terça-feira, janeiro 13, 2009

AS AVENTURAS ASSOMBROSAS DE UM FANÁTICO DE JOGOS DE COMPUTADOR, parte 1: o Jaime e a realidade virtual

O jogo do Jaime 
(...) O Jaime está a jogar um jogo no computador. 0 nome do jogo é Monstros e calabouços. Para vencer, é preciso percorrer um labirinto de calabouços, matar todos os monstros e ficar com todos os tesouros. (...) O Jaime adora este jogo. Especialmente matar monstros. É bom avisar: uma coisa terrível vai acontecer ao Jaime. Mas isso fica para mais tarde. Primeiro, quero explicar o que é a realidade virtual.

Realidade virtual
Os calabouços, os tesouros, os monstros e as armas do jogo do Jaime não são verdadeiras, é claro. Eles constituem o que é conhecido como realidade virtual, um mundo criado por computador. Uma realidade virtual é composta por um ambiente virtual dentro do qual se podem encontrar objectos virtuais. No jogo do Jaime, os calabouços e os labirintos são o ambiente virtual. As armas, os monstros e os tesouros são os objectos virtuais.
Já deve ter tido provavelmente alguma experiência com a realidade virtual. Talvez já tenha jogado um jogo de computador no qual pilotou um carro de corrida numa pista ou um avião pelo céu. Os carros, as pistas, os aviões, etc. que vê nesses jogos são todos virtuais. Eles não existem na realidade.

Usando um capacete para entrar em contacto com a realidade virtual
Normalmente, quando se brinca com este tipo de jogo, assiste-se à acção numa espécie de ecrã. Mas já existem outras maneiras de experimentar a realidade virtual. De facto, os especialistas em computadores desenvolveram capacetes de realidade virtual.
O capacete funciona assim: quando o colocamos, vemos um pequeno ecrã. Este ecrã mostra o ambiente virtual. E o importante no ecrã é que, quando movimentamos a cabeça de um lado para o outro, o que vemos muda, como se estivéssemos de facto nesse ambiente. Se olharmos, por exemplo, para a esquerda, vemos o que está à nossa esquerda no ambiente virtual. Olhamos para baixo e vemos o que há no chão do ambiente virtual. Viramo-nos e vemos o que está atrás de nós, e assim por diante.
0 capacete também é equipado com pequenos altifalantes - um para cada ouvido - de modo a que possamos ouvir tudo o que se passa dentro da realidade virtual. Mais uma vez, os sons também se modificam de acordo com o lado para o qual se está voltado. Portanto, com o capacete virtual, tudo parece e soa como se o ambiente virtual estivesse de facto à nossa volta.

Mãos e pernas virtuais
Também já é possível alcançar e apanhar objectos virtuais. Desenvolveram-se luvas electrónicas que controlam mãos virtuais. Basta calçá-las, e podemos mover as mãos virtuais que vemos à nossa frente quando usamos o capacete de realidade virtual. Com essas mãos virtuais, podemos pilotar um carro virtual ou disparar uma arma virtual a laser contra um extra-terrestre virtual.
De facto, podemos até caminhar dentro da realidade virtual. É até possível ligar o computador que gera a realidade virtual às nossas pernas e pés por meio de sensores especiais. Se andamos para a frente, o computador detecta o movimento e modifica o que vemos e ouve. Parece que caminhamos para dentro do ambiente virtual.
Suponha que damos ao Jaime um desses equipamentos de realidade virtual - capacete, luvas e sensores para pernas - e o ligamos a um poderoso computador passando uma versão do seu favorito Monstros e calabouços. O Jaime pode iniciar então o seu jogo, só que desta vez este lhe pareceria muito mais real, iria ter a sensação de que o calabouço virtual estava mesmo ali. Desta vez, sentiria que podia alcançar e tocar as paredes do calabouço com as mãos.

