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quinta-feira, abril 05, 2018

Bem absoluto e bem instrumental




Carolyn Drake, Vallejo, Califórnia

“Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem

toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem. (…)

Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria.”

(…)



“Porque pode existir o estado de ânimo sem produzir nenhum bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos Jogos Olímpicos não são os mais belos e os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que competem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), também as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente. Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude. Ora, na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. Em consequência, a vida deles não necessita do prazer como uma espécie de encanto adventício, mas possui o prazer em si mesma. Pois que, além do que já

dissemos, o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em agir com justiça, nem liberal o que não experimenta prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos. Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos:

 Das coisas a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde; Mas a mais doce é alcançar o que amamos.

 Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ou então, uma delas — a melhor —, nós a identificamos com a felicidade. E no entanto, como dissemos13, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios."
Aristóteles, Ética a Nicómaco,1073-1098

quarta-feira, abril 04, 2018

A verdadeira origem do bem: Compaixão ou fingimento?




Antonio Rotta, 1828/1903, Venezia, L’ortolanella
Aliás, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade de seu amor próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que ele tem pelo seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer o seu semelhante. Não creio temer contradição alguma concedendo ao homem a única virtude natural que o detrator mais extremado das virtudes humanas é forçado a reconhecer. Refiro-me à piedade (compaixão), disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como nós; virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem que precede o uso de toda reflexão, e tão natural que os próprios animais dão, às vezes, sinais sensíveis dela; sem falar da ternura das mães pelos filhos e dos perigos que afrontam para defendê-los, observamos todos os dias a repugnância que têm os cavalos em pisar um corpo vivo. Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto da sua espécie: alguns lhes dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no matadouro, anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove. (…)     Tal é o puro movimento da natureza, anterior a toda reflexão; tal é a força da piedade natural, que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, pois vemos todos os dias, nos espetáculos, toda a gente se enternecer e chorar pelas desgraças de um infeliz, como se estivesse cada qual no lugar do tirano e agravasse ainda mais os tormentos do seu inimigo: como o sanguinário Sila, tão sensível aos males que não causara, ou Alexandre, que não ousava assistir à representação de nenhuma tragédia, com medo de que o vissem gemer com Andrómaca e Príamo, enquanto escutava sem emoção os gritos de tantos cidadãos que se degolavam todos os dias por sua ordem.
Mandeville sentiu bem que, com toda a sua moral, os homens nunca teriam passado de monstros, se a natureza não lhes desse a piedade em apoio da razão: mas não viu que dessa única qualidade decorrem todas as virtudes sociais que quer disputar aos homens. Efetivamente, que é a generosidade, a demência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em geral? Mesmo a amizade e a benevolência são, afinal de contas, produções de uma piedade constante, fixada sobre um objeto particular: com efeito, desejar que alguém não sofra, que outra coisa é senão desejar que seja feliz? Mesmo que fosse verdade que a comiseração não passa de um sentimento que nos põe no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civilizado, que importaria essa ideia à verdade do que digo, a não ser para lhe dar mais força? Efetivamente, a comiseração será tanto mais enérgica quanto o animal espectador se identificar mais intimamente com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais estreita no estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor próprio, e é a reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e o aflige. É a filosofia que o isola; é por ela que ele diz em segredo, ao ver um homem que sofre: "Morre, se queres; estou em segurança". Só os perigos da sociedade inteira perturbam o sono tranquilo do filósofo e o fazem levantar-se do leito. Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça aglomera-se, e o homem prudente afasta-se; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.
     É, pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, Faz aos outros o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: Faz o teu bem com o menor mal possível ao outro. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o género humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios.


Rousseau, Discurso sobre os fundamentos da desigualdade entre os homens,1753
file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (64 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

terça-feira, abril 03, 2018

O valor da moral: fingimento



Camilo José Vergara,1970, NY

Este problema do valor da compaixão e da moral da compaixão (- eu sou um adversário do amolecimento moderno dos sentimentos -) à primeira vista parece ser algo isolado, uma interrogação à parte; mas quem neste ponto se detém, quem aqui aprende a questionar, a este sucederá o mesmo que ocorreu a mim - uma perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se apodera como uma vertigem, toda espécie de desconfiança, suspeita e temor salta adiante, cambaleia a crença na moral, em toda moral - por fim, uma nova exigência se faz ouvir, Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão - para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses "valores" como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao "bom" valor mais elevado que ao "mau", mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem), E se o contrário fosse a verdade? E se no "bom" houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?
(…)

