domingo, janeiro 12, 2014

Arte, filosofia e ciência. Pensamento e cognição.


A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma que  a “propensão para a troca e o comércio” é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se de capacidades do homem, e não de meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem um só conteúdo. Esses atributos humanos são tão alheios ao mundo que o homem cria como seu lugar na terra, como os atributos correspondentes de outras espécies animais; se tivessem de constituir um ambiente fabricado pelo homem para o animal humano, esse ambiente seria um não-mundo, resultado de emanação e não de uma criação. A capacidade de pensar relaciona-se com o sentimento, transformando a sua dor muda e inarticulada, do mesmo modo que a troca transforma a ganância crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado da necessidade — até que todos se tornem dignos de entrar no mundo transformados em coisas, reificados (coisificados). Em cada caso, uma capacidade humana que, por sua própria natureza, é comunicativa e voltada para o mundo, transcende e transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser. (…)

O pensamento difere da cognição. Fonte das obras de arte, o pensamento manifesta-se, sem transformação ou transfiguração, em todas as grandes filosofias, ao passo que a principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências. A cognição tem sempre um fim definido, que pode resultar de considerações práticas ou de “mera curiosidade”; mas, uma vez atingido esse fim, o processo cognitivo termina. O pensamento, ao contrário, não tem outro fim ou propósito além de si mesmo, e não chega sequer a produzir resultados; não só a filosofia utilitária do homo faber, mas os homens de acção e os cientistas que procuram resultados, nunca se cansaram de dizer quão “inútil” é o pensamento – realmente, tão inútil como as obras de arte que inspira. O pensamento não pode sequer alegar que fez estas obras de arte, pois elas, como os grandes sistemas filosóficos, não podem ser propriamente chamadas resultado do pensamento puro, estritamente falando, uma vez que é precisamente o processo de pensar que o artista ou o filósofo que escreve deve interromper e transformar para reificar a sua obra. A actividade de pensar é tão incessante e repetitiva coo a própria vida; perguntar se o pensamento tem algum significado equivale a recair no mesmo enigma irrespondível do significado da vida; os processos do pensamento impregnam tão intimamente toda a existência humana que o seu começo e o seu fim coincidem com o começo e o fim da própria existência humana. Assim, embora o pensamento inspire a mais alta produtividade mundana do hommo faber, não é de modo algum uma sua prerrogativa; começa a afirmar-se como fonte de inspiração do hommo faber apenas quando este se ultrapassa, por assim dizer, e se põe a produzir coisas inúteis, objectos que não têm qualquer relação com as necessidades materiais ou intelectuais, com as necessidades físicas do homem ou com a sua sede de conhecimento. Por outro lado, a cognição é pertinente a todos os processos, não apenas intelectuais ou artísticos como a própria fabricação, ela é um processo que tem um começo e um fim, cuja utilidade pode ser posta à prova e que, se não produzir resultados , terá fracassado, como fracassa a arte do carpinteiro quando ele fabrica uma mesa de duas pernas. Os processos cognitivos das ciências não diferem basicamente da função da cognição na fabricação; os resultados produzidos através da cognição são acrescentados ao artifício humano como todas as outras coisas.



Hannah Arendt, A condição Humana, Relógio D´Agua, Lx,2001, pag. 208,212.

Foto: Josef Koudelka, 1938

O pensamento como mais vasto que a actividade de cognição e ao contrário desta como improdutivo, no seu labor incessante é basicamente inútil, do ponto de vista da produção de coisas mas, por outro lado, é a origem das coisas perenes como arte e filosofia que se juntam aos artefactos humanos quando se materializam mas que se distinguem destes (objectos de utilidade)por serem mais duráveis ou por instaurarem no mundo algo único, semelhante ao imortal no mundo produzido onde a transformação e a destruição são constantes.