corpos, mas também todos nós e todas as coisas, não tinha por explicada e esclarecida a causa do mal. Fosse ela qual fosse, porém, via que era preciso procurá-la de modo a que, graças a ela, não fosse obrigado a acreditar que é mutável o Deus imutável, ou que eu próprio me convertesse naquilo que eu procurava. E assim, procurava-a em segurança e certo de que não era verdade o que diziam aqueles que eu evitava com toda a minha alma, porque os via, procurando donde provinha o mal, cheios de maldade, em virtude da qual eram de opinião que é mais a tua substância que está sujeita a sofrer o mal, do que a deles a fazê-lo. E esforçava-me por compreender o que ouvia: que o livre arbítrio da vontade é a causa de praticarmos o mal e o teu recto juízo a de o sofrermos, mas não conseguia compreender essa causa com clareza. E assim, tentando arrancar do abismo o olhar do meu espírito, afundava-me de novo, e muitas vezes tentava e me afundava uma e outra vez. Na verdade, elevava-me para a tua luz o facto tanto de saber que tinha uma vontade como o de saber que vivia. Por isso, quando queria ou não queria alguma coisa, tinha absoluta certeza de que quem queria ou não queria não era outro senão eu. E via, cada vez mais, que aí estava a causa do meu pecado. E aquilo que fazia contra vontade via que era mais padecer do que fazer, e julgava que isso não era culpa, mas castigo, pelo qual, como eu logo confessava, considerando-te justo, era castigado não injustamente. Mas de novo dizia: ‘Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas bom, mas o próprio bem? Donde me vem então o querer o mal e o não querer o bem? Será para haver um motivo para que eu seja castigado justamente? Quem colocou isto em mim, e plantou em mim este viveiro de amargura , embora todo eu tenha sido feito por um Deus tão doce? Se o autor é o diabo, donde veio o mesmo diabo? Mas se também ele, por uma vontade perversa, de anjo bom se tornou diabo, donde lhe veio, também a ele, a má vontade pela qual se tornaria diabo, quando o anjo, na sua totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente bom?’ De novo me deixava abater e sufocar com estes pensamentos, mas não me deixava arrastar até àquele inferno do erro, onde ninguém te confessa quando se julga que és tu a padecer o mal, e não o homem que o pratica.

Santo Agostinho, Confissões, Livro VII, p.21, Casa da Moeda,2001

segunda-feira, outubro 03, 2016

ARGUMENTOS & SALSICHAS



A máquina de salsichas da razão

Aquilo que é maravilhoso num argumento sólido é o seu poder de preservar a verdade. Tomemos, por exemplo, o argumento seguinte:


   1. Francisco é um homem.
   2. Todos os homens vivem na terra.
   Conclusão: Francisco vive na terra.

Este argumento forma-se de duas afirmações, ou premissas, e de uma conclusão. Num argumento dedutivo, como este, as premissas implicam supostamente a conclusão. O argumento, se válido, fornece-nos uma garantia lógica: se as premissas são verdadeiras, a conclusão também o é. Neste caso, o argumento é válido. As premissas implicam realmente a conclusão.
É claro que se introduzirmos num argumento dedutivamente válido uma ou mais falsidades, não há qualquer garantia quanto ao que obteremos. A conclusão pode, ainda assim, ser verdadeira. Mas pode ser falsa. (Suponhamos, por exemplo, que a primeira premissa do nosso argumento é falsa: o Francisco não é um homem – é um extra-terrestre que vive no planeta Plutão; então a nossa conclusão é falsa.)
Portanto, um argumento dedutivo válido preserva a verdade. Se introduzirmos premissas verdadeiras, temos a garantia lógica de que sai uma conclusão verdadeira. Se estivermos interessados em ter convicções que sejam realmente verdadeiras, trata-se de um belo resultado.
Para aqueles que gostam de analogias, podemos dizer que as formas válidas de argumentos dedutivos funcionam um pouco como as máquinas de salsichas. A única diferença é que em vez de introduzirmos carne de salsicha e de saírem do outro lado salsichas, é-nos dada a garantia de que se introduzirmos premissas verdadeiras, sairão conclusões verdadeiras.



