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quarta-feira, outubro 16, 2024

Real ou aparente?

 



George Bishop olhou atentamente para a tigela de laranjas à sua frente e depois pensou no ar. Ele começou fazendo uma distinção óbvia entre as características das laranjas que são meras aparências e as propriedades que elas realmente possuem. A cor, por exemplo, é uma mera aparência: sabemos que os daltônicos, ou animais com fisiologias diferentes, veem algo muito diferente da experiência humana normal do ‘laranja’. Os sabores e o cheiro também são meras aparências, pois também variam de acordo com quem ou o que está percebendo a fruta, enquanto a fruta em si permanece a mesma. Mas quando ele começou a eliminar as “meras aparências” das frutas, ele se viu abandonado. com muito pouco. Ele poderia ao menos falar sobre o tamanho e a forma reais dos frutos, quando essas características parecem depender de como seus sentidos de visão e tato os percebem? Para imaginar verdadeiramente a fruta em si, independente das meras aparências da perceção sensorial, ele ficou com a vaga ideia de algo, não sabia o quê. Então, qual é o verdadeiro fruto: esse 'algo' diáfano ou a coleção de meras aparências, afinal de contas.

The Principles of Human Knowledge, de George Berkeley (1710).

Não é preciso muita reflexão para abrir a distinção entre aparências e realidade? Quando crianças, somos “realistas ingénuos”, presumindo que o mundo é exatamente como parece. À medida que crescemos, aprendemos a distinguir entre a forma como as coisas aparecem aos nossos sentidos e a forma como realmente são. Algumas delas – como a diferença entre coisas que são genuinamente pequenas e aquelas que estão meramente distantes – são tão óbvias que dificilmente são comentadas. Outras, como a forma como o sabor ou a cor de uma coisa varia de acordo com quem percebe, sabemos, embora na vida quotidiana o ignoremos ou esqueçamos.

À medida que desenvolvemos uma compreensão científica básica do mundo, provavelmente passamos a ver essa diferença em termos da estrutura atómica subjacente dos objetos e da estrutura atômica subjacente. maneira como eles aparecem para nós. Podemos estar vagamente conscientes de que esta própria estrutura atómica é explicada em termos de estrutura subatómica, mas não precisamos de nos preocupar com os detalhes da nossa melhor ciência atual. Tudo o que precisamos de saber é que a forma como as coisas aparecem é uma função da interação entre os nossos sentidos e a forma como elas realmente são. Tudo isto é pouco mais do que um senso comum maduro, mas é um senso comum que encobre alguns detalhes importantes.

A realidade foi distinguida das aparências, mas não temos uma ideia clara do que é esta realidade. Não tem problema, podemos pensar. A divisão intelectual do trabalho significa que deixámos esta tarefa para os cientistas. Não será verdade, porém, que os cientistas estão tão envolvidos no mundo das aparências como nós? Eles também estudam o que é apresentado aos nossos cinco sentidos. O facto de possuírem instrumentos que lhes permitem examinar o que não é visível a olho nu é uma pista falsa. Quando olho através de um telescópio ou microscópio, fico tão preso ao mundo das aparências quanto quando vejo sem ajuda. Os cientistas não olham para além do mundo das aparências; estão apenas a olhar para esse mundo mais de perto do que normalmente fazemos. Este é um problema filosófico e não científico. Parecemos compreender a diferença entre o mundo das aparências e o mundo tal como ele é, mas parece impossível ir além das aparências e ver este mundo “real”. Quando entendemos que a lua está longe, não é pequena, ou que o bastão na água não está dobrado, não estamos indo além das aparências, estamos apenas aprendendo como algumas aparências são mais enganosas que outras. Isso nos deixa com um dilema. Continuamos comprometidos com a ideia de um mundo além das aparências e aceitamos que não temos ideia do que é este mundo e nem conseguimos imaginar como poderemos conhecê-lo? Ou desistimos da ideia e aceitamos que o único mundo em que podemos viver e conhecer é, afinal, o mundo das aparências.

