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domingo, junho 22, 2025

O ressentimento perante o outro como o reverso do desejo por ele.




Herbert List, Alemanha, 1950
O problema do desejo humano é, segundo Lacan, ser sempre “desejo do Outro” em todos os sentidos do termo: desejo pelo Outro, desejo de ser desejado pelo Outro, e, especialmente, desejo pelo que o Outro deseja. Este último desejo torna a inveja, que inclui o ressentimento, uma componente constitutiva do desejo humano – aspecto que Santo Agostinho conhecia bem. Lembremos a passagem de suas Confissões (citadas com frequência por Lacan) onde nos deparamos com a cena de um bebê com ciúmes do irmão chupando o seio da mãe: “Eu mesmo vi e compreendi como uma criança pode ter ciúmes embora ainda não fale. Empalidece e lança olhares amargos ao seu irmão de leite.”
Baseando-se nessa intuição, Jean-Pierre Dupuy propõe uma crítica convincente da teoria da justiça de John Rawls. No modelo rawlsiano de uma sociedade justa, as desigualdades sociais só são toleradas na medida em que também possam ajudar os que se encontram na zona mais baixa da escala social, e na medida em que se baseiem não em posições hierárquicas herdadas, mas em desigualdades naturais, que são consideradas aspectos contingentes, e não méritos. Os próprios conservadores britânicos parecem estar agora dispostos a aprovar a noção de justiça de Rawls: em dezembro de 2005, o então recém-eleito líder do Partido Conservador, David Cameron, propôs aos seus a defesa dos desfavorecidos, declarando:
“Penso que o critério de todas as nossas medidas políticas deveria ser: que fazem elas pelas pessoas que têm menos, pelas pessoas que estão na parte inferior da escala?”. Mas o que Rawls não vê é como uma sociedade dessas criaria condições para uma explosão de ressentimento descontrolada: nela, eu saberia que meu estatuto inferior é plenamente “justificado” e, portanto, seria privado da possibilidade de explicar meu próprio fracasso como resultado da injustiça social. Rawls propõe assim o modelo aterrador de uma sociedade em que a hierarquia é iretamente legitimada por propriedades naturais, perdendo de vista a simples lição que uma piada sobre um camponês esloveno torna de uma clareza palpável. Uma boa feiticeira oferece ao camponês a possibilidade de escolha: ou ela lhe presenteará com uma vaca, dando duas ao seu vizinho, ou tomará uma vaca do camponês e duas do vizinho. O camponês escolhe sem hesitar a segunda alternativa. Gore Vidal enuncia essa atitude numa fórmula sucinta: “Não me basta ganhar – o outro tem de perder”. O problema da inveja/ressentimento é que não se limita a adotar o princípio do jogo de soma nula, em que a minha vitória é igual à perda do outro, mas implica também uma diferença entre os dois jogadores, que não é uma diferença positiva (todos podemos ganhar sem que haja perdedores), mas negativa. Se tiver de escolher entre o meu ganho e a perda do meu adversário, preferirei a perda do meu adversário, ainda que isso signifique uma perda também para mim. É como se minha eventual vitória a partir da perda do adversário funcionasse como uma espécie de elemento patológico que mancha a pureza de meu sucesso.
Friedrich Hayek sabia que era muito mais fácil para alguém aceitar as desigualdades se pudesse declará-las resultado de uma força cega impessoal: o lado bom da “irracionalidade” de mercado em ligação com o sucesso ou fracasso no quadro do capitalismo é precisamente permitir que eu perceba meu fracasso ou o meu sucesso como “imerecido”, contingente.
Pensemos no velho tema do mercado como a versão moderna de um destino imponderável. O fato de o capitalismo não ser “justo” constitui um dos traços fundamentais daquilo que o torna aceitável para a maioria. Posso viver muito mais facilmente com meu fracasso se souber que este não se deve às minhas qualidades inferiores, mas ao acaso.

Slavoj Zizek, Violência, Editora, Boitempo, S.Paulo,2014

Tradução de Miguel Serras Pereira

quinta-feira, maio 23, 2024

Robert Nozick: Os mais favorecidos têm direito a queixar-se no sistema de justiça proposto por Rawls.


