É sobre esta questão de saber como se liga o saber das coisas e o
retorno a si próprio, que vemos aparecer num certo número de textos da
época helenista e romana, que vos queria falar, em torno deste antiquíssimo tema
que já Sócrates evocava no Fedro, quando dizia: será que é preferível escolher
o conhecimento das árvores ou o dos homens? E escolhia o conhecimento dos
homens. É um tema que vamos encontrar em seguida nos socráticos, quando dizem
uns a seguir aos outros, que aquilo que é interessante, importante e decisivo,
não é conhecer os segredos do mundo e da natureza, é conhecer o homem ele
mesmo. É um tema que encontraremos nas grandes escolas cínicas, epicuristas e
estóicas, e é aqui que eu gostaria de tentar ver como se põe o problema. (…)
Os
conhecimentos inúteis, rejeitados por Demetrius, não se definem pelo seu
conteúdo. Definem-se por um modo de conhecimento, um modo de conhecimento
causal que tem a dupla propriedade, ou melhor esta dupla fraqueza, que podemos
definir na relação com os outros: são conhecimentos que não se podem
transformar em prescrições, que não têm pertinência prescritiva; em segundo
lugar, não têm, quando tomamos deles conhecimento, efeito sobre o modo de ser
do sujeito. No lado oposto, irá ser validado um modo de conhecimento que,
considerando todas as coisas do mundo ( os deuses, o cosmos, os outros, etc) como estando em relação connosco, poderemos transcrever esse conhecimento num conjunto de prescrições que modificarão o que nós somos.(…)
Parece-me
, que a distinção, o corte introduzido no campo do saber, mais uma vez, não é
aquele que marcará como inúteis certos conteúdos do conhecimento e como úteis
alguns outros; é o que marca o carácter “ethopoético” ou não do saber. Quando o
saber, quando o conhecimento tem uma forma, quando ela funciona de uma tal
maneira que é capaz de produzir o ethos,
então ela é útil. E o conhecimento do mundo é perfeitamente útil: ele pode
fabricar ethos ( o conhecimento dos
outros e o conhecimento dos deuses também). (…) Consequentemente vemos que esta crítica do saber inútil, não
nos reenvia para a valorização de um outro saber com outro conteúdo, que seria
o conhecimento de nós-mesmos e do nosso interior. Reenvia-nos antes a um outro
funcionamento do mesmo saber das coisas exteriores. O conhecimento de si não é de modo nenhum, pelo menos a este
nível, um caminho que se torna num decifrar dos arcanos da consciência, na
exegese de si, que vemos no cristianismo. O conhecimento útil, o conhecimento
onde a existência humana está em questão, é um modo de conhecimento relacional, simultaneamente
assertivo e prescritivo, e que é capaz de produzir uma mudança no modo de ser
do sujeito.
Michel
Foucault, L’herméneutique du sujet, Seuil, Gallimard, 2001, p.p 222,227
Tradução do francês de Helena Serrão
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