Uma história de terror
Um dia, dois marcianos – o Blib e o Blob - chegaram à Terra. A sua missão era estudar os seres humanos. Decidiram escolher o Jaime como objecto de estudo e começaram, às escondidas, a observar o seu comportamento.
O Blib e o Blob ficaram fascinados com a verdadeira adoração do Jaime pelo seu jogo Monstros e calabouços. Observaram que ele dedicava cada segundo de seu tempo livre a esse jogo.
0 pai do Jaime preparou-lhe um chá. "Vem beber o chá, Jaime!", gritou para chamá-lo. Os marcianos perceberam que ele teve de chamar o filho pelo menos seis vezes. Também observaram que o Jaime engoliu a comida à pressa e subiu as escadas a correr até ao seu quarto para continuar o jogo.
O Blib e o Blob também não deixaram de notar que, a cada versão que saía de Monstros e calabouços, o Jaime ficava desesperado para obtê-Ia. Nos dois meses antes do Natal, a única frase do Jaime era:
- Pai, mãe, por favor, vão dar-me o último Monstros e calabouços de presente de Natal, não é?
Depois de observar tudo aquilo, o Blib e o Blob concluíram que o Jaime seria a mais feliz das criaturas se ficasse para sempre a jogar a versão mais realista possível de Monstros e calabouços. E decidiram tornar o Jaime feliz.
Na manhã de Natal, o Jaime, ao começar a acordar, a primeira coisa que notou foi que a sua cama parecia dura e fria como pedra. E tinha também um cheiro um pouco estranho. Uma mistura de humidade e mofo. Como os cogumelos. E ouvia também um ruído de gotas a pingar.
O Jaime abriu os olhos devagar. Viu-se num longo corredor de pedras, iluminado por pequenas tochas penduradas em suportes enferrujados de metal. Havia passagens fechadas à esquerda e à direita. Virou-se para trás. Viu que o corredor se estendia, igual, até desaparecer nas trevas.
Este corredor pareceu-lhe vagamente familiar. Então lembrou-se: era o mesmo corredor do Monstros e calabouços. Só que agora parecia real. O Jaime podia alcançar e tocar com os seus dedos suas as paredes gélidas e viscosas. Então, ouviu um uivo e sentiu gelar-se-lhe o sangue. Era um uivo que o Jaime ouvira milhares de vezes antes. Só que agora o uivo não vinha das pequenas colunas de som ao lado do seu computador. Desta vez, o uivo vinha das trevas do fundo do corredor. Desta vez, era um uivo real, como eram reais aqueles passos arrastados. Jaime sabia quem estava para chegar. Com o coração a sair-lhe pela boca, as suas pernas cambalearam. Começou a correr.
Os pais do Jaime ficaram intrigados. Haviam comprado ao Jaime um novo computador programado com a última versão de Monstros e calabouços. Por que não descera o rapaz correndo escadas abaixo para abrir o seu presente como de costume? Subiram as escadas e abriram a porta do seu quarto devagar. Espreitaram.
- Jaime, estás acordado?
0 silêncio reinava no quarto. As cortinas estavam fechadas. E a cama do Jaime, vazia. 0 quarto estava iluminado por uma luz sinistra. Os pais do Jaime viraram-se para constatar que a luz saía do monitor de um computador no cão. Mas aquele não era o computador do Jaime. Quando os seus olhos se acostumaram à escuridão, compreenderam que o ecrã bruxuleante estava ligado a uma grande caixa cinzenta.
Na verdade, essa caixa cinzenta era um super-computador marciano. O Blib e o Blob tiveram muito trabalho para construir aquele computador capaz de passar a versão mais realista de Monstros e calabouços que se podia imaginar. Haviam montado aquele computador especialmente para o Jaime.
- MEU DEUS!!! - gritaram os pais do Jaime, horrorizados. Quando a imagem no ecrã se tornou mais clara por um instante, enchendo o quarto de luz, viram que, nas trevas atrás do computador, havia um cérebro humano a flutuar numa cuba de vidro.
Era o cérebro vivo do Jaime. E completamente consciente. Durante a noite, o Blib e o Blob tinham removido o cérebro do rapaz. Destruíram o resto do seu corpo e colocaram o seu cérebro dentro de uma cuba com um líquido capaz de manter o orgão vivo. Então ligaram o seu cérebro ao computador. O Jaime agora é um corpo virtual num ambiente virtual: o ambiente de Monstros e calabouços. Está agora a jogar a versão mais realista imaginável de Monstros e calabouços. Só que nunca mais pode parar, nem deixar de senti-la como real.
Os pais do Jaime olham para a imagem no ecrã do monitor do computador. É o Jaime. Vêem o filho a ser perseguido por um monstro enorme no corredor estreito.
- Pobre Jaime! - grita a mãe.
Mas claro que gritar não adianta. Tudo o que o Jaime consegue ouvir são os uivos do monstro a correr mesmo atrás dos seus calcanhares. O Jaime jamais ouvirá novamente a voz da sua mãe.