Julian Baggini, The pig that wants to be eaten.

 

sábado, dezembro 09, 2023

Hume e Kant: A experiência não é dada é já construção submetida a categorias "a priori".

 




Paolo Pellegrin, Sem título, Alemanha, 2013

Pensar um objeto e conhecer um objeto não é pois uma e a mesma coisa. Para o conhecimento são necessários dois elementos: primeiro o conceito, mediante o qual é pensado em geral o objeto (a categoria), em segundo lugar a intuição, pela qual é dado; porque, se ao conceito não pudesse ser dada uma intuição correspondente, seria um pensamento, quanto à forma, mas sem qualquer objeto e, por seu intermédio, não seria possível o conhecimento de qualquer coisa; pois, que eu saiba, nada haveria nem poderia haver a que pudesse aplicar o meu pensamento. Ora, toda a intuição possível para nós é sensível (estética) e, assim, o pensamento de um objeto em geral só pode  converter-se em nós num conhecimento, por meio de um conceito puro do entendimento, na medida em que este conceito se refere a objetos dos sentidos. A intuição I sensível ou é intuição pura (espaço e tempo) ou intuição empírica daquilo que, pela sensação, é imediatamente representado como real, no espaço e no tempo. Pela determinação da primeira, podemos adquirir conhecimentos a priori de objetos (na matemática), mas só segundo a sua forma, como fenómenos; se pode haver coisas que tenham de ser intuídas sob esta forma é o que aí ainda não fica decidido. Consequentemente, todos os conceitos matemáticos não são por si mesmos ainda conhecimentos, senão na medida em que se pressupõe que há coisas que não podem ser apresentadas a nós a não ser segundo a forma dessa intuição sensível pura. Coisas no espaço e no tempo só nos são dadas, porém, na medida em que são perceções (representações acompanhadas de sensação), por conseguinte graças à representação empírica. Consequentemente, os conceitos puros do entendimento, mesmo quando aplicados a intuições a priori (como na matemática) só nos proporcionam conhecimentos na medida em que estas intuições, e portanto também os conceitos do entendimento, por seu intermédio, puderam ser aplicados a intuições empíricas. Assim, também as categorias não nos concedem por meio da intuição nenhum conhecimento das coisas senão através da sua aplicação possível à intuição empírica, isto é, servem apenas para a possibilidade do conhecimento empírico. A este, porém, chama-se experiência. Eis porque as categorias só servem para o conhecimento das coisas, na medida em que estas são consideradas como objeto de experiência possível.

Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Lisboa, FCG, 2001, p.174

A causalidade como categoria ou conceito puro que torna possível o entendimento das coisas que são dadas na intuição adequa-se melhor como explicação do que aquela que David Hume dá, sobre a causalidade como projeção da mente que cria uma ilusão a partir da conjunção constante entre objetos. mas há objetos que nos aparecem em conjunção constante e que não nos conduzem à relação de causalidade entre um e outro. Reid aponta o exemplo do dia e da noite, poderíamos dar outros exemplos, o sono e o sonho, não entendemos o sono como causa do sonho, atribuímos ao sonho outras causas psicológicas que não necessariamente o sono. Se a mente projeta a partir dos acontecimentos repetidos impulsionada pelo hábito, porque não o faz sempre? Porque racionalmente não encontra forma de explicar um pelo outro.

quinta-feira, outubro 12, 2023

O ceticismo de David Hume


Larry Towell, Terra de ninguém, 2003. Um palestiniano foge por uma brecha na vedação de laje de 8 metros colocada para impedir o acesso à margem oeste da Palestina. 

“O ceticismo de Hume parece derivar da conjunção das três proposições seguintes:

(I)                  não há verdades sintéticas “a priori” a respeito do mundo externo;

(II)                qualquer conhecimento genuíno que tenhamos do mundo externo deve ser derivado, em última instância da experiência percetiva;

(III)              só são válidas derivações dedutivas.

