quinta-feira, março 25, 2021

O argumento ontológico

 


Capítulo II

 Que Deus existe verdadeiramente 

Assim, pois, Senhor, tu que dás a inteligência da fé, dá-me, tanto quanto aches bem, que eu compreenda que tu existes como nós <o> acreditamos e que tu és o que nós acreditamos. Nós acreditamos, com efeito,que tu és “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado”.Será que não existe uma tal natureza, uma vez que o “insensato disse no seu coração: ‘Deus não existe’ ”?16Mas certamente este mesmo insensato, quando ouve isto que eu digo – ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ –, compreende o que ouve, e o que ele compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele não compreend eque isso existe <na realidade>. Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto, outra é compreender que tal realidade existe. De facto, quando um pintor pensa antes o que vai fazer, tem na inteligência o que ainda não fez, mas de modo nenhum compreende que exista o que ainda não fez. Pelo contrário, quando já o pintou, tem na inteligência o que já fez e compreende que isso existe <na realidade>. Mesmo o insensato está, pois, convicto de que “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto.Mas, sem dúvida, “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado” não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o que é ser maior. Se pois “aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado” existe apenas no intelecto, então “aquilo mesmo maior do que o qual nada pode ser pensado” é “algo maior do que o qual algo pode ser pensado”. Mas isto, <como é evidente>, é claramente impossível. Existe, pois, sem a menor dúvida, “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” tanto no intelecto como na realidade.

Santo Anselmo, Proslogion seu Alloquium de Dei existentia,Lusosofia; press, Universidade da Beira Interior Covilhã, 2008, p.12

sábado, março 06, 2021

Etnocentrismo versus relativismo cultural

 


Jonas Bendiksen, Fotografias da periferia da ex-União Soviética,2006


Desta forma, o etnocentrismo pode ser considerado como um fator de ajustamento e de integração do indivíduo, por reforçar a sua identificação com o grupo do qual faz parte, com as formas de conduta aprovadas e consideradas como boas por esse mesmo grupo. Os problemas surgem, entretanto, a partir do momento em que o etnocentrismo é racionalizado e passa a constituir a base de programas de ação postos em prática com prejuízo para o bem estar de outros povos.

Esta é a forma mais usual que toma o etnocentrismo entre muitos povos – uma certa insistência nas virtudes do seu próprio grupo, mas sem qualquer tendência para levar esta atitude ao campo prático. Segundo tal ponto de vista, os ideais, as formas de comportamento socialmente aprovadas, os sistemas de valores dos povos com os quais se entra em contacto, podem ser julgados, após o que serão aceites ou rejeitados, mas sem qualquer referência a padrões absolutos, uma vez que há padrões de cultura que são bons para um grupo e não o são para outros, e o que um grupo considera como bom não é, necessariamente, bom para o outro. Mas aceitar-se que pode haver diferentes maneiras de atuar na prossecução de objetivos visados, sem que isso envolva, necessariamente, juízos valorativos, implica uma modificação na maneira de pensar. A posição relativista não significa, de forma alguma, que todos os sistemas de valores, todos os conceitos de bem e de mal, assentem sobre areias tão movediças que não haja necessidade de uma moral, de formas de comportamento estabelecidas e aceites, de códigos éticos. Aliás, o relativismo cultural é uma filosofia que aceita os valores estabelecidos em qualquer sociedade, acentuando a dignidade inerente a qualquer desses sistemas de valores e a necessidade de tolerância em relação a eles, embora possam diferir dos que adotamos e pelos quais nos conduzimos. Reconhece ainda a necessidade de conformidade com normas estabelecidas, como condição necessária para a normalidade da vida em sociedade.

Mas salienta que o facto de termos o direito de esperar, daqueles com quem interactuamos, conformidade com o código pelo qual nos guiamos, não significa que esperemos e muito menos que imponhamos, às pessoas que vivem de acordo com diferentes sistemas de valores, a observância do nosso próprio código.

O relativismo cultural põe o assento tónico na disciplina social que advém do respeito pelas diferenças – respeito mútuo. A posição relativista dá especial ênfase à validade de muitas formas de vida, não de uma só. Tal ênfase procura compreender e harmonizar objetivos, em vez de julga-los e destruí-los, quando sejam diferentes dos nossos.

Augusto Mesquitela Lima, Introdução à antropologia cultural, Lx, Presença, 1984, pp.60-62