Ruth Orkin,  GreenwichVillage, Nova Iorque, 1949

Rawls dedica muita atenção a explicar por que os menos favorecidos não devem queixar-se de receber menos. A sua explicação, em termos simples, é que porque a desigualdade age em seu benefício, o indivíduo menos favorecido não deve queixar-se dela: ele recebe mais no sistema desigual do que obteria num sistema igual. (Embora pudesse receber ainda mais num sistema que colocasse alguém mais abaixo dele). Rawls, porém, discute a questão se os mais favorecidos acharão ou não, ou deverão achar, os termos satisfatórios (…) O que Rawls imagina que se diz aos mais favorecidos não demonstra que estes não têm motivos para se queixarem. A condição de que o bem-estar de todos depende da cooperação social, sem a qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, poderia também ser dito aos menos dotados por alguém que propusesse qualquer outro princípio, incluindo o de maximizar a posição dos mais bem dotados. Analogamente, a respeito do facto, só podemos pedir a cooperação voluntária de alguém se os termos do esquema forem razoáveis. A questão é: Que termos seriam razoáveis? (…) Assim quando Rawls continua: “ O princípio da diferença, então, parece ser uma base justa sobre a qual os mais bem dotados, ou mais afortunados nas suas circunstâncias sociais, poderiam esperar que os demais colaborassem com eles, quando o arranjo viável for condição necessária para o bem de todos”, a presença do termo “então” nesse período é enigmática. Uma vez que as orações que o precedem são neutras entre a sua proposta e outra qualquer, a conclusão de que o princípio da diferença oferece uma base justa para a cooperação não pode seguir-se do que a precede neste trecho. Rawls repete que os termos parecem razoáveis, o que seria certamente uma resposta pouco convincente para aqueles para quem eles não são razoáveis. Rawls não demonstrou que o indivíduo mais favorecido A, não tem motivos para se queixar ao ser obrigado a ter menos, para que outro, B, possa ter mais do que teria em outra situação qualquer. E não pode demonstrar isso uma vez que A, de facto, tem motivo de queixa. Ou não tem?

Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia (1974), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1991), p.213, 214

 

quinta-feira, maio 16, 2024

Rawls: Como pensar uma sociedade mais justa.


Luís Pavão, Taberna da Rua de S. Mamede, 1981

"O político visa à próxima eleição, o estadista, à próxima geração. É papel do estudante de filosofia visar às condições permanentes e aos reais interesses de uma sociedade democrática justa e boa”, John Rawls

O filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) costumava dizer que a última coisa de que gostaria era de se tornar assunto de teses académicas. Não podia evitá-lo, porém. O que a frase acima indica é que ele preferia que seu pensamento servisse de inspiração para que outros implementassem, ou levassem adiante, as suas ideias, em vez de se limitar a alimentar teses e doutores. Dedicou boa parte da sua vida académica, se não toda ela, à elaboração de uma teoria da justiça, à qual deu o nome de “Justiça como equidade” (Justice as fairness). A sua teoria foi apresentada de modo mais consistente, em 1971, em Uma Teoria da Justiça, e a partir daí ocupou-se em responder às críticas e corrigir ou alterar alguns aspetos da sua teoria. O conjunto de sua produção converge, de maneira impressionante, para o tema central: como tornar as sociedades mais justas? (...)

Rawls não se limita a descrever uma situação de injustiça social; aliás, raramente o faz. Parte do pressuposto de que a desigualdade é inerente à condição do homem em sociedade, e que o homem é intrinsecamente auto-interessado, um “egoísta racional”. Ainda assim, julga, ele pode superar essa condição ao associar-se a outros para estabelecer os princípios da vida em comum. Para que a escolha dos princípios não seja distorcida por esses interesses, tal escolha efetua-se por trás de um “véu de ignorância”, os agentes ignoram a sua posição atual bem como suas chances futuras na sociedade, tanto as suas como as dos outros. A essa situação chama de “posição original”.

Uma vez escolhidos os princípios para essa sociedade, que são, argumenta, o “princípio da liberdade igual para todos” e o “princípio da diferença”, caberá a cada sociedade, internamente , deliberar sobre a forma de pôr em prática esses princípios

A igualdade de oportunidades só pode ser efetiva se todos se beneficiarem das mesmas condições formais de educação, saúde e alimentação, dentre outros bens primários. Caso todos possuam acesso pelo menos aos bens básicos, a condição inicial será justa. Isso não significa que não haja mais desigualdade, mas essa desigualdade será pelo menos aceitável para os que se encontram na base da pirâmide social; este é, basicamente, o que é enunciado pelo princípio da diferença. Como diz Rawls, a “igualdade de oportunidades é assegurada por um certo conjunto de instituições que asseguram igualmente boa educação e chances de cultura para todos e que mantêm aberta a competição para posições com base em qualidades que podem ser relacionadas com a performance”.

