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quarta-feira, abril 24, 2024

Arte e falsificação: Será uma falsificação obra de arte?


'Voltando para Casa', supostamente de Gertrude Abercombrie, foi vendida em leilão por US$ 93,750 no ano passado. A pintura está a ser investigada pelo FBI por suspeita de ser uma falsificação.


A definição formalista de Bell (1), que é uma definição essencialmente estética, permite claramente classificar como arte as falsificações. Se basta que uma obra tenha forma significante para ser arte e se, como escreve Bell, a forma significante na pintura consiste em «linhas e cores combinadas de um modo particular, ou em certas formas e relações de formas», então uma cópia perfeita – seja uma falsificação ou não – de um objecto com forma significante terá também forma significante, pelo que será também uma obra de arte. Neste sentido, é irrelevante determinar qual a história da produção das obras de arte ou obter informação sobre quaisquer outras propriedades quando há arte!  Daí que, «para apreciarmos uma obra de arte, a única coisa que temos de trazer connosco é um sentido de forma e de cor e um conhecimento do espaço tridimensional», diz Bell . Assim, não precisamos de qualquer bagagem extra, a não ser sensibilidade estética e inteligência, para determinar se um dado objecto é ou não uma obra de arte, pois temos diante de nós tudo o que realmente conta. O que nos importa, pergunta Bell, «se as formas que nos emocionam foram criadas anteontem em Paris ou há cinquenta séculos na Babilónia?»  Talvez isso não seja irrelevante para avaliar os méritos artísticos de uma dada obra de arte, mas é irrelevante para decidir se estamos ou não diante de uma obra de arte. As coisas já são menos claras quando pensamos na definição institucional. As falsificações parecem satisfazer todas as condições indicadas pela definição institucional de Dickie: ser um artefacto, em virtude de cujas características é proposto por alguém que age em nome do mundo da arte como candidato a apreciação. No entanto, foi o próprio Dickie que, em Art and the Aesthetic (2), argumentou que as falsificações não são arte por falta de originalidade, uma vez que a obra genuína teria, como diz Davies, «esgotado o uso da patente da obra» (3). Este requisito soa um tanto ad hoc, dado que a definição institucional não parece exigir tal coisa. Daí que Dickie tenha posteriormente mudado de opinião:

“Seguindo o exemplo de Danto, em Art and the Aesthetic ,concluí que as falsificações não são obras de arte. Penso agora que foi uma conclusão errada. [...] Claro que ainda se pode dar o caso de as falsificações não serem obras de arte por algum motivo. Mas não vejo razão para que tais obras não possam satisfazer todos os requisitos para serem obras de arte no sentido classificatório: as falsificações são obras de arte sobre cujo criador estamos ou temos estado enganados; as cópias são obras de arte sem imaginação ou completamente parasitárias. (4)

Ainda assim, independentemente de a posição inicial de Dickie estar relacionada com a questão da originalidade, poderia haver dúvidas quanto à satisfação de algum dos requisitos indicados na sua definição. Um desses requisitos é que um objecto só pode ser arte se alguém do mundo da arte o propuser como candidato a apreciação. Dickie esclarece que fazem parte do mundo da arte os próprios artistas, os membros do público e os apresentadores, que são os intermediários entre o artista e o público. Mas é aqui que surgem as dúvidas: se dissermos que uma cópia ou uma falsificação são arte porque foram propostas como candidatas a apreciação pelos próprios artistas que as produziram, então estaremos perante um círculo. O que justifica que os seus autores sejam chamados artistas? Não é esclarecedor dizer que basta que alguém se considere artista para o ser, até porque Dickie sublinha que uma característica de todos os artistas é a consciência de que aquilo que está a ser criado para apresentação é arte. Mas é, no mínimo, duvidoso que o falsário tenha sempre a consciência de que aquilo que está a apresentar seja mesmo uma obra de arte, caso contrário talvez não precisasse de esconder a verdadeira autoria.


(1) BELL,Clive. Arte. Traduzido por Rita Canas Mendes. Lisboa: Texto e Grafia, 2009.

(2) DICKIE, George. Art and the Aesthetic. Ithaca: Cornell University Press, 1974.

(3) DAVIES, Stephen. Definitions of Art. Ithaca: Cornell University Press, 1981, 

(4) DICKIE, George. The Art Circle. Nova Iorque: Haven, 1984.