(IV)              Referir-me-ei a estas três proposições, respetivamente como a tese antiapriorista, a tese experimentalista, e a tese dedutivista. Elas implicam que para qualquer enunciado factual h constituir conhecimento, tem de haver premissas verdadeiras e que relatam experiências percetivas e das quais h é logicamente derivável. Mas se h fala do mundo externo e e só fala de experiências percetivas, h vai mais além de e e, portanto, não pode ser logicamente derivado de e.

Os filósofos usam frequentemente o termo conhecimento como uma palavra-sucesso; mas, neste livro, o termo será usado para denotar um certo corpo organizado de saber sem a implicação de estar livre de erro. Assim pode dizer-se: “O conhecimento médico do século dezoito era muito imperfeito e continha muito de erróneo”. Só estará a ser usado como palavra-sucesso quando estiver em itálico. Assim, podemos enunciar o ceticismo de Hume como a tese de que nada do nosso conhecimento do mundo externo é conhecimento.

Podemos escolher dentro da enorme variedade de enunciados que figuram no nosso conhecimento factual, enunciados ocorrendo aos níveis seguintes:

nível 0: relatos de perceções na primeira pessoa, do tipo aqui e agora (por exemplo: ‘No meu campo visual há um crescente prateado contra um fundo azul escuro’);

nível 1: enunciados singulares sobre coisas ou acontecimentos observáveis (por exemplo: ‘Há lua nova esta noite’;

nível 2: generalizações empíricas sobre regularidades manifestadas por coisas e acontecimentos observáveis (por exemplo: ‘ Uma lua nova é seguida por marés vivas’);

nível 3: leis experimentais exatas sobre grandezas físicas mensuráveis (por exemplo:  - a lei de Snell da refração ou a lei dos gases de Charles e Gay-Lussac);

nível 4: teorias científicas que são não só universais e exatas, mas ainda postulam entidades inobserváveis (por exemplo - a teoria dos campos de força de Faraday- Maxwell).

O ceticismo de Hume também pode expressar-se como a tese segundo a qual nenhum enunciado de nível 1, ou superior, possa ser justificado por enunciados de níveis mais baixos. É uma teoria epistemológica de carácter muito negativo. (…)

Para o ceticismo pirrónico, o mapa do conhecimento empírico é muito simples: só mostra um oceano indiferenciado de incerteza. Para o ceticismo de Hume, o mapa mostra um oceano de incerteza com uma pequena ilha de certeza no meio; esta ilha contém, para qualquer pessoa X no instante t, o conhecimento egocêntrico de X em t sobre as suas próprias experiências percetivas, etc.”

J.W.N. Watkins, Ciência e ceticismo (1984), Lx, 1990, Fundação Calouste Gulbenkian, p.15,16,17

 

quarta-feira, setembro 27, 2023

Sobre a verruga de aceitar o que não se pode saber.

 


Thomas Hoepker, Itália, 1956

" Quando nos esforçamos por descrever o eu sem o assimilar a outrem, impõe-se uma primeira observação, e é a de que ele só existe de maneira intermitente e, no fim de contas, bastante rara. A sua presença corresponde a um modo de conhecimento secundário e como que reflexivo. O que se passa, realmente, de maneira primária e imediata? Pois bem! Os objetos estão lá todos, brilhando ao Sol ou recolhidos à sombra, rugosos ou macios, pesados ou leves; são conhecidos, saboreados, pesados e até cozidos, polidos, dobrados, etc. sem que esse eu que conhece, saboreia, pesa, coze, etc. por qualquer forma exista, salvo se se cumpre o ato de reflexão que me faz surgir, e ele raramente se cumpre. No estádio primário do conhecimento, a consciência que eu tenho de um objeto é o próprio objeto, o objeto é conhecido, cheirado, etc., sem que alguém que conheça, cheire, etc. Não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra; a dos objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-los.

