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sábado, janeiro 26, 2019

Ações contra o nosso melhor julgamento


Talvez seja evidente que há uma gama considerável de ações, semelhantes a ações incontinentes num aspeto ou noutro, em que podemos falar de autoengano, insinceridade, má fé, hipocrisia, desejos inconscientes, motivos e intenções, e assim por diante. Há, na verdade, uma grande tentação, ao
trabalhar sobre esse assunto, em fazer de psicólogo amador. Morremos de vontade de dizer: lembrem-se da enorme variedade de maneiras em que um homem pode acreditar ou manter algo, ou saber, ou querer algo, ou ter medo disso, ou fazer alguma coisa. Podemos agir como se soubéssemos algo e, no entanto, duvidar profundamente disso; podemos atuar à como queremos e, ao mesmo tempo, afastar-nos como um observador e dizer a nós mesmos: "Que coisa estranha de se fazer". Podemos desejar coisas e dizer a nós mesmos que as odiamos. Esses meio estados e estados contraditórios são comuns e cheios de interesse para o filósofo. Sem dúvida, que explicam, ou pelo menos apontam para uma maneira de descrever sem contradição, muitos casos em que nos encontramos a falar de fraqueza da vontade ou de incontinência. Mas nós mesmos mostramos uma certa fraqueza como filósofos, se não perguntarmos: todo caso de incontinência envolve uma das zonas sombrias onde queremos aplicar, e reter, algum predicado mental? Não acontece que eu tenha um julgamento claro e inabalável de que minha ação não é para o melhor, e considere todas as coisas, e ainda que a ação que eu faço não tenha nenhuma parcela de compulsão ou seja independente de compulsão? Não há como provar que tais ações existem; mas parece-me absolutamente certo que sim.(...)

Austin reclama que, ao discutir este tópico, estamos propensos a dizer que"... colapsar, sucumbindo à tentação, é perder o controle de nós mesmos". "Elabora: Platão, eu suponho, e depois dele Aristóteles, fixaram essa confusão, tão má no seu tempo, quanto a confusão posterior e grotesca da fraqueza moral com a fraqueza da vontade. (…)Frequentemente sucumbimos à tentação com calma, mesmo com delicadeza. (…)Há também muitos casos em que agimos contra o nosso melhor julgamento e que não podemos descrever isso como sucumbindo à tentação. Nos relatos usuais de incontinência existem, começa agora a aparecer, dois temas bem diferentes que se entrelaçam e tendem a confundir-se. Um é que o desejo nos distrai do bem ou força o mal; a outra é que a ação incontinente sempre favorece a paixão egoísta suplantando o chamamento do dever e da moralidade. O fato dos dois temas poderem ser separados foi enfatizado por Platão tanto no Protágoras quanto no Filebo, quando mostrou que o hedonista, por acaso, apenas pelo seu próprio prazer, poderia ir contra o seu bem; "Oh, diga-me, quem primeiro declarou, quem primeiro proclamou: que o homem só faz coisas desagradáveis porque não conhece os seus interesses reais ...? O que deve ser feito com os milhões de factos que testemunham que os homens, conscientemente, entendendo completamente seus reais interesses, os deixaram em segundo plano e correram precipitadamente num outro caminho ... sem serem obrigados por ninguém, nem por nada.”(Dostoiévski, Cadernos do subterrâneo).


Ronald Davidson, Ensaios sobre ações e acontecimentos, Clarendon Press, Oxford, p.2 8, 29
Fotografia: John Florea, 1945

quarta-feira, novembro 04, 2015

As razões são causas das ações





Gustav Klimt, The Maiden, (1868-1918)

Qual é a relação entre uma razão e uma ação quando a razão explica a ação, dando a razão do agente para fazer o que fez? Podemos chamar tais explicações de racionalizações, e dizer que a razão racionaliza a ação.
Neste artigo quero defender a posição antiga — e de senso comum — de que a racionalização é uma espécie de explicação causalb. A defesa sem dúvida exige alguma reelaboração, mas não parece necessário abandonar a posição, como muitos autores recentes insistem.1
Uma razão racionaliza uma ação somente se nos leva a ver algo que o agente viu, ou pensou que viu, na sua ação — uma característica, consequência ou aspeto da ação que quis, desejou, admirou, estimou, considerou ser seu dever, ser benéfico, obrigatório ou agradável. Não podemos explicar por que alguém fez o que fez simplesmente dizendo que a ação particular lhe interessou; temos de indicar o que na ação lhe interessou. Sempre que alguém faz algo por uma razão, pode, por isso, ser caracterizado por a) ter algum tipo de atitude favorável a ações de certo tipo e b) acreditar (ou saber, perceber, notar, lembrar) que sua ação é daquele tipo. Sob a) devem ser incluídos desejos, quereres, impulsos, incitações, e uma grande diversidade de pontos de vista morais, princípios estéticos, predisposições económicas, convenções sociais, e objetivos e valores públicos ou privados, na medida em que podem ser interpretados como atitudes de um agente que visam ações de certo tipo. A palavra “atitude” precisa abranger não apenas traços de caráter permanentes, que se revelam nos comportamentos de uma vida inteira, (como o amor por crianças ou o gosto por companhia barulhenta), mas também as mais efémeras fantasias que impelem uma ação singular, como um desejo súbito de tocar o cotovelo de uma mulher. Em geral, as atitudes favoráveis não devem ser tomadas como convicções, de que toda a ação de certo tipo deva ser realizada, mereça ser realizada, ou seja desejável. Pelo contrário, um homem pode ter a vida toda um desejo ávido de, digamos, beber uma lata de tinta, sem jamais, nem mesmo no momento em que se sujeita a tal, acreditar que valha a pena fazê-lo.
Dar a razão pela qual um agente fez algo é frequentemente uma questão de nomear a atitude favorável (a), ou a crença relacionada (b), ou ambos; vou nomear razão primária (inclui as duas) pela qual o agente realizou a ação. (…)Ligo o interruptor, acendo a luz e ilumino a sala. Sem que eu saiba, também alerto o ladrão do fato de que estou em casa. Aqui não preciso estar a fazer quatro coisasc, mas apenas uma, da qual se deram quatro descrições.2 


