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quarta-feira, outubro 16, 2024

Real ou aparente?

 



George Bishop olhou atentamente para a tigela de laranjas à sua frente e depois pensou no ar. Ele começou fazendo uma distinção óbvia entre as características das laranjas que são meras aparências e as propriedades que elas realmente possuem. A cor, por exemplo, é uma mera aparência: sabemos que os daltônicos, ou animais com fisiologias diferentes, veem algo muito diferente da experiência humana normal do ‘laranja’. Os sabores e o cheiro também são meras aparências, pois também variam de acordo com quem ou o que está percebendo a fruta, enquanto a fruta em si permanece a mesma. Mas quando ele começou a eliminar as “meras aparências” das frutas, ele se viu abandonado. com muito pouco. Ele poderia ao menos falar sobre o tamanho e a forma reais dos frutos, quando essas características parecem depender de como seus sentidos de visão e tato os percebem? Para imaginar verdadeiramente a fruta em si, independente das meras aparências da perceção sensorial, ele ficou com a vaga ideia de algo, não sabia o quê. Então, qual é o verdadeiro fruto: esse 'algo' diáfano ou a coleção de meras aparências, afinal de contas.

The Principles of Human Knowledge, de George Berkeley (1710).

Não é preciso muita reflexão para abrir a distinção entre aparências e realidade? Quando crianças, somos “realistas ingénuos”, presumindo que o mundo é exatamente como parece. À medida que crescemos, aprendemos a distinguir entre a forma como as coisas aparecem aos nossos sentidos e a forma como realmente são. Algumas delas – como a diferença entre coisas que são genuinamente pequenas e aquelas que estão meramente distantes – são tão óbvias que dificilmente são comentadas. Outras, como a forma como o sabor ou a cor de uma coisa varia de acordo com quem percebe, sabemos, embora na vida quotidiana o ignoremos ou esqueçamos.

À medida que desenvolvemos uma compreensão científica básica do mundo, provavelmente passamos a ver essa diferença em termos da estrutura atómica subjacente dos objetos e da estrutura atômica subjacente. maneira como eles aparecem para nós. Podemos estar vagamente conscientes de que esta própria estrutura atómica é explicada em termos de estrutura subatómica, mas não precisamos de nos preocupar com os detalhes da nossa melhor ciência atual. Tudo o que precisamos de saber é que a forma como as coisas aparecem é uma função da interação entre os nossos sentidos e a forma como elas realmente são. Tudo isto é pouco mais do que um senso comum maduro, mas é um senso comum que encobre alguns detalhes importantes.

A realidade foi distinguida das aparências, mas não temos uma ideia clara do que é esta realidade. Não tem problema, podemos pensar. A divisão intelectual do trabalho significa que deixámos esta tarefa para os cientistas. Não será verdade, porém, que os cientistas estão tão envolvidos no mundo das aparências como nós? Eles também estudam o que é apresentado aos nossos cinco sentidos. O facto de possuírem instrumentos que lhes permitem examinar o que não é visível a olho nu é uma pista falsa. Quando olho através de um telescópio ou microscópio, fico tão preso ao mundo das aparências quanto quando vejo sem ajuda. Os cientistas não olham para além do mundo das aparências; estão apenas a olhar para esse mundo mais de perto do que normalmente fazemos. Este é um problema filosófico e não científico. Parecemos compreender a diferença entre o mundo das aparências e o mundo tal como ele é, mas parece impossível ir além das aparências e ver este mundo “real”. Quando entendemos que a lua está longe, não é pequena, ou que o bastão na água não está dobrado, não estamos indo além das aparências, estamos apenas aprendendo como algumas aparências são mais enganosas que outras. Isso nos deixa com um dilema. Continuamos comprometidos com a ideia de um mundo além das aparências e aceitamos que não temos ideia do que é este mundo e nem conseguimos imaginar como poderemos conhecê-lo? Ou desistimos da ideia e aceitamos que o único mundo em que podemos viver e conhecer é, afinal, o mundo das aparências.

Julian Baggini, The pig that wants to be eaten.

 

terça-feira, janeiro 13, 2009


NÃO CONHECIMENTO

Foi uma estranha coincidência. Num dia da semana passada, quando a Noémia estava a pagar o café que bebera, o homem que estava atrás dela, vasculhando os bolsos, deixou cair o seu porta-chaves. A Noémia apanhou-o e não pôde deixar de reparar no coelhinho pendurado no porta-chaves. Ao receber o porta-chaves, o homem, cuja face era bastante peculiar, angulosa e pálida, mostrou-se um pouco embaraçado, dizendo “Trago-o sempre comigo, por razões sentimentais.” Corou e nada mais disse.