Há neste estádio ingénuo, primário e como que impulsivo, que é o nosso modo normal de existência, uma feliz solidão do conhecido, uma virgindade das coisas que, todas elas, possuem em si próprias, como outros tantos atributos da sua essência – cor, odor, sabor e forma. Então Robinson é Speranza. Só tem consciência de si através das frondes dos mirtos, onde o Sol dardeja um punhado de flechas, só se conhece na espuma da onda deslizando sobre a areia dourada.

E de repente a mola salta. O sujeito arranca-se ao objeto, despojando-o de uma parte da sua cor e do seu peso. Algo estalou no mundo e um pedaço das coisas abate-se, tornando-se eu. Cada objeto é desqualificado em proveito de um sujeito correspondente. A luz torna-se olho, e já não existe como tal; é só excitação da retina. O odor torna-se narina, e o próprio mundo revela-se inodoro. A música do vento nos paletúvios é refutada; mais não é que perturbação do tímpano. O mundo inteiro acaba-se por se fundir na minha alma, que é a própria alma de Speranza, arrancada à ilha, a qual morrerá sob o meu olhar cético. “

Michel Tournier, Sexta feira ou os limbos do Pacífico, S.. Paulo, Difel, 1985, p.86,87


A velha questão que nos interessa, de saber se as coisas são assim para mim, ou são mesmo assim como são para mim. Sendo que é uma questão sem forma de deslindamento. Mesmo a existência de um outro sujeito dotado de outra perceção não nos ajudaria a deslindar visto que de modo nenhum se pode saber o que são as coisas  em si, mas sempre de algum modo para ti ou para mim. Seja como for, não nos conduz esta reflexão obrigatoriamente ao ceticismo, pois há sem dúvida uma partilha das mesmas determinações do objeto por vários sujeitos, o que me leva a concluir que o mais correto é estabelecer o limite de que não há O conhecimento, mas o conhecimento humano, aquele que todos, num fenómeno intersubjetivo, partilham e aferem. HS

quarta-feira, junho 15, 2022



Paula Rego (1935/ Junho 2022) Casa da celestina


Vou agora falar de um dos desastres da história da filosofia ocidental, e durante cinco minutos irei servir de cicerone. Eis como funciona: “Disseste que viste a tua mão, mas e se foi uma alucinação? Suponha-se que não viste realmente a minha mão, e que a experiência foi uma alucinação.” No caso da alucinação que estou a descrever, parece-me que estou a ver a minha mão, mas não vejo de facto a minha mão. Porém, a história continua: “Embora não tenhas visto realmente a tua mão, viste de facto algo. Mesmo que tenha sido apenas uma mão alucinatória ou a alucinação de uma mão ou uma imagem de uma mão – viste algo.” Este é o passo crucial naquilo a que chamei o desastre. A afirmação é que embora eu não tenha visto a minha mão, mesmo assim vi alguma coisa. Mas este alguma coisa não foi um objeto material, portanto teve de ter sido uma entidade puramente mental.



O argumento continua: a experiência de ver realmente a tua mão não se distingue da alucinação. Portanto, seja o que for que tenhas a dizer acerca de uma, tens de dizer acerca de outra. Portanto, se não viste a tua mão no caso da alucinação, também não a viste no caso verídico. O que viste? Em ambos os casos. Viste aquilo que Hume chama de impressão de uma mão; aquilo a que Descartes e Locke chamaram de uma ideia de mão; aquilo que Kant chamou uma representação de uma mão; ou um dado dos sentidos de uma mão, que é o linguajar moderno. Tudo isto é um desastre, o mesmo desastre em cada caso. E agora quero explicar por que razão este erro é um desastre.

O desastre tem nome – Descartes, Berkeley, Locke, Leibniz, Espinosa, Kant, Hume, Mill, Hegel. Estamos agora num dos maiores desastres da história da filosofia, em que decidimos expulsar-nos do mundo real e entrar no mundo do Geist.