 Liguei o interruptor porque quis acender a luz e, ao dizer que quis acender a luz, explico (dou a minha razão, racionalizo) o ligar. Mas não racionalizo, o meu alertar o ladrão, nem o meu iluminar a sala. Dado que as razões podem racionalizar o que alguém faz quando o descrevemos de um modo mas não de outro, não podemos tratar o que foi feito simplesmente como um termo em frases como “A minha razão para ligar o interruptor foi que quis acender a luz”; de outro modo seríamos forçados a concluir, do fato de que ligar o interruptor foi idêntico a alertar o ladrão, que a minha razão para alertar o ladrão foi que quis acender a luz.
(…) Quando sabemos que uma ação é intencional, é fácil responder à pergunta “Por que fez você isso?” com “Por nenhuma razão”, não significando que não houve uma razão, mas que não houve uma razão adicional, nenhuma razão que não pudesse ser inferida do fato de a ação ter sido intencional; nenhuma razão, por outras palavras, além de querer realizá-la. Esse último ponto não é essencial para o argumento presente, mas é interessante porque defende a possibilidade de definir uma ação intencional como uma ação feita por uma razão.
Uma razão primária consiste numa crença e numa atitude, mas geralmente é ocioso mencionar ambas. Se você me diz que está afrouxando a bujarrona, porque pensa que assim impedirá a vela mestra de ceder, não preciso ser avisado de que você quer impedir que a vela mestra ceda; e se você me diz que está fazendo uma careta porque me quer me insultar, não há razão para acrescentar que pensa que fazendo uma careta me insulta. De modo semelhante, muitas explicações de ações em termos de razões que não são primárias não exigem menção da razão primária para completar a história. (…)b Felizmente, não é necessário classificar e analisar os muitos tipos de emoções, sentimentos, humores, motivos, paixões e apetites, cuja menção pode responder à pergunta “Por que fez você isso?”, para se ver que, quando tal menção racionaliza a ação, está envolvida uma razão primária. A claustrofobia dá a um homem uma razão para deixar uma festa, porque sabemos que as pessoas querem evitar, escapar, ficar seguras, manter distância entre elas e o que temem. (…)Saber que foi a razão primária pela qual alguém agiu como agiu é saber qual foi a intenção com a qual a ação foi feita. Se viro à esquerda na encruzilhada porque quero chegar a Katmandu, a minha intenção ao virar à esquerda é chegar a Katmandu. Mas saber qual é a intenção não é, necessariamente, saber qual é a razão primária em todos os detalhes. Se James vai à igreja com a intenção de agradar a sua mãe, então tem de ter alguma atitude favorável em relação a agradar a sua mãe, mas é necessário mais informação para dizer se a sua razão é que gosta de agradar a sua mãe, ou pensa que é certo, que é o seu dever ou que é uma obrigação. 

Donald Davidson, Ensaios sobre ações e acontecimentos,

sexta-feira, novembro 13, 2009

Explicar uma acção é determinar a razão básica


Saber a razão primária por que alguém agiu como agiu é saber a intenção com que a acção foi feita. Se viro à esquerda numa bifurcação porque quero chegar a Katmandu, a minha intenção, ao virar à esquerda, é chegar a Katmandu. Mas saber a intenção não consiste, necessariamente, em conhecer a razão primária com todo o pormenor. Se James vai à igreja com a intenção de agradar à sua mãe, deverá ter alguma pró-atitude face a agradar à sua mãe, mas é necessária mais informação para que se possa dizer se a sua razão é a de gostar de agradar à sua mãe, se é pensar que isso é o correcto, se é um dever ou se é uma obrigação.

[...]

Quando perguntamos a alguém por que agiu como agiu, queremos obter uma interpretação. Talvez o seu comportamento pareça estranho, alienígena, ultrajante, injustificado, mal interpretado, desconexo. Ou talvez nem consigamos mesmo reconhecer uma acção nesse comportamento. Quando compreendermos a sua razão teremos uma interpretação, uma nova descrição do que fez e que encaixará num quadro habitual. Esse quadro inclui algumas das crenças e atitudes do agente. Talvez também inclua metas, fins, princípios, traços gerais de carácter, virtudes ou vícios. Para além disto, a redescrição de uma acção proporcionada por uma razão pode situá-la num contexto de avaliação — social, económico, linguístico — mais alargado. Compreender, mediante a compreensão da razão, que o agente concebeu a sua acção como uma mentira, o pagamento de uma dívida, um insulto, o cumprimento de uma obrigação avuncular ou um jogo de xadrez, significa apreender o desígnio da acção enquanto aplicação de regras, práticas, convenções e expectativas.

Comentários como estes, inspirados no segundo Wittgenstein, têm sido elaborados com subtileza e profundidade por um considerável número de filósofos. E não há maneira de negar que são verdadeiros: quando explicamos uma acção através da respectiva razão, redescrevêmo-la. Redescrever a acção dá à acção um lugar num certo padrão e, por este caminho, explica-se a acção.

Donald Davidson, "Actions, Reasons, and Causes" in Essays on Actions and Events (Clarendon Press, 1980), pp. 7-10.
Tradução de António Paulo Costa