Logo no dia seguinte a Noémia estava para atravessar a rua quando ouviu um chiar de travões e uma pancada surda. Quase sem pensar deixou-se arrastar com outras pessoas que, como limalhas de ferro convergindo para um magnete, se precipitavam para o local do acidente. A Noémia tentou perceber quem era a vítima e viu a mesma face branca e irregular. Um médico estava já a examinar o homem. “Está morto.”

Ela teve de reportar à polícia. ‘Tudo o que sei é que ele bebeu um café ontem na pastelaria e que ele trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ A polícia pôde confirmar a verdade de ambos os factos.

Cinco dias depois, a Noémia quase que se pôs aos gritos na pastelaria. Estando outra vez na bicha para pagar o café, deparou com uma pessoa em tudo semelhante ao mesmo homem que cinco dias antes estivera atrás de si. Ele percebeu o espanto dela sem se mostrar surpreendido. ‘Pensou que eu era o meu irmão gémeo, não foi?’, perguntou. A Noémia acenou com a cabeça. ‘Não é a primeira pessoa a reagir assim desde o acidente. Até porque frequentávamos a mesma pastelaria, embora habitualmente a horas diferentes.’

Enquanto o homem falava, a Noémia não pôde deixar de reparar no que o homem tinha nas mãos: um porta-chaves com um coelho branco. O homem também não se deixou impressionar com isso. ‘Sabe como são as mães; gostam de tratar os filhos de igual modo.’
A Noémia achou tudo isto desconcertante. Quando finalmente se acalmou, ficou preocupada com o seguinte: terei dito a verdade à polícia?

********

O que a Noémia disse à polícia foi ‘Tudo o que sei é que ele pagou um café ontem na pastelaria e que trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ Ambos os factos se confirmaram verdadeiros. Mas estava ela certa, ao dizer que sabia que eles eram verdadeiros?
Muitos filósofos argumentaram que o conhecimento implica três condições. Para conhecer algo é preciso, primeiro, acreditar que esse algo é verdadeiro. Não se pode saber que Roma é a capital de Itália se estamos convencidos de que a capital é Milão. Em segundo lugar, aquilo em que acreditamos tem de ser verdadeiro. Não se pode saber que Milão é a capital de Itália, sendo que a capital é Roma. Em terceiro lugar, a nossa crença verdadeira tem de ser de alguma maneira justificada. Se nos acontece ficarmos convencidos sem boas razões de que Roma é a capital de Itália e isso se revela certo, não devemos dizer que possuíamos conhecimento. Tratou-se apenas de um palpite afortunado.

A Noémia possuía duas crenças verdadeiras sobre o morto. Também parecia que tinha justificação para as ter. Porém, parece que não sabia realmente que eram verdadeiras. Não sabia que o homem tinha um irmão gémeo que trazia consigo um porta-chaves idêntico ao do morto. Portanto, se o homem que morreu tivesse sido o irmão gémeo do homem que ela viu na pastelaria e se este último não tivesse estado na pastelaria no dia anterior, nem trouxesse consigo aquele porta-chaves, ela teria afirmado saber as mesmas duas coisas acerca dele, só que desta vez estaria enganada.

Para se ter verdadeiramente ideia de quão pouco ela sabia, note-se que ainda agora a Noémia não sabe se o homem que ela viu na pastelaria no dia antes do acidente era o gémeo que morreu no acidente ou o outro que ela viu na pastelaria uns dias depois. Ela não tem ideia de qual é qual.

A solução óbvia para este problema parece ser que é preciso precisar melhor a ideia de justificação. A Noémia não sabia, porque a sua justificação para dizer que sabia os dois factos sobre o morto não era suficientemente forte. Contudo, se assim é, então é preciso exigir que o conhecimento pressuponha condições de justificação de uma crença muito apertadas, seja ela qual for. E isso significa que quase tudo o que julgamos saber não se encontra suficientemente justificado para poder contar como conhecimento. Se a Noémia não sabe na verdade o que pensava saber sobre o homem que morreu, quer dizer que também nós não sabemos muito do que pensamos saber.

Julian Baggini, The Pig That Wants To Be Eaten and 99 other thought experiments (London, 2005, págs. 187-189). Trad. de Carlos Marques.

segunda-feira, novembro 10, 2008

CONSURSO "O PENSADOR CONSISTENTE"


O teste que aqui propomos pretende medir a consistência dos seus pensamentos.
Responda, apondo um C (concordo) ou um D (discordo) ao número correspondente a cada afirmação. Exemplos: 1. C; 2. D. Depois explicar-lhe-emos se é um pensador consistente.
ACEITAREMOS RESPOSTAS SÓ ATÉ AO FIM DO MÊS!