O erro é dizer: “Nunca vês o mundo real; só vês a representação ou o dado dos sentidos que ocorre na tua mente. Então levanta-se a questão: Qual é a relação entre o dado dos sentidos que de facto vês e o objeto do mundo real que não vês? E há trezentos anos de má filosofia a tentar responder a essa questão. Estou a dizer que a saída para essa questão é compreender que no caso comum perceciono diretamente a minha mão e perceciono-a à minha frente. O modo correto de descrever a situação percetiva é dizer que perceciono diretamente os objetos e os estados de coisas no mundo; trata-se de uma apresentação e não de uma representação, e o conteúdo intencional é causalmente auto reflexivo no sentido em que só é satisfeito se for causado pelo estado de coisas que constitui o resto das suas condições de satisfação. (…)

O desastre de negar que temos conhecimento percetivo direto do mundo tem conduzido à principal tendência na epistemologia dos últimos trezentos anos. Estou a tentar eliminar esse desastre fazendo com que se veja que as nossas experiências percetivas nos fornecem apresentações diretas dos objetos e estados de coisas do mundo. Como? (…)

Primeiro: O realismo direto não é posto em causa pelo argumento que diz que não se pode lidar com as alucinações. “O que vê a pessoa no caso da alucinação? “Nada”. A pessoa não vê coisa alguma; isso é o que faz de uma alucinação uma alucinação. (…)

Segundo: a experiência visual quando é satisfeita fornece de facto acesso percetivo direto aos objetos e estado de coisas do mundo exterior à nossa mente.



John Searle, Da realidade física à realidade humana, Lx,2020, Gradiva,p.126 -132

quarta-feira, outubro 20, 2021

Contra o relativismo no conhecimento

 

Dança, uma composição sem objeto de Alexander Rodchenko, 1915


 A 22 de outubro de 1996, The New York Times publicou uma inusitada matéria de primeira página. Intitulada “Indian Tribe’s Creationists Thwart Archeologists” (“Criacionistas indígenas tribais contradizem arqueólogos”), descrevia um conflito que surgira entre duas opiniões sobre as origens das populações nativas americanas. Segundo a tese arqueológica dominante, amplamente confirmada, os humanos chegaram inicialmente à América pela Ásia, atravessando o estreito de Bering há cerca de 10 mil anos atrás. Em contrapartida, alguns mitos criacionistas dos nativos americanos sustentam que os povos nativos vivem na América desde que os seus antepassados emergiram pela primeira vez na superfície da Terra, vindos de um mundo subterrâneo de espíritos. (…) O New York Times prosseguia observando que vários arqueólogos, dilacerados entre seu compromisso com o método científico e seu apreço pela cultura nativa, “têm sido empurrados rumo a um relativismo pós-moderno no qual a ciência é apenas mais um sistema de crenças”. Roger Anyon, arqueólogo britânico que trabalhou para o povo Zuni, foi citado como tendo dito: A ciência é apenas uma das várias maneiras de se conhecer o mundo. [A visão de mundo dos Zunis é] tão válida quanto o ponto de vista arqueológico sobre o que é a pré-história. Outro arqueólogo, o doutor Larry Zimmermann, da Universidade de Iowa, reivindicava um tipo diferente de ciência, entre as fronteiras dos modos de conhecimento ocidentais e os modos de conhecimento indígenas. E o doutor Zimmermann acrescentava: Eu pessoalmente rejeito a ciência como um modo privilegiado de ver o mundo.