Olhos artificiais
Agora vamos examinar um tipo de tecnologia diferente: olhos artificiais. Ao contrário da realidade virtual, este avanço ainda não ocorreu. Mas não vejo razão para que não possam ser inventados.
Erga uma de suas mãos diante do seu rosto e olhe bem para ela. 0 que acontece quando vê a sua mão? Em primeiro lugar, a luz reflecte-se da sua mão nos seus olhos. Uma lente na parte da frente do olho foca essa luz numa superfície na parte de trás do olho, produzindo uma imagem. Essa superfície na parte de trás do seu olho é formada por muitos milhares de células sensíveis à luz. Quando a
luz atinge uma dessas células, emite um leve impulso eléctrico. 0 padrão de impulsos eléctricos causados pela imagem da sua mão atingindo as células passa então por um feixe de nervos (chamado nervo óptico), que vai do seu olho até ao seu cérebro. E é assim que vê a sua mão. Mas será que só um olho humano normal teria capacidade para enviar os impulsos eléctricos pelo seu nervo óptico para o cérebro? Não vejo porquê. Por é que os seus olhos humanos normais não poderiam ser substituídos por pequenas câmaras de vídeo? Essas câmaras fariam o trabalho que o olho humano faz, enviando pelos nervos ópticos
os mesmos padrões de estímulos eléctricos que os seus olhos normais hoje enviam. 0 que para si daria no mesmo. 0 mundo visto pelos olhos artificiais parecer-lhe-ia o mesmo que com
os olhos normais.

Com um olho na ponta da varinha
De facto, seria uma grande vantagem ter olhos de pequenas câmaras de vídeo. Imagine se tivesse olhos artificiais. Eles poderiam ser ligados aos seus nervos ópticos por cordas super-compridas. Poderia tirar um olho da cara e andar com ele na mão.
Poderia fixá-lo atrás da cabeça: muito útil se quisesse saber se há alguém a segui-lo.
Também poderia amarrar um olho na ponta de uma varinha - inestimável para achar a moeda que deixou cair debaixo do sofá.

Um corpo de robô
É possível que um dia os cientistas desenvolvam não só olhos artificiais, como também ouvidos artificiais: pequenos microfones electrónicos capazes de ocupar o lugar dos ouvidos humanos normais. Esses microfones estimulariam os nervos que ligam os nossos ouvidos aos nossos cérebros exactamente da mesma maneira que os nossos ouvidos normais. Os sinos de uma igreja soariam exactamente da mesma maneira para alguém com ouvidos artificiais.
Na verdade, quando se pensa no assunto, parece não haver, em princípio, razão alguma para que o nosso corpo inteiro não possa ser substituído por um corpo artificial. Poderíamos ter um corpo de robô. Vejamos como.
O nosso cérebro está ligado ao resto do nosso corpo por um sistema nervoso. Alguns desses caminhos de nervos emitem impulsos eléctricos. Outros captam-nos. Os nervos que emitem impulsos eléctricos enviam muitos deles aos músculos que possibilitam que o seu corpo se movimente. Ao virar esta página, por exemplo, as suas mãos movem-se porque o seu cérebro envia um padrão de impulsos eléctricos a determinados músculos do seu braço. Esses impulsos fazem os músculos moverem-se. E o movimento desses músculos move a sua mão.
Os caminhos nervosos que captam impulsos eléctricos recebem muitos deles dos nossos cinco sentidos: olhos, ouvidos, nariz, língua e pele. É isso que faz com que tenhamos experiência do mundo à nossa volta.
Agora imagine isto: o seu cérebro é removido do seu antigo corpo humano e transferido para um corpo novo de robô. O seu antigo corpo humano é então destruído. Mas tudo bem, porque o seu novo corpo de robô mantém o seu cérebro vivo. Também estimula os nervos que vão até ao seu cérebro exactamente do mesmo modo como eram estimulados pelo seu antigo corpo. De modo que o seu novo corpo de robô lhe transmite experiências rigorosamente como o seu antigo corpo humano. Com o seu novo corpo de robô, pode deliciar-se com um gelado de chocolate, ouvir uma música, sentir o cheiro das flores. Tudo parece exactamente como dantes.
E os padrões dos impulsos eléctricos emitidos pelo seu cérebro ainda conseguem fazer com que o seu novo corpo de robô se movimente exactamente da mesma maneira que o seu corpo normal (só que agora não move músculos: move pequenos motores eléctricos). De modo que pode andar e falar exactamente como dantes.