A teoria da justiça como equidade não constitui um igualitarismo rasteiro. Trata-se de mexer na distribuição até ao ponto em que se possa fazê-lo sem afetar a renda da sociedade como um todo, o que é conhecido como o princípio "maximin". Este defende que se pode elevar a renda e as condições de vida dos que têm menos, ao mesmo tempo em que se taxa progressivamente (ou por meio de um imposto de consumo) a renda dos que têm mais, até ao ponto em que uma maior alteração afetaria negativamente as condições económicas da sociedade em geral. Em linguagem mais simples, quer dizer que a desigualdade se justifica se e somente se, aqueles que estão na parte mais baixa da pirâmide são mais beneficiados pela presente repartição (desigual) de bens e oportunidades do que seriam se o sistema fosse mais igualitário.

Luiz Paulo Rouanet



sexta-feira, junho 02, 2023

Crítica ao princípio da diferença de Rawls.


Dennis Sock, Casal com criança, EUA, 1952

“Pensa-se normalmente – é isso que pensa Rawls, por exemplo – que o princípio da diferença autoriza um argumento a favor da desigualdade baseado em incentivos materiais. A ideia é que as pessoas talentosas serão mais produtivas do que seriam de outra forma se, e apenas se, ganharem mais que o salário comum – e alguma da sua produção adicional pode ser usada para benefício dos mais desfavorecidos. Alega-se que a desigualdade resultante dos incentivos materiais diferenciados, justifica-se pelo princípio da diferença, pois, diz-se, esta desigualdade beneficia os mais desfavorecidos.

Contudo, pelas razões que se seguem, creio que o argumento dos incentivos a favor da desigualdade representa uma aplicação distorcida do princípio da diferença (…). Ou as pessoas acreditam que as desigualdades são injustas se não são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, ou não acreditam que isso é uma exigência da justiça.  Se não acreditam no princípio da diferença, então a sua sociedade não é justa no sentido rawlsiano apropriado, pois uma sociedade é justa, segundo Rawls, só se os seus membros afirmam e aceitam os princípios da justiça corretos. (…)

Passemos então à outra possibilidade -as pessoas talentosas afirmam o princípio da diferença (…). Podemos perguntar por que razão, à luz da sua crença no princípio, exigem ganhar mais que os não talentosos por um trabalho que, de facto, pode requerer um talento especial, mas que não é especialmente desagradável (…).  Podemos perguntar aos talentosos se o dinheiro que ganham a mais é necessário para melhorar a posição dos mais desfavorecidos -essa é a única justificação que, segundo o princípio da diferença, poderá haver para ganharem mais. Será isso simplesmente necessário? Ou será necessário apenas na medida em que os talentosos decidiriam produzir menos, ou não aceitar os lugares para os quais estão habilitados, se a desigualdade fosse eliminada (por exemplo através de impostos que redistribuíssem os rendimentos de forma a se obter um resultado perfeitamente igualitário? (…)

As pessoas talentosos não poderiam afirmar, para se justificarem (…) que as suas recompensas superiores são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, dado que são elas próprias que tornam essas recompensas necessárias, recusando-se a trabalhar por recompensas normais tão produtivamente como o fazem por recompensas excecionalmente  altas.  As recompensas altas, portanto, são necessárias apenas porque as escolhas das pessoas talentosas não obedecem propriamente ao princípio da diferença (…)

Deste modo, o princípio da diferença pode justificar a desigualdade apenas numa sociedade em que nem todos o aceitem. Não pode, portanto, justificar a desigualdade de uma forma apropriadamente rawlsiana.”

Se és igualitarista, como ficaste tão rico? G.A. Cohen pp.124-127


 

sexta-feira, maio 26, 2023

Uma aproximação do pensamento de Nozick a Rawls.