Por mais surpreendentes que sejam, essas observações seriam de interesse apenas superficial, não fosse a enorme influência da perspetiva filosófica geral que representam. Principalmente dentro da academia, mas também e inevitavelmente, em certa medida, fora dela, tem-se enraizado a ideia de que existem “várias maneiras igualmente válidas de conhecer o mundo”, com a ciência sendo apenas uma delas. Em vastos setores das humanidades e das ciências sociais, essa espécie de “relativismo pós- moderno” sobre o conhecimento conquistou o status de ortodoxia. Vou chamá-lo (do modo mais neutro possível) de doutrina da igual validade: "Existem vários modos de se conhecer o mundo, radicalmente diferentes porém 'igualmente válidos', e a ciência é apenas um deles". Eis alguns exemplos representativos de pensadores que aceitam o pensamento básico por trás da igual validade:

Na medida em que reconhecemos o estatuto convencional e artefactual das nossas formas de conhecimento, tornamo-nos capazes de perceber que nós próprios, e não a realidade, somos os responsáveis pelo que sabemos.1

A ciência do primeiro mundo é uma ciência entre outras...

Para o relativista, não faz sentido a ideia de que algumas regras ou crenças são realmente racionais, distintas daquelas que são aceites como racionais apenas localmente. Uma vez que e não pensa haver normas de racionalidade supraculturais ou livres de contexto, não vê as crenças sustentadas racionalmente ou irracionalmente como duas classes de coisas distintas e qualitativamente diferentes.3

Existem muito mais trechos como estes que poderiam ser citados. O que há na doutrina da igual validade tem que parece tão radical e contraintuitivo? Bem, normalmente pensamos que, numa questão factual como a da pré-história americana, existe um modo de ser das coisas que é independente de nós e das nossas crenças sobre isso – um facto objetivo sobre a questão, por assim dizer, quanto ao lugar de onde se originaram os primeiros americanos.

Não somos necessariamente objetivistas factuais nesse sentido acerca de todos os domínios de juízo. Acerca da moral, por exemplo, algumas pessoas, incluindo filósofos, tendem a ser relativistas: sustentam que existem diversos códigos morais alternativos que especificam o que se considera uma conduta boa ou má, mas que não existem fatos em virtude dos quais alguns desses códigos sejam mais “corretos” do que qualquer um dos outros.

Outros podem ser relativistas acerca da estética, acerca do que é considerado como belo ou artisticamente valioso. Esses tipos de relativismo sobre questões de valor são sujeitos ao debate, é claro, e ainda são debatidos. No entanto, ainda que os consideremos em última instância implausíveis, não nos chocam de imediato como absurdos. Mas quando se trata de uma questão factual como a das origens dos primeiros americanos, tendemos a pensar, sem dúvida, que existe alguma objetividade na matéria. Podemos não saber qual é essa objetividade, mas, tendo formado um interesse na matéria, buscamos conhecê-la. E dispomos de uma variedade de técnicas e métodos - observação, lógica, inferência para a melhor explicação e assim por diante, mas não a leitura de folhas de chá ou o olhar para uma  bola de cristal - que consideramos ser os únicos modos legítimos de formar crenças racionais sobre o assunto. Esses métodos - os métodos característicos do que chamamos “ciência”, mas que também caracterizam também os modos normais de procurar conhecimento – conduziram-nos à ideia de que os primeiros americanos vieram da Ásia através do estreito de Bering. Essa ideia pode ser falsa, é claro, mas é a mais razoável, dadas as evidências - ou assim somos geralmente levados a pensar.

Porque acreditarmos em tudo isto, acatamos as conclusões da ciência: atribuímos-lhe um papel privilegiado na determinação do que ensinar aos nossos filhos na escola, o que se aceita como probatório nos nossos tribunais e o que serve de base às nossas políticas sociais. Consideramos que existe um facto objetivo quanto ao que é verdadeiro. Queremos aceitar somente aquilo sobre o qual há boas razões para acreditarmos ser verdadeiro; e consideramos a ciência como o único bom caminho para chegarmos a crenças razoáveis acerca do que é verdadeiro, pelo menos no reino do puramente factual. Por isso, acatamos a ciência. Para que esse tipo de acatamento à ciência seja correto, no entanto, o conhecimento científico deve ser privilegiado -não pode ser o caso de haver vários outros modos de conhecimento, radicalmente diferentes mas igualmente válidos, com a ciência sendo apenas um deles. Pois se a ciência não fosse privilegiada, precisaríamos conceder tanta credibilidade à arqueologia quanto ao criacionismo Zuni, tanta credibilidade à evolução quanto ao criacionismo cristão - precisamente a opinião defendida por um número crescente de pensadores da academia, e crescentemente ecoada por pessoas de fora dela.

