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quarta-feira, junho 15, 2022



Paula Rego (1935/ Junho 2022) Casa da celestina


Vou agora falar de um dos desastres da história da filosofia ocidental, e durante cinco minutos irei servir de cicerone. Eis como funciona: “Disseste que viste a tua mão, mas e se foi uma alucinação? Suponha-se que não viste realmente a minha mão, e que a experiência foi uma alucinação.” No caso da alucinação que estou a descrever, parece-me que estou a ver a minha mão, mas não vejo de facto a minha mão. Porém, a história continua: “Embora não tenhas visto realmente a tua mão, viste de facto algo. Mesmo que tenha sido apenas uma mão alucinatória ou a alucinação de uma mão ou uma imagem de uma mão – viste algo.” Este é o passo crucial naquilo a que chamei o desastre. A afirmação é que embora eu não tenha visto a minha mão, mesmo assim vi alguma coisa. Mas este alguma coisa não foi um objeto material, portanto teve de ter sido uma entidade puramente mental.



O argumento continua: a experiência de ver realmente a tua mão não se distingue da alucinação. Portanto, seja o que for que tenhas a dizer acerca de uma, tens de dizer acerca de outra. Portanto, se não viste a tua mão no caso da alucinação, também não a viste no caso verídico. O que viste? Em ambos os casos. Viste aquilo que Hume chama de impressão de uma mão; aquilo a que Descartes e Locke chamaram de uma ideia de mão; aquilo que Kant chamou uma representação de uma mão; ou um dado dos sentidos de uma mão, que é o linguajar moderno. Tudo isto é um desastre, o mesmo desastre em cada caso. E agora quero explicar por que razão este erro é um desastre.

O desastre tem nome – Descartes, Berkeley, Locke, Leibniz, Espinosa, Kant, Hume, Mill, Hegel. Estamos agora num dos maiores desastres da história da filosofia, em que decidimos expulsar-nos do mundo real e entrar no mundo do Geist.

O erro é dizer: “Nunca vês o mundo real; só vês a representação ou o dado dos sentidos que ocorre na tua mente. Então levanta-se a questão: Qual é a relação entre o dado dos sentidos que de facto vês e o objeto do mundo real que não vês? E há trezentos anos de má filosofia a tentar responder a essa questão. Estou a dizer que a saída para essa questão é compreender que no caso comum perceciono diretamente a minha mão e perceciono-a à minha frente. O modo correto de descrever a situação percetiva é dizer que perceciono diretamente os objetos e os estados de coisas no mundo; trata-se de uma apresentação e não de uma representação, e o conteúdo intencional é causalmente auto reflexivo no sentido em que só é satisfeito se for causado pelo estado de coisas que constitui o resto das suas condições de satisfação. (…)

O desastre de negar que temos conhecimento percetivo direto do mundo tem conduzido à principal tendência na epistemologia dos últimos trezentos anos. Estou a tentar eliminar esse desastre fazendo com que se veja que as nossas experiências percetivas nos fornecem apresentações diretas dos objetos e estados de coisas do mundo. Como? (…)

Primeiro: O realismo direto não é posto em causa pelo argumento que diz que não se pode lidar com as alucinações. “O que vê a pessoa no caso da alucinação? “Nada”. A pessoa não vê coisa alguma; isso é o que faz de uma alucinação uma alucinação. (…)

Segundo: a experiência visual quando é satisfeita fornece de facto acesso percetivo direto aos objetos e estado de coisas do mundo exterior à nossa mente.



