NÃO CONHECIMENTO
Foi uma estranha coincidência. Num dia da semana passada, quando a Noémia estava a pagar o café que bebera, o homem que estava atrás dela, vasculhando os bolsos, deixou cair o seu porta-chaves. A Noémia apanhou-o e não pôde deixar de reparar no coelhinho pendurado no porta-chaves. Ao receber o porta-chaves, o homem, cuja face era bastante peculiar, angulosa e pálida, mostrou-se um pouco embaraçado, dizendo “Trago-o sempre comigo, por razões sentimentais.” Corou e nada mais disse.
Logo no dia seguinte a Noémia estava para atravessar a rua quando ouviu um chiar de travões e uma pancada surda. Quase sem pensar deixou-se arrastar com outras pessoas que, como limalhas de ferro convergindo para um magnete, se precipitavam para o local do acidente. A Noémia tentou perceber quem era a vítima e viu a mesma face branca e irregular. Um médico estava já a examinar o homem. “Está morto.”
Ela teve de reportar à polícia. ‘Tudo o que sei é que ele bebeu um café ontem na pastelaria e que ele trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ A polícia pôde confirmar a verdade de ambos os factos.
Cinco dias depois, a Noémia quase que se pôs aos gritos na pastelaria. Estando outra vez na bicha para pagar o café, deparou com uma pessoa em tudo semelhante ao mesmo homem que cinco dias antes estivera atrás de si. Ele percebeu o espanto dela sem se mostrar surpreendido. ‘Pensou que eu era o meu irmão gémeo, não foi?’, perguntou. A Noémia acenou com a cabeça. ‘Não é a primeira pessoa a reagir assim desde o acidente. Até porque frequentávamos a mesma pastelaria, embora habitualmente a horas diferentes.’
Enquanto o homem falava, a Noémia não pôde deixar de reparar no que o homem tinha nas mãos: um porta-chaves com um coelho branco. O homem também não se deixou impressionar com isso. ‘Sabe como são as mães; gostam de tratar os filhos de igual modo.’
A Noémia achou tudo isto desconcertante. Quando finalmente se acalmou, ficou preocupada com o seguinte: terei dito a verdade à polícia?
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O que a Noémia disse à polícia foi ‘Tudo o que sei é que ele pagou um café ontem na pastelaria e que trazia sempre consigo um porta-chaves com um coelho branco.’ Ambos os factos se confirmaram verdadeiros. Mas estava ela certa, ao dizer que sabia que eles eram verdadeiros?
Muitos filósofos argumentaram que o conhecimento implica três condições. Para conhecer algo é preciso, primeiro, acreditar que esse algo é verdadeiro. Não se pode saber que Roma é a capital de Itália se estamos convencidos de que a capital é Milão. Em segundo lugar, aquilo em que acreditamos tem de ser verdadeiro. Não se pode saber que Milão é a capital de Itália, sendo que a capital é Roma. Em terceiro lugar, a nossa crença verdadeira tem de ser de alguma maneira justificada. Se nos acontece ficarmos convencidos sem boas razões de que Roma é a capital de Itália e isso se revela certo, não devemos dizer que possuíamos conhecimento. Tratou-se apenas de um palpite afortunado.
A Noémia possuía duas crenças verdadeiras sobre o morto. Também parecia que tinha justificação para as ter. Porém, parece que não sabia realmente que eram verdadeiras. Não sabia que o homem tinha um irmão gémeo que trazia consigo um porta-chaves idêntico ao do morto. Portanto, se o homem que morreu tivesse sido o irmão gémeo do homem que ela viu na pastelaria e se este último não tivesse estado na pastelaria no dia anterior, nem trouxesse consigo aquele porta-chaves, ela teria afirmado saber as mesmas duas coisas acerca dele, só que desta vez estaria enganada.
Para se ter verdadeiramente ideia de quão pouco ela sabia, note-se que ainda agora a Noémia não sabe se o homem que ela viu na pastelaria no dia antes do acidente era o gémeo que morreu no acidente ou o outro que ela viu na pastelaria uns dias depois. Ela não tem ideia de qual é qual.
A solução óbvia para este problema parece ser que é preciso precisar melhor a ideia de justificação. A Noémia não sabia, porque a sua justificação para dizer que sabia os dois factos sobre o morto não era suficientemente forte. Contudo, se assim é, então é preciso exigir que o conhecimento pressuponha condições de justificação de uma crença muito apertadas, seja ela qual for. E isso significa que quase tudo o que julgamos saber não se encontra suficientemente justificado para poder contar como conhecimento. Se a Noémia não sabe na verdade o que pensava saber sobre o homem que morreu, quer dizer que também nós não sabemos muito do que pensamos saber.