Fotografia de Chien-Chi Chang -Bar no centro de Lviv. Não é servido álcool devido a uma proibição do Estado. Lviv, Ukraine, March 22, 2022 

 Em 1971, um até então obscuro professor de filosofia de Harvard, John Rawls, publicou um livro que acabou por aclamá-lo como “o maior filósofo político da América”. No livro “ Teoria da Justiça”, Rawls apresentou uma descrição da justiça na forma de dois princípios, ordenando respetivamente que as “liberdades básicas iguais” das pessoas – direitos como liberdade de expressão, liberdade de consciência e o direito de voto — devem ser maximizados, e que as desigualdades em bens sociais e económicos, que não sejam a liberdade, são aceitáveis apenas se promoverem o bem-estar dos membros “menos favorecidos” da sociedade. (Chamou este último de “princípio da diferença”).

Três anos após o aparecimento de “Teoria”, um colega do seu departamento, Robert Nozick, publicou uma resposta libertária, “Anarquia, Estado e Utopia”, que argumentava que só um "estado mínimo", dedicado a proteger as pessoas contra crimes como assalto, roubo e fraude pode ser moralmente justificado.

O livro de Nozick era muito mais conciso do que a “Teoria” de Rawls  e não passou despercebido; ganhou o National Book Award de 1975 e mais tarde foi listado pelo Times Literary Supplement como um dos 100 livros mais influentes do século XX. “Anarquia” continua a ser um elemento imprescindível do currículo dos cursos de teoria política, onde geralmente é o contraponto à teoria de Rawls, para sugerir que o liberalismo do estado de bem-estar social de Rawls e o libertarismo de Nozick representam todo o espectro de possibilidades que se colocam às democracias liberais contemporâneas.

No entanto, a reputação e a influência de Nozick na academia - para não falar do reconhecimento de seu nome no mundo mais amplo do direito e da política - nunca rivalizaram com as do seu colega. (Embora 15 anos mais novo que Rawls, Nozick morreu no mesmo ano, 2002, após uma longa luta contra o cancro.) Sem dúvida, parte da explicação é que o “liberalismo de esquerda” de Rawls (como ele mais tarde descreveu a sua posição) se harmoniza muito melhor com a orientação típica do ensino contemporâneo. Além disso, ao contrário de Rawls, Nozick nunca fez do desenvolvimento de uma determinada doutrina política, a preocupação unificadora de sua carreira académica. Em vez disso, o seu intelecto abrangente levou-o a continuar “Anarchy” (seu primeiro livro) com outras obras abordando uma variedade considerável de tópicos filosóficos, do livre arbítrio à teoria da decisão (no seu livro de 1989 “The Examined Life”) amor , morte, fé e o sentido da vida.

Mais importante, no entanto, “Anarquia” nunca constituiu uma verdadeira alternativa à doutrina de Rawls, uma vez que, em todas as questões substantivas, exceto na legitimidade da redistribuição governamental da riqueza, Nozick e Rawls concordaram. (E mesmo nessa questão, numa passagem normalmente ignorada pelos seus admiradores, o próprio Nozick foi evasivo.

Como a “Teoria” de Rawls, “Anarquia” começa com uma declaração abrangente da primazia da justiça – entendida, neste último livro, como direitos individuais, definidos como liberdades, isto é, a ausência de restrições externas sobre as nossas ações – sobre todos os outros critérios para avaliar políticas sociais e instituições. Em outras palavras, Nozick reteve mais ou menos o primeiro princípio de Rawls (liberdade) enquanto eliminou o segundo (diferença).

Sugerindo que “a questão fundamental da filosofia política” não é como o governo deve ser organizado, mas “se deve haver algum estado”, Nozick oferece uma adaptação da doutrina de John Locke de que o governo é legítimo apenas na medida em que oferece maior segurança pela vida, liberdade e propriedade do que existiria num “estado de natureza” caótico e pré-político. Mais enfaticamente do que Locke, no entanto, Nozick conclui que a necessidade de segurança justifica apenas um estado mínimo, ou “vigia noturno”, uma vez que não pode ser demonstrado, acredita, que todos os indivíduos racionais achariam necessário um governo mais extenso para garantir a segurança dos seus direitos.

No lugar do “princípio da diferença” de Rawls, Nozick propõe uma “teoria do direito” da justiça, segundo a qual as propriedades individuais são justificadas apenas se derivarem de aquisições justas ou transferências (voluntárias). Notavelmente, Nozick nunca especifica os critérios de aquisição justa. No entanto, em vez de visões de “corte de tempo atual” da justiça distributiva, como a de Rawls, que avalia as participações atuais de acordo com um padrão externo de equidade, Nozick afirma um padrão “histórico”, que determina a legitimidade de uma distribuição apenas porque teve origem num procedimento justo.