Aires Almeida,"Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações"
 in Quando Há Arte! Ensaios de Homenagem a Maria do Carmo d’Orey,  Organizadores: Vítor Guerreiro, Carlos João Correia e Vítor Moura, 2023, Bookbuilders / Letras Errantes, p.93,94

quarta-feira, abril 17, 2024

A palavra "jogo" e a palavra "arte": sabemos identificar os objetos pertencentes à classe do conceito mas não sabemos identificar uma característica comum a todos os objetos.

 


Fotografia, Helen Bartlett, Londres

E é verdade. – Em vez de mencionar algo que é comum a tudo o que chamamos de linguagem, eu afirmo que essas manifestações nada têm em comum, ainda que para todas empreguemos a mesma palavra, – mas estão mutuamente aparentadas de muitas formas diferentes. E é devido a esse parentesco, ou a esses parentescos, que nós chamamos a todas essas manifestações de “linguagem”. Vou tentar explicar isto.

 Considera, por exemplo, os processos a que chamamos de “jogos”. Quero dizer, jogos de tabuleiro, de carta, com bola, de combate, etc. O que é que é comum a todos eles? – Não respondas: “Tem que haver alguma coisa em comum, senão não se chamariam ‘jogos’” – mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum, – Porque, quando olhares para eles não verás de facto o que toos têm em comum, mas parecenças, parentescos, e em grande quantidade. Como foi dito: não penses, olha! – Olha, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com os seus múltiplos parentescos. A seguir considera os jogos de cartas: encontras aqui muitas correspondências com a primeira classe, mas desaparecem muitos traços comuns, outros aparecem. Se consideramos a seguir os jogos de bola, então muitas coisas em comum ficam preservadas, mas muitas se perdem. – São todos eles ‘divertidos’? Compara o xadrez com o jogo da cabra cega. Ou há sempre perder e ganhar, ou uma competição entre os jogadores? Pensa nos jogos de paciência. Nos jogos de bola há ganhar e perder; mas quando uma criança atira a bola à parede e depois a apanha, este aspeto desaparece. Olha para o papel que desempenham a habilidade e a sorte. O quão diferente que é a habilidade no jogo de xadrez e no jogo de ténis. Pensa agora nos jogos de andar à roda: Tem-se aqui divertimento, mas desaparecem muitos dos outros traços característicos! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver surgir e desaparecer as suas parecenças.

E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma complicada rede de parecenças que se sobrepõem e se cruzam mutuamente. Parecenças de conjunto e de pormenor. Eu não poderia caracterizar melhor essas parecenças do que pela expressão “parecenças de família”;39 porque as diversas parecenças entre os membros de uma família: altura, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento etc., etc. sobrepõem-se e cruzam-se da mesma maneira – E eu direi: os ‘jogos’ constituem uma família.

(…) Como é que explicaríamos então a uma pessoa o que é um jogo? Penso que lhe descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: “A isto, e a coisas parecidas chama-se um ‘jogo’”.

Investigações filosóficas (1953), Ludwig Wittgenstein, Lx, 2002, Fundação Calouste Gulbenkian, p.227,228,229

(Este texto resulta da comparação entre a obra mencionada e a edição brasileira, tradução e notas João José R. L. de Almeida)

Esta reflexão poderia aplicar-se a muitas palavras como "Arte"cujo conceito é vago e ilimitado, podendo até dizer-se que por não podermos selecionar características comuns a todas as manifestações artísticas, Arte seria uma palavra sem conceito, como jogo ou beleza, podemos descrever várias manifestações artísticas talvez porque não tendo todas a mesma característica, têm contudo uma parecença de família. Como a beleza, diz algo que nos é familiar, uma experiência que podemos descrever, mas que não podemos definir.

