Newsha Tavakolian, 2018" Cartaz que evoca mártires da luta contra o ISIS com a legenda, "Convosco sobrevivemos e a vida continua"
...E o que é um facto? É uma espécie de carta de trunfo num
jogo intelectual. Quando estamos a jogar Pedra, Papel e Tesoura, nunca podemos
ter a certeza de quem vencerá. A vida intelectual era um pouco assim quando foi
inventado o facto – houve quem pensasse que a razão devia vencer, outros que
deveria vencer a autoridade (em especial no que se referia a questões de fé) e
outros ainda, a preferirem confiar na experiência ou na experimentação. Mas quando
os factos entraram em campo tudo se alterou porque não é possível discutir com
os factos: eles ganham sempre. Os factos são um mecanismo linguístico que
assegura que a experiência triunfa sempre sobre a autoridade e a razão. Como
reconheceu Hume, “não se pode raciocinar
(…) contra o elemento factual”. As citações escolhidas pelo Oxford English Dictionary para ilustrar
o significado da palavra contam a sua própria história: “ Os factos são coisas
teimosas” (1749), “ Os factos são mais poderosos que os argumentos” (1782) ou “
Um facto destrói esta ficção” (1836). (…)
Nós tomamos os factos como tão certos que é um choque saber
que eles são uma invenção moderna. Não existe a palavra no grego ou no latim clássicos
e nenhuma maneira de traduzir as frases do
Oxford English Dictionary para essas línguas. Os gregos escreviam to hoti, “aquilo que é”, e os filósofos
escolásticos perguntavam na sit “se é”.
Mas há uma margem muito grande para argumentar com declarações de “é” e alguém
dificilmente poderia descrever essa argumentação como teimosa ou poderosa. (…)
Em latim a palavra que é mais frequentemente traduzida como “facto”
pelos tradutores modernos é res
(coisa). Mas coisas e factos não são a mesma coisa. Uma coisa existe sem
palavras mas um facto é uma afirmação, uma palavra definidora num discurso. As coisas
não são verdadeiras mas os factos são. (…) O nosso conhecimento dos factos tem
por isso as duas faces de Jano: num dado momento vemo-los como coisas, como a
própria realidade; no momento seguinte são convicções verdadeiras, afirmações
sobre a realidade. O resultado é a gramática do facto ser profundamente
problemática. Se os factos são reais, não são verdadeiros nem falsos; se são
afirmações já o são. Seria um erro pensar que poderíamos resolver esta contradição:
o aspeto fundamental do facto é ele habitar dois mundos e reclamar as partes
melhores de ambos. É precisamente esta qualidade que faz dos factos a matéria-prima
da ciência porque a ciência também é uma amálgama específica do real e do
cultural. Os factos e a ciência vivem em harmonia.
Os factos não são apenas verdadeiros ou falsos. Podem ser
confirmados por um apelo à evidência. A afirmação “Eu acredito em Deus” é falsa
ou verdadeira, mas só eu é que posso saber ao certo o que será porque ela se
refere a um estado de espírito que é apenas interno, além de ser inerentemente
subjetivo. Se eu pratico certas observâncias religiosas, há motivos para pensar
que a afirmação é verdadeira mas é difícil ver como ela alguma vez pode ser
provada. Há pessoas que continuam a praticar observâncias religiosas mesmo
depois de a sua fé ter (temporariamente, segundo esperam) desertado. Eu posso
provar que fui batizado ou que me casei: estes factos estão documentados. São
estados de coisas bem objetivos.
David Wootton, A invenção da ciência (2015), Lx, Temas e debates, 2017, pp.322,323,324
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