Nozick oferece uma crítica espirituosa e incisiva da lógica de Rawls para o seu princípio da diferença, refutando a alegação implausível de que apenas porque os membros de uma sociedade beneficiam da cooperação social, os membros menos favorecidos têm automaticamente direito a uma participação nos ganhos de seus pares mais bem-sucedidos.

O libertarismo de Nozick, que compara a tributação da renda ao trabalho forçado, sofre, no entanto, de um defeito correspondente. Nozick nunca reconhece a necessidade de um regime liberal para garantir  um certo nível de segurança social e benefícios educacionais a todos os cidadãos, na medida em que suas circunstâncias permitirem, nem que seja para garantir a lealdade contínua dos pobres a esse regime. Como Rawls, Nozick procurou impor uma visão abstrata de justiça na vida política, relegando considerações de viabilidade (isto é, de conformidade com as prováveis demandas de seres humanos reais) para serem resolvidas por outros, no espírito da máxima de Immanuel Kant, “que a justiça triunfe, ainda que, por ela, pereça o mundo”.

 Ironicamente, no entanto, o próprio Nozick finalmente reconhece que sua teoria do direito é insuficiente para refutar a necessidade de um estado redistributivo, uma vez que nunca pode ser demonstrado se as propriedades existentes derivam de uma série ininterrupta de transferências voluntárias ou se derivam de algum ato original de conquista injusta. Assim, surpreendentemente, ele acaba sugerindo que algo como o princípio da diferença de Rawls é moralmente exigido afinal, em nome da “retificação”, na duvidosa premissa de que aqueles atualmente menos favorecidos têm a maior probabilidade de serem descendentes de vítimas anteriores de injustiça.

 Esta não é a única área de acordo entre Nozick e Rawls. Como Rawls, Nozick insiste que a justiça de uma sociedade seja avaliada apenas por causa da correspondência dos seus procedimentos com as noções preferidas de justiça, e não por realmente recompensar modos de vida moralmente dignos. Também como Rawls, Nozick termina seu livro representando a sociedade justa como moralmente libertária ao extremo, negando implicitamente a legitimidade de leis que proíbem práticas como a prostituição e a venda de drogas viciantes.

 Embora tenha reparado a sua crítica às falhas que descobriu na teoria de Rawls, com uma notável homenagem à sua ostensiva “beleza”, Nozick era muito mais brilhante e um escritor muito melhor e mais instigante do que o seu colega. Infelizmente, compartilhava com Rawls uma visão restrita da filosofia política como um empreendimento dedicado à produção de teorias abstratas, com pouca ou nenhuma consideração pela fundamentação da justiça na natureza humana. Aqueles que buscam uma alternativa ao igualitarismo superficial e ao libertarismo moral de nosso tempo fariam muito melhor em retornar ao pensamento dos maiores estadistas da América, como Lincoln e os autores de “The Federalist”; aos filósofos liberais que os guiaram, nomeadamente Locke e Montesquieu, e finalmente aos maiores filósofos clássicos, para os quais a teorização política era inseparável da busca por uma séria compreensão empírica da condição humana e do bem humano.

 David Lewis Schaefer, "Robert Nozick and the Coast of Utopia," New York Sun, April 30, 2008.

 

sexta-feira, maio 19, 2023

Será que um contrato social hipotético dá alguma garantia de justiça?


 

David Seymour (Polónia, 1911/1956), 1º dia de escola, Vila de Pilis,


Analisemos agora uma experiência mental: suponhamos que, ao reunir-nos para definir os princípios, não saibamos a qual categoria pertencemos na sociedade. Imaginemo-nos cobertos por um “véu de ignorância” que temporariamente nos impeça de saber quem realmente somos. Não sabemos a que classe social ou género pertencemos e desconhecemos a nossa raça ou etnia, as nossas opiniões políticas ou crenças religiosas. Tampouco conhecemos as nossas vantagens ou desvantagens — se somos saudáveis ou frágeis, se temos alto grau de escolaridade ou se abandonámos a escola, se nascemos numa família estruturada ou numa família desestruturada. Se não possuíssemos essas informações, poderíamos realmente fazer uma escolha a partir de uma posição original de equidade. Já que ninguém estaria numa posição de negociação superior, os princípios escolhidos seriam justos. É assim que Rawls entende um contrato social — um acordo hipotético numa posição original de equidade. Rawls convida-nos a raciocinar sobre os princípios que nós — como pessoas racionais e com interesses próprios — escolheríamos caso estivéssemos nessa posição. Ele não parte do pressuposto de que todos sejamos motivados, na vida real, apenas pelo interesse egoísta; pede apenas que deixemos de lado as nossas convicções morais e religiosas para realizar essa experiência mental. Que princípios escolheríamos?