Julian Baggini, The Pig That Wants To Be Eaten and 99 other thought experiments (London, 2005, págs. 187-189). Trad. de Carlos Marques.
6 comentários:
bom
Esta situação, mesmo sendo ela hipotética e sabendo que as teorias da filosofia tem de ser justificados com exemplos hipotéticos, mas que podem acontecer.
E esta situação demonstra-nosque é crença é independente do conhecimento, podendo ela ser verdadeira ou falsa consoante a "sorte" do individuo.
Embora se esta situação me ocorre--se, não iria pensar se "sabia ou não sabia", apenas ia pensar com sair da twilight zone.
Dava para argumento de um filme!
Saudações do Réprobo
Sem dúvida é um texto muito bom, pois consegue transmitir a ideia pretendida de a pessoa ter uma crença mas essa não estar devidamente justificada, o que provoca uma certa ilusão de conhecimento. Mas no final o autor deixa bem claro que se precisamos de uma justificação muito rigoroza tudo aquilo que pensamos saber fica reduzido talvez a uma mera expeculação.
Neste exemplo da Noémia eu encontro um parágrafo que me deixa algumas dúvidas (penúltimo parágrafo) em que o autor diz que a Noémia não sabe qual seria o gémeo, o do acidente ou aquele que se encontra à sua fente, isto mostra alguma inconsistência, pois se o gémeo que estivesse á sua frente fosse aquele que ela encontrou cinco dias antes no café este a teria reconhecido!
Eu fasso uma pergunta a teoria Lamarckista sobre a evolução das espécies é falsa pois a justificação aos olhos de hoje não se encontra correcta mas mesmo assim é classificada como conhecimento? Como pode isto acontecer?(sendo este um exemplo de muitos outros).
Resumindo penso que o conhecimento é uma área em que a filosofia não devia justificar/encontrar resposta para as maneiras de obtenção do mesmo ou catalogar se é ou não é mas sim explicar o que é e como isso está presente na sociedade, pois o conhecimento liga-se à verdade e esta depende da razão e da experiência, dois aspectos que divergem de ser para ser.
"O Conhecimento manifesta-se sob a forma de muitas coisas e de diversas formas."
Cumprimentos, Frederico Jesus.
Podemos encontrar imensos exemplos típicos ao este no nosso dia-a-dia. Lendo este texto e pensando naquilo que demos na aula, acho que o conhecimento verdadeiro não existe. Primeiro de tudo, temos que acreditar na informação que é nos transmitida. Se eu não acredito, logo não tenho o conhecimento verdadeiro. Eu, não acredito em nada que me dizem. Só quando vejo com os meus olhos, começo a acreditar. Só assim é que tenho justificação. Mas, segundo os argumentos do conhecimento, temos que ter uma justificação forte para ter o conhecimento. E existem as regras universais de justificações fortes? Não, ainda não. As justificações para cada um de nós são tanto diferentes quanto somos na Terra.
Este texto mostra que o conhecimento é limitado para nós, pois nunca o conseguimos atingir totalmente. Por exemplo, o julgamento é um processo bastante complicado, na medida em que a decisão depende da capacidade de bem argumentar do advogado. As palavras que constituem o argumento decidem tudo e a sua validade pode caminhar para além. No final, conduzir até ao desacordo dos factos. Deste modo, se o juiz acredita e procura justificar a sua crença através dos factos fortes que lhe apresentam, assim irá tirar uma conclusão. Mas será que esta conclusão é verdadeira e fortemente justificada? O juiz também não o sabe, pois não consegue provar o seu conhecimento – não existem as regras para isso.
Relembro aos que por aqui andam argumentando contra o conhecimento de um juíz acerca de um crime e de que tudo depende da maior ou menor eloquência de um advogado que além das testemunhas oculares, existem provas...Biológicas e Químicas, por exemplo. Assim tragar que é "ver para crer como Tomé" é um tanto ou quanto um ponto de vista na minha opinião, acutângulo...Libertem-se das palas!
Saudações do Réprobo
Embora nesta situação esteja bem patente o desafio à tese de que o conjunto das 3 condições (crença, verdade, justificação) não seja suficiente para adquirir o conhecimento, refuto ao facto de que os contra-exemplos que são dados como amostra são muito forçados, ou seja, são pouco prováveis de acontecer e contruídos com o propósito de retirar uma certa e determinada conclusão, constituindo assim uma prova fidedigna acerca da realidade que todos enfrentamos.
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