EXAME À SUA SAÚDE FILOSÓFICA

Faça o exame

Para fazer o exame à sua saúde filosófica percorra as afirmações abaixo, decidindo se concorda ou discorda com cada uma delas. (…)
Sabemos que nem sempre concordará ou discordará a 100%, mas quase sempre terá mais tendência para uma resposta do que para outra. Se estiver hesitante, seleccione a resposta mais próxima da sua opinião. Se não tiver mesmo opinião é altura de formá-la!
O exame à sua saúde filosófica não faz juízos sobre a verdade ou falsidade das suas respostas, por isso responda tão honestamente quanto lhe for possível. Todas as afirmações foram cuidadosamente concebidas; portanto, preste atenção ao que cada uma delas realmente diz.


1. Não há princípios morais objectivos. Os juízos morais são mera expressão dos valores de uma determinada cultura.

2. Desde que não prejudiquem os outros, as pessoas devem ser livres de perseguir os seus próprios fins.

3. As pessoas não devem usar o carro se podem, em alternativa, ir a pé ou apanhar um comboio.

4. É sempre errado tirar a vida a alguém.

5. O direito à vida é tão fundamental que considerações financeiras são irrelevantes quando se trata de tentar salvar vidas.

6. A eutanásia voluntária deve permanecer ilegal.

7. A homossexualidade é errada por ser contra-natura.

8. É perfeitamente razoável acreditar na existência de uma coisa mesmo sem haver a possibilidade de obter evidência de que ela existe.

9. A posse de drogas para uso pessoal deve ser descriminalizado.

10. Existe um Deus todo-poderoso, bom e que nos ama.

11. A segunda guerra mundial foi uma guerra justa.

12. Tendo-se feito uma escolha, poder-se-ia sempre ter feito uma outra.

13. Nem sempre é justo julgar um indivíduo tendo apenas em conta o seu mérito.

14. Os juízos acerca das obras de arte são apenas uma questão de gosto.

15. Quando o corpo morre, a pessoa continua a existir de uma maneira não física.

16. O governo não devia permitir a comercialização de tratamentos médicos que não foram testados na sua eficácia e segurança.

17. Não há verdades objectivas quanto a questões de facto. ‘A verdade’ é sempre relativa a uma determinada cultura e a um determinado indivíduo.

18. O ateísmo é uma fé tal como outra qualquer, visto não ser possível provar a não-existência de Deus.

19. Medidas sanitárias e medicamentos adequados são, em geral, bons para uma sociedade.

20. Em certas circunstâncias, será desejável discriminar positivamente a favor de uma pessoa como recompensa para males que lhe tenham sido feitos no passado.

21. As medicinas alternativas e complementares têm tanto valor como a medicina tradicional.

22. Lesões cerebrais graves podem retirar toda a consciência e identidade a uma pessoa.

23. É moralmente repreensível deixar que uma criança inocente sofra inutilmente quando isso se poderia prevenir.

24. O ambiente não deve ser degradado desnecessariamente para satisfazer interesses humanos.

25. Miguel Ângelo é um dos melhores artistas da história.

26. Um indivíduo tem apenas direitos sobre o seu corpo.

27. Actos de genocídio são um testemunho da capacidade humana para criar grandes males.

28. O Holocausto é uma realidade histórica que aconteceu mais ou menos como os livros de história relatam.

29. Os governos deviam poder impor um aumento substancial dos impostos para se salvarem vidas no mundo não desenvolvido.

30. O futuro está traçado. O modo como a nossa vida decorre depende do destino.


Retirado de J. Baggini e J. Stangroom, Do You Think What You Think You Think? The Ultimate Philosophical Quiz (London, 2006). Tradução Carlos Marques.

