quarta-feira, fevereiro 26, 2020

Os factos




Newsha Tavakolian, 2018" Cartaz que evoca mártires da luta contra o ISIS com a legenda, "Convosco sobrevivemos e a vida continua"



...E o que é um facto? É uma espécie de carta de trunfo num jogo intelectual. Quando estamos a jogar Pedra, Papel e Tesoura, nunca podemos ter a certeza de quem vencerá. A vida intelectual era um pouco assim quando foi inventado o facto – houve quem pensasse que a razão devia vencer, outros que deveria vencer a autoridade (em especial no que se referia a questões de fé) e outros ainda, a preferirem confiar na experiência ou na experimentação. Mas quando os factos entraram em campo tudo se alterou porque não é possível discutir com os factos: eles ganham sempre. Os factos são um mecanismo linguístico que assegura que a experiência triunfa sempre sobre a autoridade e a razão. Como reconheceu Hume, “não se pode raciocinar  (…) contra o elemento factual”. As citações escolhidas pelo Oxford English Dictionary para ilustrar o significado da palavra contam a sua própria história: “ Os factos são coisas teimosas” (1749), “ Os factos são mais poderosos que os argumentos” (1782) ou “ Um facto destrói esta ficção” (1836). (…)
Nós tomamos os factos como tão certos que é um choque saber que eles são uma invenção moderna. Não existe a palavra no grego ou no latim clássicos e nenhuma maneira de traduzir as frases do Oxford English Dictionary para essas línguas. Os gregos escreviam to hoti, “aquilo que é”, e os filósofos escolásticos perguntavam na sit “se é”. Mas há uma margem muito grande para argumentar com declarações de “é” e alguém dificilmente poderia descrever essa argumentação como teimosa ou poderosa. (…)
Em latim a palavra que é mais frequentemente traduzida como “facto” pelos tradutores modernos é res (coisa). Mas coisas e factos não são a mesma coisa. Uma coisa existe sem palavras mas um facto é uma afirmação, uma palavra definidora num discurso. As coisas não são verdadeiras mas os factos são. (…) O nosso conhecimento dos factos tem por isso as duas faces de Jano: num dado momento vemo-los como coisas, como a própria realidade; no momento seguinte são convicções verdadeiras, afirmações sobre a realidade. O resultado é a gramática do facto ser profundamente problemática. Se os factos são reais, não são verdadeiros nem falsos; se são afirmações já o são. Seria um erro pensar que poderíamos resolver esta contradição: o aspeto fundamental do facto é ele habitar dois mundos e reclamar as partes melhores de ambos. É precisamente esta qualidade que faz dos factos a matéria-prima da ciência porque a ciência também é uma amálgama específica do real e do cultural. Os factos e a ciência vivem em harmonia.
Os factos não são apenas verdadeiros ou falsos. Podem ser confirmados por um apelo à evidência. A afirmação “Eu acredito em Deus” é falsa ou verdadeira, mas só eu é que posso saber ao certo o que será porque ela se refere a um estado de espírito que é apenas interno, além de ser inerentemente subjetivo. Se eu pratico certas observâncias religiosas, há motivos para pensar que a afirmação é verdadeira mas é difícil ver como ela alguma vez pode ser provada. Há pessoas que continuam a praticar observâncias religiosas mesmo depois de a sua fé ter (temporariamente, segundo esperam) desertado. Eu posso provar que fui batizado ou que me casei: estes factos estão documentados. São estados de coisas bem objetivos.

David Wootton, A invenção da ciência  (2015), Lx, Temas e debates, 2017,  pp.322,323,324

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