Primeiramente, raciocina, não optaríamos pelo utilitarismo. Sob o véu de ignorância, cada um de nós ponderaria: “Pensando bem, posso vir a ser membro de uma minoria oprimida.” E ninguém arriscaria ser o cristão que é atirado aos leões para o divertimento da multidão. Nem escolheríamos o simples laissez-faire, o princípio libertário que daria às pessoas o direito de ficar com todo o dinheiro que ganhassem numa economia de mercado. “Posso acabar por ser o Bill Gates”, alguém raciocinaria, “mas também posso, por outro lado, ser um sem-abrigo. Portanto, é melhor evitar um sistema que me deixe desamparado e na penúria. “

Rawls acredita que dois princípios de justiça, poderiam emergir do contrato hipotético. O primeiro oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de expressão e religião. Esse princípio sobrepõe-se a considerações sobre utilidade social e bem-estar geral. O segundo princípio refere-se à equidade social e económica. Embora não requeira uma distribuição igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e económicas que beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade. Os filósofos questionam se os participantes do contrato social hipotético de Rawls escolheriam os princípios que ele afirma que escolheriam. Mais à frente veremos por que Rawls acha que esses dois princípios seriam escolhidos. Mas, antes de abordar os princípios, analisemos uma questão anterior a essa: A experiência hipotética de Rawls é a maneira correta de abordar a questão da justiça? Como podem princípios da justiça resultar de um acordo que jamais aconteceu de fato?

Michael Sandel, Justiça, Lx, Presença, pp.150, 151


sábado, maio 06, 2023

Considere-se a cooperação social...



Susan Meiselas, prisão e documentação de um rapaz de 12 anos, fronteira do México, 1989, USA



Considere-se de novo a ideia de cooperação social. Como se irão determinar os justos termos da cooperação? Serão, simplesmente, estabelecidos por uma autoridade externa, distinta das pessoas que cooperam entre si? Serão, por exemplo, estabelecidos por uma lei divina? Ou serão esses termos reconhecidos como justos pelas pessoas que cooperam, tomando como referência o seu conhecimento de uma ordem moral independente? Por exemplo, serão reconhecidos como termos exigidos pela lei natural ou pela esfera de valores conhecida por intuição racional? Ou serão esses termos estabelecidos através de uma aceitação por parte das próprias pessoas á luz daquilo que consideram a sua vantagem recíproca? (…)

A justiça como equidade reformula o contrato social e adota a última das hipóteses consideradas os justos termos da cooperação social são concebidos entre aqueles que nela se envolvem, isto é, por cidadãos livres e iguais que nascem na sociedade em que passam toda a sua vida. Mas o seu acordo, como qualquer outro acordo válido, deve ser firmado em condições apropriadas.

John Rawls, O liberalismo político, p.49 (adaptado).