Paul Boghossian, O Medo do conhecimento,Gradiva,2015

 

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Pequena história da palavra "facto". (a continuar)

 

 

                                                          "O Júri",  John Morgan, 1861

Em 1778, Gothold lessing escreveu um pequeno ensaio sobre a palavra alemã para “facto” : Tatsache. “ A palavra ainda é jovem”, disse Lessing, e” e lembro-me perfeitamente do tempo antes de alguém a ter usado”. Mas a palavra em si, pelo menos em inglês, francês e italiano, não é nova. A sua origem está no verbo latino facio, ou “eu faço”. Factum, o particípio passado neutro significa “o que foi feito”. Pela Europa fora, onde quer que a influência do direito romano se tenha feito sentir, a lei ocupou-se do factum, que era o ato ou o crime. Por isso, “ o facto de Caim” foi o assassínio de Abel. Na peça Tudo está bem quando acaba bem, de Shakespeare, Helena diz:

Vamos analisar a nossa trama que, apressando,

Tem um significado malvado numa ação legítima

E significado legítimo num ato legítimo,

Onde os dois não pecam mas o facto é pecaminoso.1

O jogo de palavras que aqui existe depende de o “facto” ser, ao mesmo tempo, um sinónio para “ação” e “ato” mas também uma palavra usada especificamente para ações e atos ilegítimos. Em inglês ainda se usa esta linguagem (que será algo arcaica) quando, com a expressão “ an accessory after the fact” (cúmplice depois do facto), se faz referência a alguém que presta ajuda a um criminoso depois do crime ter sido cometido.

No direito inglês, o júri é o juiz do facto (Joe matou Tom? O Júri determina se Joe fez esse ato). O juiz é a autoridade na questão legal (para responder a perguntas como “Em que circunstâncias pode uma pessoa matar outra em legítima defesa?” ou “ Um documento está corretamente elaborado?” Pode-se apresentar recurso da interpretação da lei feita pelo juiz e da orientação dada ao júri mas não da determinação do facto pelo júri. Deve destacar-se aqui que nada houve de natural nesta conceção jurídica do facto. Foi uma construção do século XIII quando o júri substituía o “juízo de Deus” ou julgamento por ordálio. O que significava que o facto possuía um estatuto específico no direito inglês: uma vez estabelecido, nunca poderia ser posto em causa. Daí o aspeto específico da palavra “facto” no seu uso moderno, ao contrário de uma teoria, um facto é sempre verdadeiro e os factos são infalíveis porque os júris determinam os factos e são considerados infalíveis ( ou, pelo menos, incorrigíveis e incontestáveis, o que conduz à mesma coisa).

1)III. vii. 44-7

David Wootton, A invenção da ciência,Lisboa, Temas e Debates, 2017, pág.357 e 358

 

quarta-feira, outubro 07, 2020

Existirá um conhecimento "a priori"?

 



Retire um livro retangular da sua estante e olhe para a capa. Qual é a cor predominante, e quantos lados tem? Ao responder a estas questões, o leitor fica a saber duas coisas acerca deste livro, e esses dois factos mostram uma importante distinção entre duas maneiras que temos de adquirir conhecimento.