Sobrevivendo à morte do seu corpo humano
É claro que sozinhos ainda não podemos construir corpos de robôs. A tecnologia ainda não progrediu tanto. Mas, sem dúvida, parece possível que um dia se construam esses corpos de robô, talvez daqui a poucas centenas de anos.
Caso se construam corpos de robôs, seremos capazes de sobreviver à morte dos nossos corpos de carne e osso. Suponha que o seu corpo humano é atropelado por um camião. Seria possível remover o seu cérebro e transferi-lo para um novo corpo de robô. Neste caso, apesar do seu corpo de carne e osso ter morrido, continuaria vivo. Seria parte homem, parte máquina. Provavelmente os corpos de robô também poderiam ser construídos para ser mais fortes, mais duráveis e de várias maneiras melhores do que nossos corpos comuns de carne e osso. Poderia ter uma força sobre-humana, uma audição incrivelmente mais sensível e até visão de raios X. Quem sabe se um dia, talvez daqui a mil anos, todos seremos super-seres robotizados. Talvez a única parte humana que restará no nosso corpo seja o nosso cérebro.

Um corpo virtual
Tão plausível quanto ter um corpo de robô é a possibilidade de termos um corpo virtual.
Imagine a seguinte situação: uma pequena tomada eléctrica é ligada à sua nuca. Esta tomada é ligada ao lugar em que os nervos que entram e saem do seu cérebro se ligam ao resto do seu corpo. A tomada permite-lhe ligar o seu cérebro a um super-computador incrivelmente potente. Só seria preciso ligar um fio do computador à sua tomada e accionar um pequeno interruptor fixado na sua nuca.
Quando accionasse o interruptor, todos os impulsos eléctricos emitidos pelo seu cérebro para movimentar o seu corpo seriam desviados. Seriam enviados para o super-computador. E, em vez de receber sinais eléctricos dos seus olhos, dos seus ouvidos, do seu nariz, da sua língua e da sua pele, o seu cérebro recebê-lo-ia do super-computador.
Agora, imagine que esse computador está a passar um programa de realidade virtual. Funcionaria assim: uma pessoa deita-se numa cama ao lado do computador e liga-se a si mesmo a ele. Em seguida, acciona o interruptor na sua nuca. Claro que no momento em que acciona o interruptor, o seu corpo fica sem energia: desligou o seu corpo do seu cérebro.
Mas não é assim que o sentiria. Teria a nítida sensação de que ainda consegue mexer o corpo. Imagine que tentava agitar os seus dedos à frente do seu rosto. 0 computador registaria os impulsos eléctricos para agitar os seus dedos vindos do seu cérebro e transmitiria de volta ao cérebro exactamente o mesmo tipo de sinais que receberia dos seus olhos e mãos se estivesse a sacudir os dedos diante do rosto. Portanto, isso é o que vê. Só que os dedos que veria a agitar-se à sua frente não seriam os seus dedos verdadeiros – as suas mãos verdadeiras continuariam ali, deitadas quietinhas na cama -, mas sim dedos virtuais.
Na verdade, se o computador fosse mesmo potente, poderia gerar todo um ambiente virtual. Poderia, por exemplo, dar-lhe a impressão de que está deitado numa floresta habitada por pássaros canoros fabulosos e cheia de belas flores. Poderia levantar-se e passear por essa floresta. Claro que as árvores que viu, os pássaros que ouviu e as flores que cheirou não seriam reais. Seriam virtuais. E o corpo que lhe pareceu ser o seu seria um corpo virtual, não um corpo verdadeiro. 0 seu corpo verdadeiro continuaria imóvel na cama.
Transferir-se para um corpo virtual pode ser uma maneira agradável de passar a noite. Após um dia de trabalho exaustivo, relaxaríamos transferindo-nos para um corpo virtual, explorando um ambiente virtual. Poderíamos inventar qualquer mundo novo estranho para nos ocuparmos por algumas horas. Poderíamos, por exemplo, escolher a aparência do seu corpo virtual. Poderíamos, quem sabe, escolher a aparência de Elvis Presley e visitar um planeta inteiramente feito de marshmallow.
Bem, agora que viu como seria ter um corpo virtual num ambiente virtual, façamos um intervalo. Vou contar o que aconteceu ao Jaime.
A história continua. Não perca o próximo episódio na parte 2.  

Stephen Law, Os Arquivos Filosóficos (São Paulo, 2003, págs. 41-52). Adaptação da tradução brasileira. O título principal não se encontra no original.

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