John Searle, Da realidade física à realidade humana, Lx,2020, Gradiva,p.126 -132

domingo, novembro 15, 2020

A física quântica como causalmente insuficiente mas não aleatória


 Fotograma do filme de 1969 "The arrangement" de Elia Kazan, EUA

 “ Vamos fazer um robô que não tem apenas experiência do livre-arbítrio, tem-no de facto. A tomada consciente de decisão no hiato (intervalo) corresponde a uma realidade da ausência de condições causalmente suficientes para certos tipos de decisões e ações. Como poderíamos fazer esse robô? Bem, a primeira coisa que temos de perguntar é:há algumas partes da natureza onde as causas não sejam causalmente suficientes? Há algumas partes da natureza que não sejam determinísticas? E a resposta é sim. A mecânica quântica não é determinística. Num sistema quântico, podemos prever com probabilidade estatística o que acontecerá, mas não podemos prevê-lo com certeza, porque não temos condições causalmente suficientes. A única parte do Universo que sabemos que é indeterminística é o indeterminismo quântico. Soa estranho dizer que essa é a única parte do Universo, pois, é claro, o Universo como um todo é quântico. Os filósofos falam como se houvesse um pedaço minúsculo, coisas mesmo muitíssimo minúsculas, e que isso é indeterminístico. Mas não, a indeterminação quântica afeta tudo. Em níveis mais elevados, as indeterminações tendem a anular-se, de modo que, no fim, com uma bola de beisebol, por exemplo, podemos prever o seu comportamento como se fosse um sistema newtoniano fixo, porque a probabilidade de se comportar de uma maneira indeterminística é ínfima. Mas é ainda indeterminística. A indeterminação quântica está em todo lado.

Contudo, de que serve tudo isso aos seres humanos? Sempre me pareceu que a indeterminação quântica nada tem que ver com o problema do livre-arbítrio, porque aquilo que a indeterminação nos dá é aleatoriedade, e esta, é claro, não é o mesmo que liberdade. Quando escolhi votar nos democratas, tomei essa decisão no hiato, mas essa não foi uma decisão aleatória. Pressupus que isso não estava fixado por causas anteriores, mas não votei simplesmente de maneira aleatória nos democratas e não nos republicanos. Portanto, o determinismo quântico parecia-me irrelevante para o problema do livre-arbítrio, pois não fornece a liberdade. Fornece apenas aleatoriedade.

Mas, formalmente falando, esse argumento que acabei de apresentar tem uma falácia, e quero explica-la. Há uma falácia comum chamada “falácia da composição”. Trata-se da falácia de supor que se uma característica é verdadeira com respeito aos elementos de um sistema, então é verdadeira com respeito a todo o sistema que é composto desses elementos. Assim. Se digo que os meus neurónios estão a disparar à taxa de 40 hertz, 40 vezes por segundo, seria uma falácia da composição dizer depois que o cérebro como um todo está a disparar à taxa de 40 hertz. É uma falácia de composição dizer” porque no nível quântico a indeterminação implica a aleatoriedade, a indeterminação ao nível mais elevado tem de implicar a aleatoriedade”. Poderíamos ter uma indeterminação quântica que fosse aleatória no nível inferior, mão não no nível mais elevado.”

John R. Searle, Da realidade física à realidade humana, Gradiva, Lx, 2020,pp.289 a 29

 

 

sábado, outubro 29, 2016

Intencionalidade

Annie Leibovitz, Carl Lewis

Para explicar a estrutura do comportamento humano, preciso de introduzir um ou dois termos técnicos. A noção nuclear da estrutura do comportamento é a noção de intencionalidade. Dizer que temos intencionalidade significa que esperamos que uma coisa aconteça (temos essa crença), ou pretendemos que uma coisa aconteça, (temos um desejo). Um estado intencional pode ser querer, desejar, esperar ou ter uma intenção. Assim podemos ter o mesmo resultado para diversos estados intencionais: posso querer sair da sala, julgar que irei sair da sala ou tencionar sair da sala.Em cada caso temos o mesmo conteúdo para diferentes modos psicológicos: crença, deseja e intenção, respectivamente.




Por comportamento (...) entendo o comportamento humano voluntário e intencional. Entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor, votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar. Mas, mesmo restringindo-nos ao comportamento intencional, as actividades humanas apresentam-nos uma desconcertante variedade de tipos. Precisaremos distinguir entre comportamento individual e comportamento social; entre comportamento social colectivo e comportamento individual dentro de um colectivo social; entre fazer alguma coisa por mor de outra coisa e fazer alguma coisa por mor de si mesma. E, talvez o mais difícil de tudo, precisamos de explicar as consequências melódicas do comportamento ao longo da passagem do tempo. As actividades humanas, ao fim e ao cabo, não se assemelham a uma série de instantâneos parados, mas sim ao filme da nossa vida.