sábado, julho 22, 2023

Sobre a poesia




                               Fotografia: Philip Jones Griffiths, Norte da Irlanda, 1965

 …se a arte só pertence ao raro e puro génio, mesmo uma pessoa mediana em tudo, se está, com efeito, estimulada por uma forte impressão ou qualquer súbita inspiração do seu espírito, poderá compor uma bela ode, visto que para isso só precisa de uma viva intuição dos seus próprios sentimentos num momento de exaltação. Bastam, para o provar, todos esses cantos líricos de indivíduos que permanecem aliás desconhecidos, especialmente as canções populares alemães, de que temos uma excelente recolha no Wunderhorn,e também essas inúmeras canções de amor e outras, em todas as línguas. Com efeito, agarrar uma impressão do momento, e dar-lhe corpo num canto, eis em que consiste este género de poesia. Entretanto, na poesia lírica, se se encontra um verdadeiro poeta, , ele exprime na sua obra a natureza íntima da humanidade inteira. Tudo o que milhões de seres passados, presentes e futuros, sentiram ou hão de sentir nas mesmas situações que reaparecem sem cessar, ele sente-o e exprime-o vivamente. Essas situações, pelo seu eterno retorno, duram tanto quanto a própria humanidade e provocam sempre os mesmos sentimentos. Igualmente, as produções líricas do verdadeiro poeta subsistem, durante séculos, vivas, verdadeiras e jovens. O poeta é, portanto, o resumo do ser humano em geral: tudo o que alguma vez fez bater um coração humano, tudo o que a natureza humana, numa circunstância qualquer, fez brotar para fora de si, tudo o que alguma vez habitou e amadureceu num peito humano – tal é a matéria que ele trabalha, como trabalha todo o resto da natureza. Além disso, o poeta é igualmente capaz de cantar a volúpia e os assuntos místicos, de ser Anacreonte ou Angelus Silesius, de escrever tragédias ou comédias, de esboçar um carácter elevado ou comum, conforme o seu capricho ou a sua vocação. É por isso que ninguém lhe pode prescrever ser nobre e elevado, moral, piedoso, cristão, ou isto ou aquilo; ainda menos se lhe pode censurar ser isto ou aquilo. Ele é o espelho da humanidade, e traz-lhe à consciência todos os sentimentos de que ela está cheia e animada.

 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, Lx,2021, Ed 70, p.313,314

Trad. M.F. Sá Correia

 

segunda-feira, abril 13, 2020

Andrey, what is art?

domingo, abril 12, 2020

A arte como fuga


Henri Cartier-Bresson, Nice


Teremos ganho muito para a ciência estética ao chegarmos não só à compreensão lógica, mas também à imediata segurança da opinião de que o progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolínico e do Dionisíaco; de maneira parecida com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas. Estes nomes tomamos emprestados aos gregos, que manifestam ao inteligente as profundas ciências ocultas da sua conceção artística não em ideias, mas nas figuras enérgicas e claras do seu mundo mitológico. A ambas as divindades artísticas destes, Apolo e Dionísio está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma enorme contradição, na origem e nos fins, entre a arte plástica — a de Dionísio; — ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na maior parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles afinal, através do milagroso ato metafísico do “desejo” helénico, aparecem unidos, produzindo por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da Tragédia Ática.

Para melhor apreciarmos ambos os impulsos imaginemo-los, antes de mais nada, como mundos de arte separados do sonho e da embriaguez; fenómenos fisiológicos entre os quais é possível notar uma contradição como a existente entre o apolínico e o dionisíaco. No sonho se apresentaram primeiramente, segundo a opinião de Lucrécio, as esplêndidas figuras divinas às almas humanas.

No sonho via o grande escultor a fascinante estrutura dos membros de seres sobre-humanos, e o poeta helénico, inquirido sobre os segredos da produção poética, seria da mesma forma lembrado ao sonho e teria dado ensinamentos parecidos, como aos de Hans Sachs nos Mestres-Cantores:

Meu amigo, eis a obra do poeta,

Percebe seus sonhos e os interpreta.

Acredita, o verdadeiro, o humano destino

É-lhe mostrado ao sonhar:

Toda a arte poética e todo poetar,

Nada mais é que uma interpretação com tino.

O belo brilho dos mundos de sonho, em cuja produção o homem é um artista perfeito, é condição de existência para toda arte plástica, e também, como veremos, de uma parte essencial da poesia. Gozamos a imediata compreensão da figura, todas as formas falam connosco, nada há de indiferente e desnecessário. Na vida mais elevada desta verdade de sonho ainda temos o sentimento transparente da sua aparência; pelo menos é esta a minha experiência, para cuja continuidade e normalidade teria eu de citar diversos testemunhos e os ditos dos poetas. O filósofo tem mesmo o pressentimento de que também sob esta realidade em que vivemos e somos, se encontra oculta uma bem diferente, e que portanto também ela é aparência; e Schopenhauer indica mesmo o dom que a alguns homens  todas as cousas parecem meros fantasmas ou sonhos, como sinal de aptidão filosófica. Assim como o filósofo se porta, perante a realidade da existência, assim se comporta o homem, artisticamente impressionável, perante a realidade do sonho; ele gosta de contemplar, e contempla atentamente; pois é por estas imagens que ele interpreta a vida, e com estes acontecimentos se exercita para a mesma.