quarta-feira, abril 09, 2014

Sobre a teoria da justiça de Rawls




A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reacção ao utilitarismo clássico. De acordo com esta teoria, se uma acção maximiza a felicidade, não importa se a felicidade é distribuída de maneira igual ou desigual. Grandes desníveis entre ricos e pobres parecem em princípio justificados. Mas na prática o utilitarismo prefere uma distribuição mais igual. Assim, se uma família ganha 5 mil euros por mês e outra 500, o bem-estar da família rica não diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem transferidos para a família pobre, mas o bem-estar desta última aumentará substancialmente. Isto compreende-se porque, a partir de certa altura, a utilidade marginal do dinheiro diminui à medida que este aumenta. (Chama-se "utilidade marginal" ao benefício comparativo que se obtém de algo, por oposição ao benefício bruto: achar uma nota de 100 euros representa menos benefício para quem ganha 20 mil euros por mês do que para quem ganha apenas 500 euros por mês.) Deste modo, uma determinada quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for retirada dos ricos para dar aos pobres. Tudo isto parece muito sensato, mas deixa Rawls insatisfeito. Ainda que o utilitarismo conduza a juízos correctos acerca da igualdade, Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de não atribuir valor intrínseco à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que a igualdade não é boa em si — é boa apenas porque produz a maior felicidade total.
Por consequência, o ponto de partida de Rawls terá de ser bastante diferente. Rawls parte então de uma concepção geral de justiça que se baseia na seguinte ideia: todos os bens sociais primários — liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases sociais da auto-estima (um conceito impreciso) — devem ser distribuídos de maneira igual a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens beneficie os menos favorecidos. A subtileza é que tratar as pessoas como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para alguém. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promove mais os interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro, então uma consideração igualitária dos interesses não proíbe essa desigualdade. Por exemplo, pode ser preciso pagar mais dinheiro aos professores para os incentivar a estudar durante mais tempo, diminuindo assim a taxa de reprovações. As desigualdades serão proibidas se diminuírem a tua parte igual de bens sociais primários. Se aplicarmos este raciocínio aos menos favorecidos, estes ficam com a possibilidade de vetar as desigualdades que sacrificam e não promovem os seus interesses.
Mas esta concepção geral ainda não é uma teoria da justiça satisfatória. A razão é que a ideia em que se baseia não impede a existência de conflitos entre os vários bens sociais distribuídos. Por exemplo, se uma sociedade garantir um determinado rendimento a desempregados que tenham uma escolaridade baixa, criará uma desigualdade de oportunidades se ao mesmo tempo não permitir a essas pessoas a possibilidade de completarem a escolaridade básica. Há neste caso um conflito entre dois bens sociais, o rendimento e a igualdade de oportunidades. Outro exemplo é este: se uma sociedade garantir o acesso a uma determinada escolaridade a todos os seus cidadãos e ao mesmo tempo exigir que essa escolaridade seja assegurada por uma escola da área de residência, no caso de uma pessoa preferir uma escola fora da sua área de residência por ser mais competente e estimulante, gera-se um conflito entre a igualdade de oportunidades no acesso à educação e a liberdade de escolher a escola que cada um acha melhor.

Faustino Vaz

terça-feira, março 11, 2014

Os princípios da justiça para John Rawls



Como podes ver, a concepção geral de justiça de Rawls deixa estes problemas por resolver. Será então indispensável um sistema de prioridades que justifique a opção por um dos bens em conflito. E nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro, é porque temos uma razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que outro. Nesse sentido, Rawls divide a sua concepção geral em três princípios:

Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.
Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto se a existência de desigualdades económicas e sociais gerar o maior benefício para os menos favorecidos.
Princípio da oportunidade justa: As desigualdades económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades.
Estes três princípios formam a concepção de justiça de Rawls. Mas por si só estes princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma espécie de guia nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de prioridades entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade absoluta sobre o bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um liberal. A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades, são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por exemplo, se já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes abdicar da tua liberdade e aceitar a restrição de não poderes sair de uma exploração agrícola na condição de passares a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares de gozar de liberdade de expressão para um dia teres a vantagem económica de não te serem cobrados impostos.
Em cada um dos princípios mantém-se a ideia de distribuição justa. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidade ou rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Isto faz de Rawls um liberal com preocupações igualitárias. Considera mais uma vez alguns exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais dotados o acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e evitando despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que a maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia e investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas doenças e desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos favorecidos.
Faustino Vaz

segunda-feira, março 03, 2014

Rawls:argumento intuitivo da igualdade de oportunidades



Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social ou raça. Intuitivamente não achamos plausível que uma mulher, pelo simples facto de ser mulher, encontre resistências à possibilidade de liderar um banco. Estas são circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades actuais a ideia de que as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de os menos favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é desfavorecido pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas suas próprias mãos. Os sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um, ou da falta dele. É assim que a maioria pensa.
Mas será que esta visão dominante da igualdade de oportunidades respeita a tua intuição de que o destino das pessoas deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas circunstâncias em que se encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão: reconhecendo apenas diferenças nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos talentos naturais, a visão dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja determinado pela sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de uma pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o destino de cada um seja determinado por desigualdades sociais, também o será se for determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma injustiça neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais. E neste caso não poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa com um QI baixo.
O que propõe Rawls em alternativa? Que a noção comum de igualdade de oportunidades passe a reconhecer as desigualdades naturais. Como? Dispondo a sociedade da seguinte maneira: quem ganha na "lotaria" social e natural dá a quem perde. De acordo com Rawls, ninguém deve beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é injusto permitir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles que a "lotaria" natural não favoreceu. E deste modo justificamos o princípio da diferença. Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades parte da intuição de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente considerada obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que daí resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende que o princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da diferença.
Faustino Vaz

