sábado, janeiro 19, 2013

Curiosidades


Namora uma rapariga que lê


"Namora uma rapariga que lê. Namora uma rapariga que gaste o dinheiro dela em livros, em vez de roupas. Ela tem problemas de arrumação porque tem demasiados livros. Namora uma rapariga que tenha uma lista de livros que quer ler, que tenha um cartão da biblioteca desde os doze anos.

Encontra uma rapariga que lê. Vais saber que é ela, porque anda sempre com um livro por ler dentro da mala. É aquela que percorre amorosamente as estantes da livraria, aquela que dá um grito imperceptível ao encontrar o livro que queria. Vês aquela miúda com ar estranho, cheirando as páginas de um livro velho, numa loja de livros em segunda mão? É a leitora. Nunca resistem a cheirar as páginas, especialmente quando ficam amarelas.

 Ela é a rapariga que lê enquanto espera no café ao fundo da rua. Se espreitares a chávena, vês que a espuma do leite ainda paira por cima, porque ela já está absorta. Perdida num mundo feito pelo autor. Senta-te. Ela pode ver-te de relance, porque a maior parte das raparigas que lêem não gostam de ser interrompidas. Pergunta-lhe se está a gostar do livro.
Oferece-lhe outra chávena de café com leite.

 Diz-lhe o que realmente pensas do Murakami. Descobre se ela foi além do primeiro capítulo da Irmandade. Entende que, se ela disser ter percebido o Ulisses de James Joyce, é só para soar inteligente. Pergunta-lhe se gosta da Alice ou se gostaria de ser a Alice.

 É fácil namorar com uma rapariga que lê. Oferece-lhe livros no dia de anos, no Natal e em datas de aniversários. Oferece-lhe palavras como presente, em poemas, em canções. Oferece-lhe Neruda, Pound, Sexton, Cummings. Deixa-a saber que tu percebes que as palavras são amor. Percebe que ela sabe a diferença entre os livros e a realidade – mas, caramba, ela vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco com o seu livro favorito. Se ela conseguir, a culpa não será tua.

 Ela tem de arriscar, de alguma maneira.

 Mente-lhe. Se ela compreender a sintaxe, vai perceber a tua necessidade de mentir. Atrás das palavras existem outras coisas: motivação, valor, nuance, diálogo. Nunca será o fim do mundo.

 Desilude-a. Porque uma rapariga que lê compreende que falhar conduz sempre ao clímax. Porque essas raparigas sabem que todas as coisas chegam ao fim. Que podes sempre escrever uma sequela. Que podes começar outra vez e outra vez e continuar a ser o herói. Que na vida é suposto existir um vilão ou dois.

 Porquê assustares-te com tudo o que não és? As raparigas que lêem sabem que as pessoas, tal como as personagens, evoluem. Excepto na saga Crepúsculo.

 Se encontrares uma rapariga que leia, mantém-na perto de ti. Quando a vires acordada às duas da manhã, a chorar e a apertar um livro contra o peito, faz-lhe uma chávena de chá e abraça-a. Podes perdê-la por um par de horas, mas ela volta para ti. Falará como se as personagens do livro fossem reais, porque são mesmo, durante algum tempo.

ais declarar-te num balão de ar quente. Ou durante um concerto de rock. Ou, casualmente, na próxima vez que ela estiver doente. Pelo Skype.
Vais sorrir tanto que te perguntarás por que é que o teu coração ainda não explodiu e espalhou sangue por todo o peito. Juntos, vão escrever a história das vossas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos ainda mais estranhos. Ela vai apresentar os vossos filhos ao Gato do Chapéu e a Aslam, talvez no mesmo dia. Vão atravessar juntos os invernos da vossa velhice e ela recitará Keats, num sussurro, enquanto tu sacodes a neve das tuas botas.

 Namora uma rapariga que lê, porque tu mereces. Mereces uma rapariga que te pode dar a vida mais colorida que consegues imaginar. Se só lhe podes oferecer monotonia, horas requentadas e propostas mal cozinhadas, estás melhor sozinho. Mas se queres o mundo e os mundos que estão para além do mundo, então, namora uma rapariga que lê.

Ou, melhor ainda, namora uma rapariga que escreve."