Friedrich Nietzsche, A Origem da tragédia, cap.4 p.20

quarta-feira, abril 08, 2020

Compreender o artista através da interpretação de uma obra?


1889, "Paisagem de Saint- Rémy", Fotografia de Saint-Paul-de- Mausole, hospício onde à época Van Gogh esteve internado, e "Vista de Saint- Rémy".

"Quanto mais nos aproximamos da nossa época, mais os documentos estão conservados. No caso de Avista de Saint-Rémy, de Van Gogh, é possível conhecer a paisagem que o inspirou, seguir pelos esboços e os desenhos a forma como a transformou, e chegar ao quadro, ou melhor, à série, de quadros que terminam esta trajectória criadora.

A paisagem é a que Van Gogh via da janela do pequeno atelier posto à sua disposição no asilo de loucos onde se encontrava em tratamento, após a grande crise de Arles. Uma fotografia mostra este local, que o tempo pouco modificou: o jardim provençal cercado por um murovelho, por detrás do qual estão escalonados os planos de árvores que conduzem às colinas do fundo. Tudo é triste, indiferente. Van Gogh começa a desenhar. A natureza não lhe interessa: o que lhe interessa é interrogar-se e projectar-se a si próprio, procurando reconhecer no mundo afigura do seu drama. A onda interior que o transtorna, erguendo-o a paroxismos de que tomba, recaindo na angústia, abandona-o precipitadamente. Como uma vaga que transborda, ela corre através do pequeno campo, e segue o seu curso louco, amedrontada, com ondulações rápidas de réptil assustado que foge de um perigo. Como nos pesadelos, o muro recua quase até ao horizonte; por detrás dele, a vegetação ferve e de repente ncendeia-se; os pinheiros estalam, as folhas lançam chamas para o ar. O próprio céu, maltratado pelos remoínhos amplificados, como ondas de uma deflagração, dissolve-se, num movimento giratório, em redor do seu centro, o sol.
Desta forma, os desenhos enunciaram o drama. Van Gogh aborda o quadro definitivo. As ondas, já postas em movimento, amplificam-se, o campo inteiro agita-se como um mar remexido por um vento de tempestade. As linhas incham, empurram-se e correm (...). O sol arrasta o seu giro sem fim o quadro nteiro, e as pinceladas não marcam senão os remoínhos do maelstrom que se amplifica indefenidamente; ele volta, tremendo de fúria e de angústia, para o universo que o evocou. O pintor, ponto de chegada do mundo, e ponto de partida da pintura, ergue-se no coração da arte."

René Huygue, Os poderes da imagem, Lx, Ed. 70

Este texto tem o poder de ser evocativo, de nos transportar para o que poderia ser a exaltação artística do pintor Van Gogh,  não em abstrato, a exaltação de um pintor, que viveu  um certo drama, naquele hospício de Saint Rémy. Como se pode compreender o proceso da criação através da interpretação das formas e dos elementos de um quadro concreto "A vista de Saint- Rémy"?  Pensar a arte assumindo que esse pensamento é livre, no sentido de que pensar é antes de mais, fazer o mesmo movimento de criar, ver e sentir e depois encontrar uma forma de expressar o que vemos e o que sentimos, cientes de que o que vemos exalta de uma certa forma particular, o que sentimos. Nesse aspeto, concordo com Huygue, essa parece-me a única forma legítima e interessante de fazer crítica literária ou filosofia da arte, porque tenta mostrar a forma como cada um recria o que vê de acordo com a sua sensibilidade, não deixando contudo de o fundamentar em exemplos e narrativas verosímeis e igualmente apelativas, tanto quanto a obra de que se partiu. Por outro lado arrepia-me a posição que tende a compreender o processo psicológico da criação e a descrever as intenções do artista; é uma pretensão vã e enganadora, pois se dissermos o oposto da intenção de Van Gogh  que o autor expõe neste texto, não ver-se na paisagem que vê, mas sim fugir de si, alienando-se na paisagem que vê, poderia ser igualmente verdadeiro, daí ser vã a pretensão de tentar captar as intenções do artista no acto criador, é como apanhar o ar.