"Originalmente" - assim eles decretam - "as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas como se em si fossem algo bom." Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses - temos aí "a utilidade", "o esquecimento", "o hábito" e por fim "o erro", tudo servindo de base a uma valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio do próprio homem. Este orgulho deve ser humilhado, e esta valoração desvalorizada: isso foi feito?... Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito "bom" no lugar errado: o juízo "bom" não provém daqueles aos quais se fez o "bem"! Foram os "bons" mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelece dores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe - e não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente. O pathos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um "sob" – eis a origem da oposição "bom" e "ruim". (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem "isto é isto", marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas.) Devido a essa providência, já em princípio a palavra "bom" não é ligada necessariamente a ações "não egoístas", como quer a superstição daqueles genealogistas da moral. É somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição "egoísta" e "não egoísta" se impõe mais e mais à consciência humana - é, para utilizar minha linguagem, o instinto de rebanho, que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras). E mesmo então demora muito, até que esse instinto se torne senhor de maneira tal que a valoração moral fique presa e imobilizada nessa oposição (como ocorre, por exemplo, na Europa de hoje: nela, o preconceito que vê equivalência entre "moral", "não egoísta" e "désinteréssé" já predomina com a violência de uma "idéia fixa" ou doença do cérebro).
Nietzsche, Para uma genealogia da moral, 1887, w   w   w   .   s   a   b   o   t   a   g   e   m   .   n   e   t


segunda-feira, março 13, 2017

A origem da consciência moral




Vladimir Lagrange, n.1939, URSS

Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior impedimento à civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa investigação , fui conduzido à ideia de que a civilização constituía um processo especial que a humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo ao serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, opõe-se a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é  derivado e  principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não nos é mais obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que as nossas amas tentam apaziguar com a sua cantiga de ninar sobre o Céu.

Outra questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela? Já nos familiarizamos com alguns desses métodos, mas ainda não com aquele que parece ser o mais importante. Podemos estudá-lo na história do desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo o seu desejo de agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. A agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.
Sigmund Freud, O mal estar na civilização, p.35, 36
Texto copiado integralmente da edição eletrónica das obras de Freud, versão 2.0 por TupyKurumin

quinta-feira, setembro 04, 2014

O relativismo moral


Paul Gauguim "Cenas da vida no Tahiti

A minha tese é a de que a moralidade surge quando um grupo de pessoas atinge um acordo implícito ou chega a um entendimento tácito relativo ao modo como se relacionam uns com os outros. Parte do que eu quero dizer com isto é que os juízos morais, ou um importante conjunto deles, só fazem sentido em relação e com referência a um ou outro acordo ou entendimento. (…) Mas deve ficar claro que pretendo argumentar a favor de uma versão do que tem sido chamado de relativismo moral. Ao fazer isso, estou a tomar partido numa controvérsia antiga. (…) Do mesmo modo que o conceito de grande só faz sentido em relação ou em comparação, o juízo de que alguém fez algo errado também só faz sentido na relação com um acordo ou entendimento. Um cão pode ser grande em relação aos chihuahuas e não ser grande em relação à generalidade dos cães Similarmente, uma acção pode ser errada  relativamente a um acordo e não o ser em relação a outro. Do mesmo modo que não faz sentido perguntar se o cão é grande, sem mais,  também não se pode perguntar de modo isolado e sem relação com um acordo, se uma acção é errada.
Existe um acordo ou entendimento, num sentido relevante se cada uma das pessoas que integra um grupo tem a intenção de aderir a algum programa, plano ou conjunto de princípios, pressupondo que os outros também têm intenção de o fazer.
Gostaria de dizer breves palavras sobre o caso limitado da moralidade de um grupo, quando o mesmo tem apenas um membro; então, por assim dizer,  uma pessoa chega a um entendimento com ela própria (consigo mesma). Na minha opinião, uma pessoa pode fazer julgamentos internos em relação a si mesmo. A forma familiar de pacifismo é deste tipo. Alguns pacifistas consideram que seria errado matarem, embora não estejam dispostos a fazer um juramento semelhante sobre os outros (…). Há naturalmente, muitos exemplos de moralidade individual neste sentido, quando uma pessoa impõe padrões a si mesma que não se aplicam aos outros. A existência de tais exemplos é mais uma confirmação da tese relativista que eu apresentei.
A minha conclusão é a de que a moral deriva de um implícito acordo ou entendimento e que os juízos morais são feitos  com relação a esse acordo.


