sábado, novembro 27, 2021

A filosofia como uma ciência da natureza humana?


 Rene Magritte, Bélgica (1898/1967) Imagem do quadro "A arte de viver"


Quando Hume começou a escrever o "Tratado sobre a Natureza humana" , já tinha mergulhado nas obras dos filósofos modernos tendo-as achado perturbadoras porque cometiam os mesmos erros que os antigos cometiam, quando pretendiam evitá-los. Hume pergunta por que os filósofos não foram capazes de fazer o progresso espetacular na compreensão da natureza humana que os filósofos naturais - a quem agora chamamos de "cientistas" - alcançaram recentemente nas ciências físicas? A sua resposta é que, embora os cientistas se tenham curado da sua "paixão por hipóteses e sistemas", os filósofos ainda não se tinham purificado dessa tentação. As suas teorias eram especulativas demais, baseavam-se em suposições a priori e prestavam muito pouca atenção ao modo como a natureza humana realmente é. Em vez de nos ajudar a compreender a nós mesmos, os filósofos modernos estavam atolados em disputas intermináveis - evidentes até mesmo para os que nada percebiam desses assuntos - dando origem ao "preconceito comum contra raciocínios metafísicos de todos os tipos", ou seja, "todo tipo de argumento que é de alguma forma obscuro e requer atenção para ser compreendido ”. Para progredir, afirma Hume, precisamos “rejeitar todo sistema por mais sutil ou engenhoso que seja, que não se baseie em factos e observações”. Esses sistemas, cobrindo uma ampla gama de visões metafísicas e teológicas arraigadas e influentes, pretendem ter descoberto princípios que nos dão um conhecimento mais profundo e seguro da realidade última. Mas Hume argumenta que na tentativa de ir além de qualquer coisa que possamos experimentar, essas teorias metafísicas tentam "penetrar em assuntos totalmente inacessíveis ao entendimento", afirmam ter encontrado os "princípios últimos" da natureza humana mas essas são afirmações não apenas falsas, mas também ininteligíveis. Essas “ciências aéreas”, como Hume lhes chama, têm apenas o “ar” de ciência (EHU 1.12 / 12).

Pior ainda, esses sistemas metafísicos são cortinas de fumo para “superstições populares” que tentam oprimir-nos com medos e preconceitos religiosos (EHU 1.11 / 11). Hume tem em mente uma variedade de doutrinas que precisam de cobertura metafísica para parecerem respeitáveis ​​- argumentos para a existência de Deus, a imortalidade da alma e a natureza da providência divina. A metafísica auxilia e estimula essas e outras doutrinas supersticiosas. Mas insiste que, embora esses sistemas metafísicos e teológicos sejam questionáveis, isso não significa que devemos desistir de fazer filosofia. Em vez disso, precisamos avaliar “a necessidade de levar a guerra até aos cantos mais secretos do inimigo”. A única maneira de resistir ao fascínio dessas pseudociências é comprometer-se com elas, contrariando o seu “jargão… metafísico obscuro” com “raciocínio preciso e justo” (EHU 1.12 / 12). Isso significa que a fase inicial do projeto de Hume deva ser crítica. Uma parte proeminente dessa vertente do seu projeto é “descobrir o campo apropriado da razão humana” - determinar a extensão e os limites dos poderes e capacidades da razão. Acredita que a sua investigação mostrará que a metafísica como  busca pela compreensão da natureza última da realidade está além do alcance da razão.

 

[1] [EHU] Enquiry concerning Human Understanding, edited by Tom L. Beauchamp, Oxford/New York: Oxford University Press, 1999.

Texto retirado de  Stanford Encyclopedia of philosophy, artigo publicado 26 de Fevereiro de 2001; revisto em 27 Abril de 2019 da autoria de William Edward Morris e Charlotte R. Brown 

 

terça-feira, novembro 02, 2021

O filósofo é, antes de tudo, um homem


Fotografia Alex Webb

O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois supõe -se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes da sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e numa nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação, discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. (…) 

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência a sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança das suas aquisições. O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana, submete-o necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre a sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um género misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu os homens de não permitirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero a vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria receção que os vossos supostos descobrimentos encontrarão quando comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem.

David Hume, Ensaio sobre o entendimento humano, Secção I, Nova Acrópole,

Tradução Anoar Aiex,