Helena Serrão

terça-feira, abril 07, 2020

Arte

 Baskiat

" As obras de Arte são de uma solidão infinita; para as abordar, nada pior do que a crítica. Só o amor pode prendê-las, conservá-las, ser justo para elas. Dê sempre razão ao seu própprio sentimento, contra essas análises, esses resumos, essas introduções, (...) Aos simples fiéis a Arte exige tanto como aos criadores." , dizia Rainer Maria Rilke, nas suas Cartas a um Poeta. Perante este aviso, deveremos desde já ficar suficientemente precavidos face às dificuldades emergentes de um território cujos contornos não são facilmente apropriáveis e cuja aparente "claridade" se arrisca a ser a "sombra" luminosa de uma outra obscuridade.

O fenómeno estético apresenta-se como uma estrutura multifacetada, plena de ambiguidades e de cargas simbólicas, local onde a Utopia, o Sonho e o Impossível irrompem quando menos se espera, surpreendendo a nossa sensibilidade demasiadamente fatigada pelas solicitações do quotidiano, confrontando o "entendimento" com situações e propostas que , não raro, se situam aquém e além da lógica da identidade e do terceiro excluído! porque não somos criadores, porque estamos predominantemente voltados para o campo da reflexão, arriscamo-nos a ficar condenados ao limiar do essencial, percorrendo epidermicamente a periferia, caracterizando mais e melhor aquilo que "não é" do que aquilo que "é".

Levi Malho, O Signo de Orfeu, Requiem por uma Estética Insular, (Porto, Edições Afrontamento, 1984), pp. 314-315.

segunda-feira, março 23, 2020

Visita ao Museu

Courbet,  estúdio do artista, 1854



Para visitar o museu abra o endereço abaixo
https://artsandculture.google.com/partner?hl=en

segunda-feira, março 11, 2019

Teoria histórica da arte





Vanessa Bell - Inglaterra -1879/1961

Como a designação da teoria deixa adivinhar, para Levinson a essência da arte reside no seu carácter histórico ou retrospetivo. Toda a arte é o resultado de uma atividade humana que se relaciona com o seu passado através da intenção de um indivíduo, que pode ou não conhecer essa história. Todas as obras de arte se referem necessariamente ao seu passado e, como tal, é legítimo considerar que, mais do que uma sucessão de eventos, existe evolução na arte. A responsabilidade por essa evolução pode atribuir-se não a uma instituição, mas às intenções de indivíduos que pretendem que certos objetos sejam vistos como já o foram obras de arte do passado. Uma das primeiras versões da definição histórica proposta pela teoria é a seguinte:

«(I) X é uma obra de arte = df X é um objeto acerca do qual uma pessoa ou pessoas, possuindo a propriedade apropriada sobre X, têm a intenção não-passageira de que este seja perspetivado-como-uma-obra-de-arte, i.e., perspetivado de qualquer modo (ou modos) como foram ou são perspetivadas corretamente (ou padronizadamente) obras de arte anteriores.» (Levinson, 1979, p. 236)

Como a própria mancha de texto deixa adivinhar, Levinson pretende formular uma definição explícita composta por condições necessárias e suficientes. Para compreender se é ou não uma definição correta é preciso explicitar os termos da definição. A primeira condição é a do direito de propriedade. Segundo esta, o artista não pode transformar em arte objectos que não lhe pertençam ou em relação aos quais não esteja devidamente autorizado a agir pelos seus proprietários. A esta luz fica vedada ao artista a possibilidade de transformar em arte algo que, não sendo seu, apenas indica ou nomeia como tal. O exemplo paradigmático de uma tentativa de o fazer foi protagonizado por Duchamp em 1916, quando indicou como arte o Edifício Woolworth. Das suas notas figurava uma indicação para procurar uma inscrição para o Edifício, então o mais alto de Nova Iorque, como readymade. Contrariamente ao que diria Dickie, que aceitaria que o Edifício Woolworth adquiriria o estatuto de obra da arte com a apresentação, Levinson afirma que este não pode chegar a ser arte, porque Duchamp não o possui nem está autorizado pelos seus proprietários a usá-lo como produto artístico. Pelas mesmas razões, os artistas não poderão transformar em arte paisagens, pessoas ou acontecimentos sob os quais não tenham qualquer direito de propriedade. Esta condição afasta a teoria Histórica tanto da proposta Institucional como de todas as outras que afirmam que tudo pode ser arte. Propõe também que se abandone uma visão caricatural do artista em que este surge dotado de um toque de Midas, capaz de transfigurar tudo o que a sua arbitrariedade artística selecionar como arte.