Gilbert Harman (1975), Moral Relativism defended, in The philosophical Review, vol 84, nº1, pp3-22

Neste ponto de vista se o grupo não chegasse a acordo então não haveria regras, ou vamos limitar o grupo aos que estão de acordo e assim há regras mas só para alguns e os outros formam outras. Não há verdadeiramente tão grande discrepância, ou substancial divergência entre todos sobre certos actos serem errados, objectivamente errados, e portanto a evitar, assim  como não há substancial divergência em relação à grandeza dos cães. Um cão grande é facilmente reconhecível por todos, porque há um padrão formado a partir da experiência comum que todos temos sobre a natureza dos cães conhecidos. O facto de poderem existir excepções não altera o que podemos concluir ser o mais comum e constituir o padrão. Do mesmo modo o juízo moral pode estar vinculado a um grupo resultante do acordo tácito entre todos os membros mas isso não significa que por serem praticados e consentidos certos actos no seio desse grupo, que eles sejam correctos moralmente. Ser aceite por um grupo não significa moralmente correcto. O juízo sobre o correcto ou incorrecto não pode ser confinado a um grupo porque a questão moral é uma questão geral, pois qualquer acção de qualquer indivíduo, em qualquer grupo afecta ou pode  afectar  todos. Imaginemos uma terra onde só existem cães pequenos, raças pequenas. Nessa terra, se não houvesse conhecimento de outras raças chegar-se-ia a pensar que todos os cães são pequenos e o nosso juízo estaria errado.

domingo, agosto 24, 2014

Os juízos morais


Em última análise as nossas decisões sobre o certo e o errado dependerão da nossa escolha em relação à vida em comum, com quem queremos passar as nossas vidas. E esta vida em comum, por sua vez, é escolhida pensando em exemplos, exemplos de pessoas mortas ou vivas, exemplos de acontecimentos, passados ou presentes. No caso improvável que alguém nos venha e dizer que prefere viver em comum com o Barba Azul, sendo ele o seu exemplo, tudo o que podemos fazer seria ter certeza de que essa pessoa não iria conviver connosco. Mas a probabilidade de alguém vir dizer-nos que não se importa e que qualquer um é   suficientemente bom para ele, é, temo, muito maior. Moralmente e até mesmo politicamente falando, essa indiferença, embora comum, é o maior perigo. E na mesma direcção, apenas um pouco menos perigoso, há um outro fenómeno moderno comum: a tendência generalizada de recusar julgar. Da falta de vontade ou  incapacidade de escolher um exemplo ou delinear uma vida comum, e da falta de vontade ou incapacidade de se relacionar com os outros através do julgamento, surgem os reais skandala , os blocos entorpecidos, que os poderes humanos não podem remover, porque não foram causados por motivos humanos e são humanamente incompreensíveis. Aí reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.

Hannah Arendt in " Lectures on Kant political Philosophy", The University Chicago Press, 1992, p.113

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Rousseau: A piedade como sentimento moral