sábado, maio 24, 2008

Razão e Filosofia

Edward Hooper, Farol em Two lights, 1953, EUA

Não é universalmente reconhecido que muito do que ocupa a filosofia envolve raciocínio. Muitas pessoas têm a ideia de que a filosofia é essencialmente acerca de ideias ou teorias sobre a natureza do mundo e do nosso lugar nele. Os filósofos caminham para a verdade com tais ideias e teorias, mas na maior parte dos casos o poder e alcance destas resulta de terem sido derivadas de uma argumentação racional a partir de premissas aceitáveis. É claro que muitas outras regiões da vida humana também envolvem habitualmente raciocínio e pode por vezes ser impossível traçar uma linha divisória clara para as distinguir da filosofia. (De facto, a própria questão de saber se é ou não possível fazê-lo é matéria de acalorado debate filosófico!)
As ciências naturais e sociais, por exemplo, são áreas de investigação racional muitas vezes próximas das fronteiras da filosofia (especialmente nos estudos da consciência, na física teórica e na antropologia). Porém, as teorias que compõem estas ciências são geralmente determinadas por certos processos formais de experimentação e reflexão com os quais a filosofia tem pouca relação. O pensamento religioso também atrai por vezes a racionalidade e partilha frequentemente uma fronteira em disputa com a filosofia. Mas enquanto o pensamento religioso está intrinsecamente ligado ao divino, ao sagrado ou ao transcendente – porventura através de uma revelação, artigo de fé ou prática religiosa – a filosofia, por contraste, não está geralmente ligada a essas dimensões.
Sem dúvida que o trabalho de certas figuras proeminentes da tradição filosófica ocidental evidenciam claramente dimensões não racionais ou mesmo anti-racionais (por exemplo, Heraclito, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Derrida). Além disso, muitos desejam incluir o trabalho de pensadores asiáticos (confucionistas, taoístas, xintoístas), africanos, aborígenes e americanos nativos, sob a rubrica filosofia, mesmo se estes parecem fazer pouco uso de argumentação.
Contudo, mesmo o trabalho de pensadores que fogem ao padrão envolve, apesar das intenções destes, opiniões racionalmente justificadas e formas subtis de argumentação. Em muitos casos, o raciocínio permanence em cena, pelo menos como uma força a ter em conta.
A filosofia, portanto, não é a única área para a qual a racionalidade é importante e nem tudo o que tem o nome filosofia é argumentativo. Mas é certamente seguro dizer que não se pode dominar minimamente o corpo do pensamento filosófico sem aprender a usar as ferramentas da razão.

Julian Baggini & Peter S. Fosl, The Philosopher's Toolkit. A Compendium of Philosophical Concepts and Methods, Oxford, 2003. Trad. Carlos Marques.

terça-feira, janeiro 22, 2008

O campeão dos cavalos de pau.


O Paulo sabia qual o cavalo que ia vencer a corrida. Sentia-se seguro quanto a isso e sempre que sentira esta certeza no passado, nunca se enganara.
A convicção do Paulo não se baseava no estudo de cavalos; nem o Paulo tinha visões do futuro. Muito simplesmente, o nome dos vencedores ocorria-lhe quando se punha a baloiçar no seu cavalo de pau (embora fosse já demasiado crescido para isso).
O Paulo não ganhava todas as suas apostas (incluindo aquelas que os adultos que conheciam o seu segredo faziam em seu nome). Por vezes, sentia-se menos seguro e noutras ocasiões não sabia de todo o que fazer, deitando-se apenas a adivinhar. Porém, nesses casos não apostava grandes somas. Quando se sentia completamente seguro, isso sim, apostava quase todo o dinheiro que tinha. Até à data, o método nunca o deixara ficar mal.
Óscar, um dos seus colaboradores adultos, não tinha dúvida de que Paulo possuía um dom misterioso, mas não se convencera de que Paulo conhecesse realmente os cavalos vencedores. Não bastava para isso que o Paulo tivesse sempre ganho até agora. Sem saber porque é que acertava, os fundamentos das suas crenças seriam sempre incertos para poderem ser considerados verdadeiro conhecimento. Apesar disso, Óscar não deixou de apostar algum do seu dinheiro nas dicas do Paulo.