A segunda condição é a existência de um certo tipo de intenção que relaciona a arte do presente com a arte do passado. A arte requer conhecimento que se adquire ao longo do processo de socialização. Mesmo que não possua quaisquer crenças verdadeiras acerca da história da arte, o artista é alguém que tem conhecimentos suficientes acerca dos objetos e dos auditórios para poder formar intenções acerca desses objetos que fazem referência àquilo que a arte já foi. Mas que relação intencional é essa? E em que sentido é usada a palavra «intenção»? Em primeiro lugar, note-se que, para Levinson, a expressão «tem intenção de» é usada em sentido lato, significando esta apenas «faz, apropria-se ou concebe com o propósito de». Ter uma intenção, neste caso, é, então, ter um propósito ou uma finalidade em mente, e desenvolver uma ação para o atingir. Esta pode consistir em fazer, apropriar-se ou conceber algo. Depois, exige-se que a intenção não seja transitória, mas sim persistente ou estável. Impede-se assim que a arte seja fruto de caprichos passageiros ou de ímpetos momentâneos.

Paula Mateus, A teoria histórica de Levinson

sábado, junho 23, 2018

Poesia da Semana: O Homem Que LÊ (Rainer Maria Rilke)



O Homem que Lê

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

quinta-feira, maio 19, 2016

Hotel Paradiso

Para uma Filosofia da Arte Conceptual


 Sol LeWitt, EUA, 19228/2017 "Janelas" 1980

Embora seja enganador categorizar LeWitt como restrito "puro" (por oposição a "primeiro") artista conceptual, ele não deixa de ser amplamente considerado muito influente na produção e recepção desta arte, através da publicação, no verão 1967 e em Janeiro de 1969, dos seus "Parágrafos" e"Sentenças" sobre a Arte Conceptual. Apesar destes textos serem geralmente lembrados como reivindicações programáticas,  por exemplo: " a ideia é a máquina que faz a arte "ou " as ideias sozinhas podem ser obras de arte", são também impressionantes quando revistos à luz da anterior consideração da teoria de Kant sobre a  arte como expressão de ideias estéticas. Consideremos  as seguintes generalizações empíricas que LeWitt faz sobre a nova arte, em 1967:

• Este tipo de arte não é teórica ou ilustrativa de teorias; é intuitiva, ela está envolvida com todos os tipos de processos mentais e é inútil.
• Arte Conceptual não é necessariamente lógica [...] As ideias são descobertas por intuição.
• A Arte Conceptual não tem na realidade muito a ver com a matemática, a filosofia, ou qualquer outra disciplina mental.
• A Arte Conceptual é feita para envolver a mente do espectador, ao invés da sua visão ou emoções.
• A Arte Conceptual só é boa quando a ideia é boa.
(...)
Estas preocupações são ainda mais pronunciadas nos "Sentenças sobre Arte Conceptual” publicadas um ano e meio mais tarde:

• Os artistas conceptuais são místicos ao invés de racionalistas. Saltam para conclusões que a lógica não pode alcançar.
• Os julgamentos racionais repetem julgamentos racionais. Os juízos ilógicos conduzem a novas experiências.
• As Ideias não procedem necessariamente por ordem lógica.
• Uma vez que a ideia da peça tenha sido  estabelecida na mente do artista e a sua forma final decidida, o processo é realizado de forma cega.
• O processo é mecânico e não deve ser interrompido (adulterado). Deve executar o seu curso.

• A vontade do artista é secundária em relação ao  processo que inicia desde a ideia até à  conclusão. A sua obstinação só pode ser ego."

Nota: A ordem das frases aqui reproduzida  não é a original do texto de LeWitt.