Toda a moralidade das nossas acções está no julgamento que trazemos dentro de nós. Se é verdade que o bem seja bem, ele deve estar no fundo dos nossos corações assim como nas nossas obras, e o primeiro prémio da justiça é o de sentir que a praticamos. Se a bondade moral é conforme à nossa natureza, o homem não poderia ser são de espírito e bem constituído se não fosse bom. Se assim não for, se o homem é mau naturalmente, ele não pode parar de o ser sem se corromper, e a bondade é nele, não mais que um vício contra natura. Feito para lesar os teus semelhantes como o lobo sacrifica a presa, um homem humano seria um animal tão depravado como um miserável lobo; e só a virtude nos deixaria remorsos.
Entremos em nós próprios, oh meu jovem amigo! Examinemos, sem qualquer interesse pessoal, aonde nos conduzem as nossas inclinações. Qual é o espectáculo que mais nos anima, o dos tormentos ou o da felicidade de alguém? O que nos é mais doce de fazer, e nos deixa uma impressão mais agradável depois de o ter feito, um acto de bondade ou um acto de mesquinhez? Por quem vos interessais nos vossos teatros? É  a perversidade que vos dá prazer? É à punição dos seus autores que dais as vossas lágrimas? Tudo nos é indiferente, dirão eles, fora do nosso interesse: e, completamente ao contrário, as doçuras da amizade, da humanidade, consolam-nos nas nossas dores; e, mesmo nos nossos prazeres, seríamos demasiado solitários, demasiado miseráveis, se não tivéssemos com quem os partilhar. Se não há nada moral no coração do homem, de onde lhe vêem estes arrebatamentos de admiração pelas acções heróicas, estes encantamentos amorosos pelas grandes almas? Este entusiasmo pela virtude, que relação terá com o nosso interesse particular? Porque prefiro eu ser Catão que rasgou as suas entranhas, a ser César triunfante?  Tirai dos nossos corações este amor do bem, tirareis todo o charme da vida. Aqueles cujas vis paixões sufocaram a sua alma limitaram estes deliciosos sentimentos; aquele que, à força de se concentrar dentro de si , acaba por só se amar a si mesmo, não tem arrebatamentos, o seu coração gélido não palpita mais de alegria; um doce enternecimento não humedece os seus olhos;  não goza mais com nada; o infeliz não sente mais, não vive mais; já está morto.

Jean- Jaccques Rousseau, Émile ou de L’Éducation, Flammarion, 1966, pág.373,374

Tradução de Helena Serrão

Fotografia de Rodney Smith

A moral fundada na natureza humana, mais propriamente no sentimento (no coração) como o que nos aproxima do outro e desse modo encontrar nele aquilo que encontramos em nós, o que poderíamos chamar de empatia ou numa linguagem herdeira das virtudes cristãs, a piedade como inclinação para sentir os outros como iguais, na sua humanidade de dores e alegrias. Contrariamente aos princípios do sistema moral de Kant, esta proposta de Rousseau parece-me mais enriquecedora e essencial porque, podendo correr mais riscos uma vez que o sentimento tem atrás de si toda uma tradição filosófica negativa, a suspeita de ser volátil e nos tornar vulneráveis, é por outro lado o que nos impele para o outro, num sentido amoroso e o que nos impede de o molestar.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Serão os juízos morais universais?


Ara Guler, Istambul, 1966
... o certo e o errado serão o mesmo para todas as pessoas?
A moral é pensada muitas vezes como universal. se uma acção é errada, deve sê-lo para toda a gente; por exemplo, se é errado matar alguém para lhe roubar a carteira, então isso é errado, quer te preocupes com essa pessoa, ou não. Mas, se o facto de uma acção estar errada é uma razão para não ser realizada e as tuas razões para fazeres coisas dependem das tuas motivações, uma vez que as motivações das pessoas podem variar muito, então parece que não pode haver um conceito único de certo e errado, porque se as motivações básicas das pessoas diferem, não haverá um único padrão básico de comportamento que todas as pessoas tenham motivos para seguir.
Há três maneiras de lidar com este problema, nenhuma delas muito satisfatória.
Em primeiro lugar, podíamos dizer que as mesmas acções estão certas ou erradas para toda a gente, mas nem toda a gente tem razões para fazer aquilo que está certo e evitar o errado: só as pessoas com o género certo de motivações morais - particularmente a preocupação com os outros - fazem o que está certo em função de mais nadaa não ser a própria moral. Isto torna a moral universal, mas à custa de lhe extrair a sua força.
Em segundo lugar, podíamos dizer que toda a gente tem uma razão qualquer para fazer o que está certo e evitar o que está errado, mas que essa razão não depende das motivações que as pessoas têm de facto. É antes uma razão para alterarmos as nossas motivações, se não forem certas. esta resposta oferece uma conexão entre a moral e as razões para agir, mas não diz de forma clara que razões universais serão essas que não dependem das motivações que as pessoas têm de facto.(...)
Em terceiro lugar, podíamos dizer que a moral não é universal  e que só é moralmente exigida a uma pessoa aquela acção em relação à qual ela tem um certo tipo de razões para executar, dependendo estas razões do quanto ela , de facto, se preocupa com os outros em geral. Se tem fortes motivações morais, produzirão fortes motivações morais, (...) se as motivações morais forem fracas ou inexistentes, os requisitos morais serão fracos ou inexistentes.

Thomas Nagel,Que quer dizer tudo isto? Gradiva, Lx,1997, p.66,67