John Searle, Mente , cérebro e Ciência, Edições 70

quarta-feira, dezembro 02, 2009

A convicção de liberdade

Richard Kalvar, Antuérpia 1938 - EUA

A maior parte dos filósofos pensam que a convicção da liberdade humana está essencialmente ligada ao processo de decisão racional, mas penso que isso é só parcialmente verdadeiro. De facto, ponderar razões é apenas um caso muito especial da experiência que nos fornece a convicção da liberdade. A experiência característica que nos dá a convicção da liberdade humana, e é uma experiência sobre a qual somos incapazes de arrancar a convicção da liberdade, é a experiência de nos empenharmos em acções voluntárias e intencionais. (...) É esta experiência a pedra basilar da nossa crença na liberdade da vontade. Porquê? Reflictamos com todo o cuidado no carácter das experiências que temos quando nos empenhamos nas acções humanas normais da vida de cada dia. Veremos a possibilidade de cursos alternativos de acção incrustados nessas experiências. Levantemos o braço, ou atravessemos a rua, ou bebamos um copo de água e veremos que em qualquer ponto da experiência temos um sentido de cursos alternativos de acção para nós disponíveis.



John Searle, Mente, cérebro e Ciência, Lx, Ed.70, pag 116

quinta-feira, novembro 05, 2009

Movimento e acção

Raymond Depardon
Que faz ela? Quem pode responder?

Se pensarmos nas acções humanas, imediatamente descobrimos algumas diferenças notáveis entre elas e outros acontecimentos do mundo natural. Primeiramente, é tentador pensar que tipo de acções ou comportamentos se podem identificar com tipos de movimentos corporais. Mas isso é obviamente errado. Por exemplo,um e o mesmo conjunto de movimentos corporais poderá constituir uma dança, ou uma sinalização, um exercício ou uma testagem dos próprios músculos, ou então nada do que foi dito. Além disso, assim como um e o mesmo conjunto de movimentos físicos podem constituir tipos de acções completamente diversos, assim também um tipo de acção pode ser realizado por um número de tipos grandemente diferente de movimentos físicos.

Jonh Searle, Mente cérebro e ciência, Lx, Edições 70

terça-feira, novembro 27, 2007

A convicção da liberdade

Luis Rocha, S. Tomé

Se alguém tentar expressar em palavras a diferença entre a experiência de percecionar e a experiência de agir é que, na perceção, se tem esta sensação: "Isto está a acontecer-me", e, na ação, a sensação é a seguinte: "Faço isto acontecer". Mas a sensação de que "Faço isto acontecer" traz consigo a sensação de que "poderia fazer alguma coisa mais". Eis a fonte da inabalável convicção da nossa vontade livre. Saliento que estou a discutir a acção humana normal. Se alguém está a braços com uma grande paixão, ou se encontra numa cólera imensa, por exemplo, perde esse sentido da liberdade e pode mesmo surpreender-se ao descobrir o que está a fazer.

Desde que atentemos nesta característica da experiência do agir, muitos dos fenómenos intrigantes que mencionei se explicam. Por que é que, por exemplo, o homem no caso da sugestão pós-hipnótica não está a agir livremente no sentido em que nós somos livres, mesmo que ele possa pensar que está a agir livremente? A razão é que, num sentido importante, ele não sabe o que está a fazer. A sua efectiva intenção na acção é completamente inconsciente. As opções que ele vê disponíveis para si são irrelevantes para a motivação efectiva da sua acção. Note-se também que os exemplos compatibilistas do comportamento "forçado" implicam ainda, em muitos casos a experiência da liberdade. Se alguém me diz para fazer algo apontando-me uma arma, mesmo em tal caso eu tenho uma experiência que tem o sentido dos cursos alternativos nela incrustados. Assim, a experiência da liberdade é uma parte essencial da experiência do agir.

Isto explica também, creio eu, porque é que não podemos abandonar a nossa convicção de liberdade. Achamos fácil abandonar a convicção de que a Terra é plana logo que compreendemos a prova para a teoria heliocêntrica do sistema solar. Mas não podemos de modo semelhante abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Efectivamente não podemos agir de outra maneira senão com base na suposição da liberdade.

John Searle, Mente, Cérebro e Ciência (Lisboa, Ed.70, 1984).