Diarmuid Costello, Kant after LeWitt: Towards an Aesthetics of Conceptual Art, in Philosophy and Conceptual Art, Claredon Press, Oxford, 2007, p.104, 105

Tradução de Helena Serrão

quinta-feira, maio 12, 2016

Capicua - Medo do Medo

Capicua - Medo do Medo

domingo, janeiro 12, 2014

Arte, filosofia e ciência. Pensamento e cognição.


A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma que  a “propensão para a troca e o comércio” é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se de capacidades do homem, e não de meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem um só conteúdo. Esses atributos humanos são tão alheios ao mundo que o homem cria como seu lugar na terra, como os atributos correspondentes de outras espécies animais; se tivessem de constituir um ambiente fabricado pelo homem para o animal humano, esse ambiente seria um não-mundo, resultado de emanação e não de uma criação. A capacidade de pensar relaciona-se com o sentimento, transformando a sua dor muda e inarticulada, do mesmo modo que a troca transforma a ganância crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado da necessidade — até que todos se tornem dignos de entrar no mundo transformados em coisas, reificados (coisificados). Em cada caso, uma capacidade humana que, por sua própria natureza, é comunicativa e voltada para o mundo, transcende e transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser. (…)

O pensamento difere da cognição. Fonte das obras de arte, o pensamento manifesta-se, sem transformação ou transfiguração, em todas as grandes filosofias, ao passo que a principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências. A cognição tem sempre um fim definido, que pode resultar de considerações práticas ou de “mera curiosidade”; mas, uma vez atingido esse fim, o processo cognitivo termina. O pensamento, ao contrário, não tem outro fim ou propósito além de si mesmo, e não chega sequer a produzir resultados; não só a filosofia utilitária do homo faber, mas os homens de acção e os cientistas que procuram resultados, nunca se cansaram de dizer quão “inútil” é o pensamento – realmente, tão inútil como as obras de arte que inspira. O pensamento não pode sequer alegar que fez estas obras de arte, pois elas, como os grandes sistemas filosóficos, não podem ser propriamente chamadas resultado do pensamento puro, estritamente falando, uma vez que é precisamente o processo de pensar que o artista ou o filósofo que escreve deve interromper e transformar para reificar a sua obra. A actividade de pensar é tão incessante e repetitiva coo a própria vida; perguntar se o pensamento tem algum significado equivale a recair no mesmo enigma irrespondível do significado da vida; os processos do pensamento impregnam tão intimamente toda a existência humana que o seu começo e o seu fim coincidem com o começo e o fim da própria existência humana. Assim, embora o pensamento inspire a mais alta produtividade mundana do hommo faber, não é de modo algum uma sua prerrogativa; começa a afirmar-se como fonte de inspiração do hommo faber apenas quando este se ultrapassa, por assim dizer, e se põe a produzir coisas inúteis, objectos que não têm qualquer relação com as necessidades materiais ou intelectuais, com as necessidades físicas do homem ou com a sua sede de conhecimento. Por outro lado, a cognição é pertinente a todos os processos, não apenas intelectuais ou artísticos como a própria fabricação, ela é um processo que tem um começo e um fim, cuja utilidade pode ser posta à prova e que, se não produzir resultados , terá fracassado, como fracassa a arte do carpinteiro quando ele fabrica uma mesa de duas pernas. Os processos cognitivos das ciências não diferem basicamente da função da cognição na fabricação; os resultados produzidos através da cognição são acrescentados ao artifício humano como todas as outras coisas.



Hannah Arendt, A condição Humana, Relógio D´Agua, Lx,2001, pag. 208,212.

Foto: Josef Koudelka, 1938

O pensamento como mais vasto que a actividade de cognição e ao contrário desta como improdutivo, no seu labor incessante é basicamente inútil, do ponto de vista da produção de coisas mas, por outro lado, é a origem das coisas perenes como arte e filosofia que se juntam aos artefactos humanos quando se materializam mas que se distinguem destes (objectos de utilidade)por serem mais duráveis ou por instaurarem no mundo algo único, semelhante ao imortal no mundo produzido onde a transformação e a destruição são constantes.

domingo, janeiro 18, 2009

Arte e Terror


Retrato de Rebecca Gratz, Thomas Sully (1783/1872)

Este conto foi inspirado num retrato do pintor americano Thomas Sully que Poe viu numa galeria da 4ª Avenida.