Chocados, os pais do Jaime assistem às peripécias do filho para enganar o monstro. Às vezes, ele tenta desesperadamente esconder-se na escuridão. Fica agachado, quietinho, sem sequer ousar respirar. 0 monstro pára, fareja o ar húmido. Então desaparece. Mas por pouco tempo.
Os pais do Jaime não aguentam assistir mais e viram-se de costas para o monitor. Só então, vêem um cartãozinho colado ao computador com uma fita vermelha. Tremendo, aproximam-se. Afinal, sob a luz dos clarões tremeluzentes do monitor conseguem ler os gatafunhos compridos e finos da mensagem no cartão, que diz:
FELIZ NATAL, JAIME
BLIB & BLOB
Será que não somos cérebros em cubas?
(...) Os filósofos acham muito interessantes as histórias sobre cérebros em cubas. São particularmente interessantes para os filósofos interessados na pergunta: o que é possível, se é que é possível, conhecer o mundo à nossa volta? Esta é a questão que vamos examinar agora.
Tomemos um tipo diferente de história sobre cérebros em cubas: uma história sobre si. Suponha que ontem à noite o Blib e o Blob passaram pela sua casa enquanto estava a dormir. Doparam-no e levaram-no para Marte no seu disco voador. Nesse planeta removeram o seu cérebro do seu corpo, colocaram-no numa cuba de vidro com um líquido especial para preservar a vida e ligaram-no a um super-computador. E então destruíram o seu corpo. Agora é o super-computador que controla todas as suas experiências.
Estale os dedos. Ao estalar seus dedos, o computador controla os impulsos que saem do seu cérebro: os mesmos impulsos que chegariam aos seus dedos caso ainda os tivesse. Então, o computador estimula as extremidades nervosas que estavam antes ligadas aos seus olhos, pontas dos dedos, ouvidos, etc., de modo que fica com a impressão de ver, sentir e ouvir seus dedos a estalar. Mas, na verdade, nem tem já dedos verdadeiros. Só tem dedos virtuais gerados por computador.
0 computador que gera essas experiências é tão incrivelmente avançado que copia o seu ambiente real até aos ínfimos detalhes. De modo que tudo o que experimenta parece real. A sua cama virtual parece-se perfeitamente com a sua cama real. O seu quarto virtual é igualzinho ao seu quarto verdadeiro. Os seus pais virtuais agem exactamente como os seus pais verdadeiros. A sua rua virtual parece-se exactamente com a sua rua verdadeira.
A grande questão filosófica que se pode extrair desta história é: como sabe que não é um cérebro numa cuba? Como pode saber que o mundo que o cerca não é virtual? Talvez os marcianos realmente lhe tenham feito uma visita a noite passada. Talvez tenham realmente extraído o seu cérebro e o tenham ligado a um super-computador. Se fizeram isso, será que podia sabê-lo? Parece que não, porque tudo para si continuaria a parecer exactamente igual.
Talvez tenha sido SEMPRE um cérebro numa cuba
Eis uma ideia ainda mais inquietante. Talvez tenha sido sempre um cérebro numa cuba, desde o dia em que nasceu.
Talvez o planeta Terra nem exista. Talvez as coisas que lhe parecem tão familiares – a sua casa, os seus vizinhos, os seus amigos, a sua família, não sejam mais "reais" do que os lugares e os personagens do jogo Monstros e calabouços do Jaime. Talvez não passem de uma criação de programadores de computador marcianos. Talvez esses marcianos estejam a estudar o seu cérebro para ver como ele reage ao mundo que eles inventaram.
Por outras palavras, talvez a única realidade que jamais conheceu seja uma realidade virtual. Como pode ter certeza que não? Não, parece que não pode.
Como sabe que não é um cérebro numa cuba?
Mas convenhamos, não acredita realmente que é um cérebro numa cuba. Acho que, como eu, acredita que não é um cérebro numa cuba. Mas a pergunta é: sabe que não é um cérebro numa cuba? Sabe que o mundo que parece ver em seu redor é real?
A resposta, ao que parece, é: não, não sabe. Pode acreditar que o mundo que vê é real. E talvez seja verdade que o mundo que vê seja mesmo real. Mas, ainda que seja real, parece que não sabe se é real. Para saber se ele é real ou não, decerto precisaria de uma razão para acreditar que é real. E não há razão alguma para acreditar que o mundo que vê é real e não virtual, pois tudo lhe pareceria exactamente igual mesmo se ele fosse virtual. De modo que, assombrosamente, ao que parece, não sabe que não é um cérebro numa cuba.
Na verdade, parece que não sabe coisa alguma do mundo que nos cerca. Porque tudo o que vê - a mão que vê diante dos olhos, esta folha que aparentemente segura nas suas mãos, a árvore que parece ver ali fora, e até o planeta Terra - poderia ser virtual.
A história continua. Não perca o próximo, e último, episódio na parte 3.
Stephen Law, Os Arquivos Filosóficos (São Paulo, 2003, págs. 52-60). Adaptação da tradução brasileira. O título principal não se encontra no original.
1 comentário:
E se nao for real o mundo, como acordar? E se nao puder acordar...ou se quando tiver certeza mesmo que nao é real, e nao dá para acordar, podemos "manipular os desejos para viver mais confortavelmente no mundo virtual?
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