A máquina de salsichas indutiva

A argumentação dedutiva não é a única forma de argumentação sólida. Há também os raciocínios indutivos. Eis um exemplo de um argumento indutivo:


  1. A maçã um tem sementes.
2.          2. A maçã dois tem sementes.
      3. A maçã três tem sementes.
    [...]
  1000. A maçã mil tem sementes.
  Conclusão: Todas as maçãs têm sementes.

Este argumento tem mil premissas (embora eu não me tenha dado ao trabalho de listar mais do que quatro). Num argumento indutivo, as premissas apoiam supostamente a conclusão. Aqui, a palavra-chave é apoiam. É claro que estes argumentos não são (e não pretendem ser) dedutivamente válidos. As premissas não implicam dedutivamente a conclusão. Não há garantia lógica de que a maçã seguinte não terá sementes, apesar das muitas maçãs que examinámos até agora. Apesar disso, supomos que o facto de todas as maçãs que examinámos até agora terem sementes torna extremamente razoável que concluamos que todas têm. As premissas, supomos, tornam a verdade da conclusão bastante provável. Se isto é correcto, os argumentos indutivos sólidos também têm a qualidade de preservar a verdade à maneira da máquina das salsichas. Introduzam-se premissas verdadeiras num argumento indutivo sólido e sai provavelmente uma conclusão verdadeira do outro lado.
Uma vez mais, se é a verdade que buscamos, trata-se de um belo resultado.

Stephen Law, The War for Children’s Minds (Londres & Nova Iorque, 2006). Trad. Carlos Marques.

1. Qual o problema tratado no texto?
2. Que comparação é feita? 
3. O que se pretende mostrar com essa comparação?

domingo, outubro 02, 2016

O que é a Filosofia. Resposta 4


Ara Guler, 1987, Idade

A Filosofia, como entenderei a palavra, é algo intermédio entre a teologia e a ciência. Como a teologia consiste em especulações sobre matérias inacessíveis até agora ao conhecimento definido, mas como a ciência apela para a razão de preferência à autoridade, quer da tradição, quer da revelação. Todo o conhecimento definido (…) pertence à ciência; todo o dogma como o que excede o conhecimento definido pertence à teologia. Mas entre teologia e ciência há uma terra sem dono exposta aos ataques de ambos os lados: é a filosofia. As questões de maior interesse para os espíritos especulativos raro têm resposta científica e as respostas confiantes dos teólogos já não parecem tão confiantes como nos séculos anteriores. Estará o mundo dividido entre espírito e matéria? e, sendo assim, que é espírito e que é matéria? Está a alma sujeita à matéria ou tem energias independentes? Tem o universo unidade ou fim? Evolui para algum objetivo? Há realmente leis da natureza ou cremos nelas devido ao nosso inato amor da ordem? É o homem o que aparece ao astrónomo, um pequeno conjunto de carvão impuro e água, a arrastar-se impotente sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é o que pensava Hamlet? Será as duas coisas? Há um tipo nobre e um tipo baixo de vida ou são todos meramente fúteis? Se um deles é nobre, em que consiste e como realizá-lo? Deve o bem ser eterno para poder ser apreciado ou merece procurar-se ainda quando o universo caminha inexoravelmente para a morte? Existe de fato a sabedoria ou não passa de derradeiro requinte de loucura? Não há resposta em laboratório para tais questões. Pretenderam as teologias dar respostas, todas demasiado definidas, o que as torna suspeitas a espíritos modernos. Estudar essas questões, senão responder-lhes, é a tarefa da filosofia.



Bertrand Russell em ‘História da Filosofia Ocidental’