Para aqueles alunos que adoram uma boa história de terror


O retrato, já o disse, era o de uma jovem. Tratava-se de uma cabeça simples, com ombros, o todo no estilo a que se chama, em linguagem técnica, modo de vignette, muito ao modo de ser de Sully das suas cabeças predilectas. Os braços, o seio, e mesmo as pontas dos cabelos radiosos, fundiam-se imperceptivelmente na sombra vaga mas profunda que servia de fundo ao conjunto. A moldura era oval, magnificamente dourada e com lavores a prata de gosto mourisco. Como obra de arte, nada de mais admirável se podia encontrar do que a própria pintura. mas pode muito bem ser que não fosse nem a execução da obra, nem a beleza imortal da fisionomia, que me tivessem impressionado tão súbita e fortemente. Ainda menos devia eu acreditar em que a minha imaginação, saindo de um semi-sono, houvesse tomado a cabeça pela de uma pessoa viva. Vi primeiro que os pormenores do desenho, o estilo da vinheta e o aspecto da moldura teriam dissipado imediatamente um tal encantamento e me teriam evitado qualquer ilusão, mesmo momentânea. Enquanto fazia estas reflexões e muito vivamente, permaneci, meio sentado, meio estendido, talvez uma hora inteira. Por fim, tendo finalmente descoberto o verdadeiro segredo do seu efeito, tornei a deixar-me cair na cama. Adivinhara que o encanto da pintura era uma expressão vital absolutamente adequada à própria vida, que a princípio me fizera estremecer e, por fim, me confundira, subjugara, aterrorizara. Com um pavor profundo e respeitoso, (...) agarrei logo no volume que continha a análise dos quadros e a sua história. Indo direito ao número que designava o retrato oval, li a narrativa vaga e singular que segue:


" Era uma jovem de uma beleza rara, e que não era menos amável ou cheia de alegria. E maldita foi a hora em que viu, e amou, e desposou, o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero e tendo já encontrado uma esposa na sua Arte; ela, uma rapariga de uma beleza muito rara e não menos amável do que cheia de alegria: só luz e sorrisos, e a galhofa de um pavão novo; amando e prezando as coisas; apenas odiando a Arte que era sua rival; apenas temendo a paleta e os pincéis, e os outros instrumentos importunos que a privavam da presença do seu adorado. Foi uma coisa terrível para esta dama ouvir o pintor falar do desejo de pintar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente, e sentou-se com doçura durante longas semanas, no sombrio e alto quarto da torre, onde a luz se filtrava pálida pelo tecto sobre a tela. Mas ele, o pintor, empenhava-se a fundo na obra, que avançava hora a hora, dia a dia. E era um homem apaixonado, estranho e pensativo, que se perdia em devaneios; de tal modo que não queria ver que a luz que tão lugubremente caía naquela torre isolada, minava a saúde e o espírito da mulher que elanguescia visivelmente para todos, excepto para ele. Contudo, continuava a sorrir, sem jamais se lastimar, porque via que o pintor sentia um prazer vivo e ardente no seu trabalho e trabalhava noite e dia para pintar o que tanto amava. Os que contemplavam o retrato falavam em voz baixa da sua semelhança, como uma maravilha e como uma prova, não menor, da força do pintor e do seu amor profundo por aquela que pintava tão miraculosamente bem. Mas, por fim, como a tarefa se aproximasse do seu termo, ninguém mais foi admitido na torre, porque o pintor enlouquecera devido ao ardor do seu trabalho, e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para fitar a figura da mulher. E não queria ver que as cores que expunha na tela eram tiradas das faces daquela que se achava sentada perto dele. E, quando muitas semanas passaram e pouco restava para fazer, apenas um retoque na boca e uma cor clara e transparente no olhar, o espírito da dama palpitou ainda como a chama no bico de um candeeiro. E então foi dado o retoque, a cor clara e transparente foi colocada; e durante um momento o pintor manteve-se em êxtase diante do trabalho terminado; mas um minuto depois, enquanto ainda o contemplava, estremeceu, tornou-se pálido, - e foi atingido pelo pavor; gritando com uma voz retumbante: 'Na verdade, é a própria Vida!', virou-se bruscamente para encarar a bem-amada: ela estava morta!"
Edgar Allan Poe, Contos Fantásticos, Guimarães Editores, Lisboa, 2002
Tradução de João Costa