O que é o conhecimento por oposição à mera crença correcta? Tem de haver alguma diferença. Por exemplo, imagine que alguém que nada sabe de geografia encontra um cartão com uma lista dos principais países e suas capitais. Pode ler-se: Reino Unido - Edimburgo; Espanha - Barcelona; Itália - Roma. Essa pessoa aceita o que o cartão diz tal qual e, portanto, acredita que estas cidades são na realidade as capitais dos seus respectivos países. Engana-se em todos os casos, excepto num, Roma. Embora acredite que Roma é a capital de Itália e esteja nisso correcto, é justo dizer que ele sabe que isso é verdade? A sua crença baseia-se numa fonte demasiado fraca para poder contar como conhecimento. Dá-se apenas o caso de nesta circunstância, contrariamente ao habitual, a sua fonte estar correcta. A sua crença verdadeira não lhe dá mais conhecimento do que lhe daria a circunstância de ter adivinhado o nome da capital de Itália.
É por esta razão que os filósofos insistem usualmente que as crenças verdadeiras têm de ser justificadas de um modo apropriado para poderem contar como conhecimento. Mas que tipo de justificações são essas? No caso de Paulo, a sua pretensão ao conhecimento baseia-se num simples facto: a fiabilidade da fonte das suas crenças. Quando se sente convencido que sabe o nome do cavalo vencedor acerta sempre.
O problema é que o Paulo não tem ideia de onde vem essa convicção. A evidência de que esta fornece um caminho fiável para o conhecimento provém somente dos resultados até à data, mas isto não mostra que o mecanismo não é de confiança. Por exemplo, pode ser que alguém que tenha o poder de viciar os resultados da corrida consiga, de algum modo, colocar na mente do Paulo os nomes dos cavalos vencedores, sendo o seu objectivo o de um dia colocar na mente do rapaz um nome errado arrebatando-lhe assim todas as poupanças que acumulou. Tal como a falta de fiabilidade da lista das capitais de países do cartão não pode ser fonte de conhecimento, mesmo se algum dos exemplos é correcto, também a falta de fiabilidade introduzida pela hipótese do viciador de corridas mostra que os nomes que ele coloca na mente do Paulo não podem ser fonte de conhecimento, mesmo se bateram sempre certo até agora.
E se a fonte das crenças do Paulo é algo genuinamente misterioso? E se não é algo do tipo de um viciador de corridas, que sabemos não digno de confiança, mas simplesmente algo que não conseguimos explicar? Nesse caso, o único juíz sobre o que é ou não digno de confiança seria a experiência do passado. Isso abriria a possibilidade de erro no futuro. E será que há algum caminho para um conhecimento seguro sobre o qual não tenhamos dúvidas sobre a sua fiabilidade futura?

Julian Baggini, The Pig That Wants To Be Eaten... (London, 2005).  Trad. De Carlos Marques.
Ilustração: As corridas de cavalos, Degas, Paris, 1911

quarta-feira, outubro 17, 2007

Hume e o problema da indução


Claude Monet, Nascer do Sol


Colocado na sua forma mais simples, o problema da indução pode ser reduzido ao problema de justificar a crença na uniformidade da natureza. Se a natureza é uniforme e regular no seu comportamento, então o que acontece no passado e presente que observámos é um bom guia para os acontecimentos não observados do passado, presente e futuro. No entanto, os únicos fundamentos para acreditar que a natureza é uniforme são os acontecimentos observados no passado e no presente. Parece que não podemos ir para além dos acontecimentos que observamos sem assumir aquilo mesmo que temos de provar – isto é, que as partes do mundo não observadas operam da mesma maneira que aquelas que observámos. (Este é precisamente o problema apontado por Hume.) Acreditar, portanto, que o sol pode possivelmente não nascer amanhã é, num sentido estrito, lógico, uma vez que a conclusão que ele nascerá amanhã não se segue inexoravelmente das observações passadas.
(…)
Reconhecendo a fraqueza relativa das inferências indutivas (comparadas às dedutivas), um bom pensador redefinirá as conclusões atingidas através da indução, dizendo que elas se seguem não com necessidade mas com probabilidade. Isto resolve o problema? É esta reformulação justificada? Podemos, por exemplo, justificar a ideia que afirma que a repetida observação do passado torna mais provável que o sol amanhã nasça do que o contrário?
O problema está em não haver um argumento dedutivo para fundamentar esta reformulação. Para deduzir esta conclusão com sucesso necessitaríamos da premissa ‘o que aconteceu até agora acontecerá com mais probabilidade amanhã’. Porém, esta premissa está sujeita ao mesmo problema da afirmação mais forte ‘o que aconteceu até agora acontecerá com certeza amanhã’. Tal como a sua contrapartida mais forte, a premissa mais fraca baseia a sua convicção acerca do futuro no que aconteceu até agora e essa base só é justificada se aceitarmos a uniformidade (ou, pelo menos, a continuidade geral) da natureza. Mas a uniformidade (ou continuidade) da natureza é precisamente o que está em questão!
(…)
Apesar destes problemas, parece que não podemos dispensar as generalizações indutivas. Elas são (ou pelo menos têm sido até agora) demasiado úteis para as recusarmos. Constituem a base de muita da nossa racionalidade científica e permitem-nos pensar acerca de matérias sobre as quais nada poderíamos dizer através da dedução. Não podemos de maneira nenhuma rejeitar a premissa ‘o que observámos até agora é o nosso melhor guia para a verdade naquilo que não observámos’, mesmo se esta premissa não pode ela mesma ser justificada sem circularidade.
Há, todavia, um preço a pagar. Temos de reconhecer que o uso da generalização indutiva pressupõe uma crença que de um modo relevante não é fundamentada.


Julian Baggini, Peter Fosl, The Philosopher’s Toolkit (London)
Tradução de Carlos Marques