sábado, março 01, 2014

O argumento do contrato social hipotético: John Rawls




Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto social, os teus gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua sorte na distribuição dos talentos naturais (como a inteligência, a força e a beleza) e que nem sequer conheces a tua concepção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Mas não és o único que se encontra nesta posição original; pelo contrário, todos estão envoltos neste véu de ignorância. Rawls afirma que esta situação hipotética descreve uma posição inicial de igualdade e nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da igualdade de oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que melhor dá conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam maneira de saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais. Nessa medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido.
Apesar de não sabermos qual será a nossa posição na sociedade e que objectivos teremos, há coisas que qualquer vida boa exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou poderás ter uma vida boa como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares serão bastante diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas coisas Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais e os naturais. Os bens primários sociais são directamente distribuídos pelas instituições sociais e incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os poderes, e os direitos e as liberdades. Os bens primários naturais são influenciados, mas não directamente distribuídos, pelas instituições sociais e incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a imaginação e os talentos naturais. Podes achar estranho que as instituições sociais distribuam directamente rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são instituições sociais.
Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas querem princípios de justiça que lhes permitam ter o melhor acesso possível aos bens sociais primários. E, como não sabem que posição têm na sociedade, identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar dela. Desse modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de todos e garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três famílias, a pessoa que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se queremos assegurar um jogo de futebol justo, a pessoa que estabelece as regras não pode saber se a sua equipa está a fazer um bom campeonato ou não. Imagina os seguintes padrões de distribuição de bens sociais primários em mundos só com três pessoas:
Mundo 1: 9, 8, 3;
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.
Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão? Lembra-te que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo seguro? Tentas maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior resultado possível? Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá ao mundo 3. A escolha racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida como "maximin", dado que procura maximizar o mínimo.

Faustino Vaz

terça-feira, maio 18, 2010

A justiça como procura da equidade


Ara Guler, Istambul, 1986

O nosso tema é a justiça social. Para nós, o objecto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, a forma pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a divisão dos benefícios e cooperação em sociedade. Por instituições mais importantes entendo a constituição política, bem como as principais estruturas económicas e sociais. Assim, a protecção jurídica da liberdade de pensamento e de concorrência de mercado, a propriedade privada dos meios de produção e a família monogâmica são exemplos de instituições desse tipo. Vistas em conjunto, como um único sistema, estas instituições definem os direitos e deveres de todos e influenciam as suas perspectivas de vida, aquilo com que podem contar e o grau das suas expectativas de êxito.

John Rawls, Uma teoria da Justiça, Presença, Lx, 1993

As instituições têm o dever de cumprir a vontade dos cidadãos que escolheram os seus representantes, esta simples afirmação é verdadeira, e a tomada de decisão enquanto tal pode ter o poder de uma lei.

segunda-feira, junho 15, 2009

A justiça como equidade.






A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e instituições, apesar de poderem ser eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas. Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que alguns percam a liberdade para outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim, numa sociedade justa, a igualdade de liberdade e direitos entre os cidadãos é considerada definitiva.




(...)




Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social.Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa concepção da justiça. Entre as características essenciais está o facto de que ninguém conhece a sua posição na sociedade, a sua situação de classe ou estatuto social, bem como a parte que lhe cabe na distribuição de atributos e talentos naturais, como a sua inteligência, a sua força e outras qualidades semelhantes. Parto inclusivamente do princípio de que as partes desconhecem as suas concepções do bem e as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais. Uma vez que todos os participantes estão numa situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa, (...) isto justifica a designação "justiça como equidade": transmite a ideia de que o acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação inicial que é equitativa. Não decorre daqui que os conceitos de justiça e equidade sejam idênticos, tal como também não decorre da frase "a poesia como metáfora" que os conceitos de poesia e de metáfora o sejam.







John Rawls, Uma Teoria da justiça in Textos e problemas de Filosofia


Org. Aires de Almeida e Desidério Murcho, pp.99-100