Vladimir Lagrange, n.1939, URSS
Em tudo o
que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a
agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e
auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior impedimento à
civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa investigação , fui
conduzido à ideia de que a civilização constituía um processo especial que a
humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora
acrescentar que a civilização constitui um processo ao serviço de Eros, cujo
propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois
ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade.
Porque isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente
este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às
outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as
manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de
cada um contra todos e a de todos contra cada um, opõe-se a esse programa da
civilização. Esse instinto agressivo é derivado e principal
representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que
com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução
da civilização não nos é mais obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e
a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora
na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto,
a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie
humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que as nossas amas tentam
apaziguar com a sua cantiga de ninar sobre o Céu.
Outra
questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização utiliza
para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez,
livrar-se dela? Já nos familiarizamos com alguns desses métodos, mas ainda não
com aquele que parece ser o mais importante. Podemos estudá-lo na história do
desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo o seu
desejo de agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não
obstante, é bastante óbvio. A agressividade é introjetada, internalizada; ela
é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é,
dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego,
que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de
‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade
rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele
estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito,
é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de
punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de
agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu
interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade
conquistada.
Sigmund
Freud, O mal estar na civilização, p.35, 36
Texto copiado integralmente da edição eletrónica das obras
de Freud, versão 2.0 por TupyKurumin
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