 
Texto de Rosemary Urquico, Tradução “informal” de Carla Maia de Almeida para celebrar o

dia mundial da leitura

 

domingo, janeiro 06, 2013

As dificuldades das ciências humanas e sociais


O grande matemático Lagrange disse há já muito tempo que a Natureza simplesmente não faz caso das dificuldades que coloca aos cientistas, cuja missão – como declarou noutra ocasião – consiste na procura da simplicidade, mas também em desconfiar dela. Quer isto dizer que o melhor – e porventura o único – meio de alcançar uma simplicidade congruente com os factos é lidar de frente com as maiores complexidades, mediante o recurso extremamente prático de tratar a dificuldade per se como um dato fundamental, que não deve ser evitado, mas aproveitado ao máximo – não deve ser explicado, mas utilizado para explicar dados aparentemente mais simples.

            Os primeiros capítulos deste livro, que destacam a angústia causada pelos dados da ciência do comportamento, podem dar a impressão errónea de que a objectividade é impossível a priori na investigação da ciência do comportamento e que para reduzir ao mínimo as deformações devidas à subjectividade devemos interpor mais e mais filtros – testes, técnicas de entrevista, acessórios e outros artifícios heurísticos – entre nós e os nossos objectos. Inclusive, poderia parecer que o melhor “observador” é uma máquina e que o observador humano deveria aspirar a uma espécie de invisibilidade que – caso fosse bem sucedido – eliminaria o observador da situação observacional.(...)

            Não se faz boa ciência ignorando os seus dados mais fundamentais e mais característicos que constituem, de forma muito específica, dificuldades que lhe são inerentes. O especialista do comportamento não pode ignorar a interacção do sujeito e do observador, esperando que, se fingir durante bastante tempo que ela não existe, esta acabe por desaparecer completamente.

            A recusa em tirar partido de maneira criativa dessas dificuldades mais não faz do que conduzir à recolha de dados cada vez menos pertinentes, cada vez mais segmentários, periféricos e mesmo triviais, que não lançam qualquer luz sobre o que há de vivo no organismo ou de humano no homem. Por isso, o cientista deve deixar de destacar exclusivamente a sua manipulação do sujeito e deve, ao mesmo tempo – e por vezes principalmente –, esforçar-se por se compreender a si mesmo enquanto observador. Nesse sentido, toda a experiência praticada sobre um rato é também uma experiência praticada sobre o observador, cujas angústias e manobras de diversão, tal como a sua estratégia de investigação, percepção de dados e tomada de decisões (interpretações dos dados), podem lançar mais luz sobre a natureza do comportamento em geral do que a observação dos ratos – e até de outros seres humanos – poderia fazer.

            Isto implica que as dificuldades tradicionais da ciência do comportamento não se devem apenas a uma determinação pouco ponderada do lugar e natureza da demarcação entre dados “reais” e produtos “incidentais” ou epifenomenais da estratégia de investigação. Indica que o sujeito mais apto a manifestar um comportamento cientificamente utilizável é o próprio observador. Isto significa que uma experiência praticada sobre ratos, uma expedição antropológica, ou uma psicanálise, contribuem mais para a compreensão do comportamento se forem encaradas como fonte de informação acerca do psicólogo dos animais, do antropólogo e do psicanalista, do que se forem consideradas tão-somente como uma fonte de informação acerca dos ratos, dos primitivos ou dos pacientes. Numa verdadeira ciência do comportamento, os primeiros dados são básicos; os outros são epifenomenais… ou seja, falando com clareza, subprodutos que, naturalmente, também merecem ser explorados.

            Não é o estudo do sujeito, mas do observador, que nos faculta o acesso à essência da situação observacional.

            Os dados da ciência do comportamento são então triplos:

            1] O comportamento do sujeito.

            2] As “perturbações” produzidas pela existência do observador e pelas suas actividades no quadro da observação.

            3] O comportamento do observador: as suas angústias, as suas manobras defensivas, a sua estratégia de investigação, as suas “decisões” (=atribuição de significado às suas observações).
 
Georges Devereux, Da Ansiedade ao Método nas Ciências do Comportamento[1]
 
Tradução de Ana Rita Araújo


[1] From anxiety to method in the behavioral sciences, 1967.