Para ficarmos a saber a cor do livro temos que observá-lo (ou pedir a alguém que o faça por nós). A justificação para a sua crença acerca da sua cor é fornecida pela experiência (nossa ou de outrem). Mas não precisamos de olhar para um livro retangular para sabermos quantos lados tem. Sabemos que os retângulos têm quatro lados pelo simples facto de pensarmos o que é um retângulo. Adquirimos este conhecimento usando apenas os nossas poderes de raciocínio; não temos de considerar a informação dada pelos nossos sentidos. O conhecimento que é justificado pela experiência é denominado conhecimento a posteriori ou conhecimento empírico. O conhecimento em que a experiência não tem um papel justificatório é denominado conhecimento a priori.



Dan O'Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

Os factos




Newsha Tavakolian, 2018" Cartaz que evoca mártires da luta contra o ISIS com a legenda, "Convosco sobrevivemos e a vida continua"



...E o que é um facto? É uma espécie de carta de trunfo num jogo intelectual. Quando estamos a jogar Pedra, Papel e Tesoura, nunca podemos ter a certeza de quem vencerá. A vida intelectual era um pouco assim quando foi inventado o facto – houve quem pensasse que a razão devia vencer, outros que deveria vencer a autoridade (em especial no que se referia a questões de fé) e outros ainda, a preferirem confiar na experiência ou na experimentação. Mas quando os factos entraram em campo tudo se alterou porque não é possível discutir com os factos: eles ganham sempre. Os factos são um mecanismo linguístico que assegura que a experiência triunfa sempre sobre a autoridade e a razão. Como reconheceu Hume, “não se pode raciocinar  (…) contra o elemento factual”. As citações escolhidas pelo Oxford English Dictionary para ilustrar o significado da palavra contam a sua própria história: “ Os factos são coisas teimosas” (1749), “ Os factos são mais poderosos que os argumentos” (1782) ou “ Um facto destrói esta ficção” (1836). (…)
Nós tomamos os factos como tão certos que é um choque saber que eles são uma invenção moderna. Não existe a palavra no grego ou no latim clássicos e nenhuma maneira de traduzir as frases do Oxford English Dictionary para essas línguas. Os gregos escreviam to hoti, “aquilo que é”, e os filósofos escolásticos perguntavam na sit “se é”. Mas há uma margem muito grande para argumentar com declarações de “é” e alguém dificilmente poderia descrever essa argumentação como teimosa ou poderosa. (…)
Em latim a palavra que é mais frequentemente traduzida como “facto” pelos tradutores modernos é res (coisa). Mas coisas e factos não são a mesma coisa. Uma coisa existe sem palavras mas um facto é uma afirmação, uma palavra definidora num discurso. As coisas não são verdadeiras mas os factos são. (…) O nosso conhecimento dos factos tem por isso as duas faces de Jano: num dado momento vemo-los como coisas, como a própria realidade; no momento seguinte são convicções verdadeiras, afirmações sobre a realidade. O resultado é a gramática do facto ser profundamente problemática. Se os factos são reais, não são verdadeiros nem falsos; se são afirmações já o são. Seria um erro pensar que poderíamos resolver esta contradição: o aspeto fundamental do facto é ele habitar dois mundos e reclamar as partes melhores de ambos. É precisamente esta qualidade que faz dos factos a matéria-prima da ciência porque a ciência também é uma amálgama específica do real e do cultural. Os factos e a ciência vivem em harmonia.
Os factos não são apenas verdadeiros ou falsos. Podem ser confirmados por um apelo à evidência. A afirmação “Eu acredito em Deus” é falsa ou verdadeira, mas só eu é que posso saber ao certo o que será porque ela se refere a um estado de espírito que é apenas interno, além de ser inerentemente subjetivo. Se eu pratico certas observâncias religiosas, há motivos para pensar que a afirmação é verdadeira mas é difícil ver como ela alguma vez pode ser provada. Há pessoas que continuam a praticar observâncias religiosas mesmo depois de a sua fé ter (temporariamente, segundo esperam) desertado. Eu posso provar que fui batizado ou que me casei: estes factos estão documentados. São estados de coisas bem objetivos.

David Wootton, A invenção da ciência  (2015), Lx, Temas e debates, 2017,  pp.322,323,324